"A LUTA DE UM POVO, UM POVO EM LUTA!"

Agência de Notícias Nova Colômbia (em espanhol)

Este material pode ser reproduzido livremente, desde que citada a fonte.

A violência do Governo Colombiano não soluciona os problemas do Povo, especialmente os problemas dos camponeses.

Pelo contrário, os agrava.


segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Megavazamento de documentos deixa exposta a diplomacia dos EUA

Um gigantesco vazamento de documentos sigilosos americanos, que começaram a ser divulgados ontem, expôs práticas condenáveis de Washington, revelou segredos sobre aliados e deve prejudicar a relação dos EUA com vários países. O governo americano criticou o vazamento e diz que ele coloca em risco a vida de muitas pessoas.

A notícia é do jornal Valor, 29-11-2010.

Os documentos mostram, por exemplo, que o governo dos EUA ordenou que dirigentes da ONU fossem espionados. E confirmam que países árabes pressionam para que os EUA ataquem o Irã e destruam o seu programa nuclear.

O vazamento de cerca de 250 mil documentos sigilosos, em geral comunicações entre o Departamento de Estado e as embaixadas americanas pelo mundo, é inédito e possivelmente constitui o maior fiasco da história da diplomacia americana. O ministro das Relações Exteriores da Itália, Franco Frattini, disse tratar-se de um 11 de setembro diplomático, comparando o impacto do vazamento aos atentados terroristas de 2001.

Os documentos foram copiados por um militar americano, que os repassou à ONG Wikileaks, com sede na Suécia, que se dedica a divulgar documentos confidenciais. A ONG os repassou, para que fossem analisados, aos jornais "The New York Times" (EUA), "The Guardian" (Reino Unido), "Le Monde" (França) e "El País" (Espanha), e à revista alemã "Der Spiegel". Só esses veículos tiveram acesso ao conjunto dos documentos. E começaram a divulgá-los ontem.

No material revelado até agora, há poucas menções à América Latina. O caso mais curioso é a missão, atribuída à embaixada americana em Assunção, de reunir dados físicos sobre os candidatos nas últimas eleições presidenciais no país, em 2008. O despacho pede informações sobre quatro candidatos, incluindo o atual presidente Fernando Lugo. São solicitados dados biométricos, impressões digitais, scanner da íris e até amostra de DNA. Não se sabe se os dados foram obtidos e enviados.

Esse caso ilustra como o serviço diplomático americano costuma ser solicitado por Washington a extrapolar suas funções e atuar no limite da espionagem. O Departamento de Estado reagiu a essas revelações e afirmou: "Nossos diplomatas são só isso, diplomatas."

As principais citações ao Brasil, nos documento divulgados, dizem respeito à preocupação com possível atividade de terroristas islâmicos na região da Tríplice Fronteira, com Argentina e Paraguai. Segundo o Wikileaks, há cerca de 3 mil despachos originados do Brasil, sendo 1.947 de Brasília e 786 de São Paulo. O país também é citado pela relação com o venezuelano Hugo Chávez. Num despacho da França, um assessor do presidente Nicolas Sarkozy chama Chávez de louco e diz que nem o Brasil consegue mais apoiá-lo.

O "El País" promete divulgar hoje detalhes sobre as suspeitas que a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, desperta em Washington, "ao ponto de a secretária de Estado [Hillary Clinton] chegar a pedir informações sobre o estado de saúde mental" de Cristina.

Os despachos vazados, classificados como confidenciais e secretos (ainda não saiu nada "top secret") pelo governo americano, dizem respeito principalmente aos governos Bush e Obama. Mas há documentos anteriores.

O jornal espanhol diz que há menção a casos de corrupção em escala planetária, que poderiam envolver líderes estrangeiros.

Além disso, há avaliações de líderes estrangeiros que devem causar constrangimento aos EUA. A primeira-ministra alemã, Angela Merkel, é descrita num despacho da embaixada americana em Berlim como sendo avessa ao risco e "raramente criativa". Já o premiê italiano, Silvio Berlusconi, é tratado como um testa-de-ferro do premiê russo, Vladimir Putin, e há menção a suas "festas selvagens". Berlusconi está acuado na Itália por vários escândalos envolvendo festas com garotas de programa.

Uma das práticas mais embaraçosas reveladas pelos documentos indicam a determinação de Hillary Clinton para que altos funcionários da ONU, inclusive o secretário-geral Ban Ki-moon, fossem espionados por diplomatas americanas nas Nações Unidas. Pede-se que sejam levantados dados pessoais desses funcionários, como número de plano de milhagem de companhias aéreas, modelo de aparelhos celulares e operadoras de telefonia que eles usam (o que sugere a possibilidade de grampo).

Outra revelação embaraçosa diz respeito à pressão de líderes árabes para que os EUA ataquem o Irã e destruam o programa nuclear iraniano, considerado pelos árabes como ameaça à segurança regional. Despachos citam a insistência do rei Adbullah, da Arábia Saudita, em "cortar a cabeça da serpente". Nenhum governo árabe admite isso em público, até porque isso significaria se alinhar com Israel.

Mas documentos revelam ainda a hesitação americana. O secretário de Defesa, Robert Gates, é citado ao dizer que um ataque ao Irã apenas atrasaria de um a três anos o programa nuclear iraniano.

Já a embaixada americana em Pequim relata ter obtido de um informante a confirmação de que a direção do Partido Comunista ordenou um ataque a computadores nos EUA, inclusive de órgãos do governo. O governo chinês nega.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Reflexão de Fidel sobre Evo: "Nunca um discurso foi tão oportuno"

Há momentos na história que exigem um discurso, ainda que tão breve quanto “Alea jacta est”, de Júlio César quando atravessou o Rubicão. Teve que atravessá-lo nesse dia, justamente quando os ministros da defesa dos Estados soberanos do Hemisfério Ocidental estavam reunidos na cidade de Santa Cruz, onde os ianques têm encorajado o separatismo e a desintegração da Bolívia.

Era segunda-feira e as agências de notícias estavam dedicadas à divulgação e comentários sobre a reunião da Otan [Organização dos países do Tratado Atlântico Norte] em Lisboa, onde essa instituição belicosa, em linguagem arrogante e rude, proclamou seu direito de intervir em qualquer parte do mundo onde sentirem ameaçados os seus interesses.

Ignorava-se por completo o destino de milhares de milhões de pessoas, e as verdadeiras causas da pobreza e do sofrimento da maioria dos habitantes do planeta. O cinismo da Otan merecia uma resposta, e ela veio na voz de um índio aymara da Bolívia, no coração da América do Sul, onde uma civilização mais humana floresceu antes que a conquista, o colonialismo, o desenvolvimento capitalista e o imperialismo impusessem a lei da força bruta, com base no poder das armas e das tecnologias desenvolvidas.

Evo Morales, presidente do país, eleito pela grande maioria do seu povo, com argumentos, dados e realizações irrefutáveis, talvez até mesmo sem conhecer o infame documento da Otan, deu resposta à política que o governo dos EUA pratica historicamente com os povos da América Latina e no Caribe.

A política de poder, expressa através de guerras, crimes, violações da Constituição e das leis; envolvimento de oficiais das forças armadas em conspirações, golpes de Estado, crimes políticos que foram usados para derrubar governos progressistas e instalar regimes de força aos quais sistematicamente oferecem apoio político, militar e da mídia.

Nunca um discurso foi tão oportuno.

Usando muitas vezes as formas expressivas de sua língua aymara, disse verdades que passarão à história.

Tentarei sintetizar, utilizando suas próprias palavras e frases, o que ele disse:

"Obrigado".

"É uma grande satisfação em receber em Santa Cruz de la Sierra os ministros e ministras de Defesa da América, Santa Cruz, terra de Ignacio Warnes, Juan Manuel José Vaca, homens rebeldes de 1810, que lutaram e deram suas vidas pela independência da nossa querida Bolívia".

"Homens como Andrés Ibáñez, Atahuallpa Tumpa, irmão indígenas que durante a república lutaram pela sua autonomia e pela igualdade dos povos em nossa terra".

"Bem-vindos à Bolívia, terra de Tupac Katari, terra de Bartolina Sisa, de Simon Bolívar e de tantos homens que deram a sua luta por 200 anos pela independência da Bolívia e de muitos países na América".

"A América Latina vive [...] profundas transformações democráticas nos últimos anos, buscando a igualdade e a dignidade dos povos ...".

"... seguindo os passos de Antonio José de Sucre, Simón Bolívar, de vários líderes indígenas, mestiços, crioulos, que viveram há 200 anos".

"Há exatamente uma semana atrás, celebramos o bicentenário do Exército da Bolívia: em 14 novembro de 1810, índios, mestiços e criollos se organizaram militarmente para lutar contra a dominação espanhola ...".

"Nos últimos anos a América Latina retoma essa decisão de se libertar, como uma segunda libertação, não só social ou cultural, mas econômica e financeira, dos povos da América Latina".

"... esta IX Conferência de Ministros da Defesa debate gênero e multiculturalidade nas forças armadas, democracia, paz e segurança nas Américas, desastres naturais, assistência humanitária e o papel das forças armadas, um temário acertado, uma agenda bem colocada para discutir a esperança do povo, não apenas da América, mas do mundo ".

"Em 1985 [...] só tinham o direito de ser eleito ou eleger autoridades quem tinha dinheiro, quem tinha profissão e quem falava espanhol ou castelhano".

"Menos de 10 por cento da população da Bolívia poderia, portanto, participar sendo eleita ou elegendo autoridades, e mais de 90 por cento não tinham direito [...] tem havido diferentes processos [...] algumas reformas, mas no ano de 2009, pela primeira vez com a participação do povo boliviano, uma nova Constituição do Estado Plurinacional foi aprovada pelo povo boliviano".

"... Nesta nova Constituição, é claro, entram os setores mais marginalizados [...] que não tinham o direito de ser eleito ou eleger as autoridades do Estado da República da Bolívia".

"Tivemos que gastar mais de 180 anos para fazer mudanças profundas e incorporar esses setores historicamente marginalizados na Bolívia e, espero estar enganado, mas acho que é o único país, não só na América, mas o mundo, que tem 50 por cento de mulheres ministras e 50 por cento de homens."

"É claro que, além das regras, da Constituição [...] sinto que o mais importante é a decisão política de incorporar os setores mais abandonados; após a Constituição aprovada pelo povo boliviano em 2009, agora os mais marginalizados, os mais desprezados, os que eram considerados como animais, que era o movimento indígena, têm sua representação na Assembléia Legislativa Plurinacional, bem como nas assembléias departamentais".

"Algo importante, para os movimentos indígenas que não têm muita população foram criados distritos especiais para a presença de irmãos indígenas de regiões montanhosas, dos vales, do leste da Bolívia".

"Os distritos uninominais também permitem os irmãos indígenas terem sua representação na Assembléia Legislativa Plurinacional ...".

"Desta forma, permitimos que a presença destes irmãos indígenas que estavam abandonados, condenados ao extermínio".

"... Isso não havia antes ...".

"... Quando eu era muito jovem, como líder sindical, muitas vezes me opus às forças armadas e, quando chego à presidência, eu percebo que boa parte das forças armadas vêm das comunidades rurais do vale em especial ..."

"Quero dizer a vocês, queridos ministros, ministras, que nunca houve participação como agora. Anteriormente apenas a cor da pele determinava a hierarquia da sociedade, agora, um índio, agora o dirigente de um sindicato, um intelectual, um profissional, um líder empresarial, um militar, um general, democraticamente qualquer um pode ser presidente, antes não havia essa possibilidade, de mudar tanto a Bolívia e a nossa Constituição”.

"Quando esta conferência debate apenas segurança, democracia e paz... rever a história, alterar a legislação, é muito emocionante para mim, é um prazer revisar não só por revisar, mas mudar a democracia na América Latina, a segurança, a paz, na América ou o mundo”.

"Se falarmos da democracia na história da Bolívia, no passado havia apenas uma democracia pactuada, não havia nenhum partido que poderia ganhar com mais do que 50 por cento dos votos, como diz a Constituição do Estado Plurinacional ...".

"... Na Bolívia, até 2005, desde 1952, dos anos 50, só havia democracias pactuadas, os partidos venciam com 20 por cento, com 30 por cento ...".

"Um partido que ocupasse o terceiro lugar poderia ser presidente, a depender das alianças e da distribuição dos ministérios, este tipo de aliança era alinhada com o embaixador dos EUA. Nossas compatriotas irmãs, irmãos bolivianos, devem se lembrar, por exemplo de 2002, quando não houve um vencedor com mais de 50 por cento - o partido que obteve mais votos ganhou com 21 por cento - e lá estava o ex-embaixador dos EUA, Manuel Rocha, juntando, unindo os partidos neoliberais para que pudessem governar, e os governos não duraram, não agüentaram”.

"Esse tipo de democracia, felizmente, graças à consciência do povo boliviano, superamos, não temos mais uma democracia pactuada, mas uma democracia legítima a partir sentimento povo boliviano, que acompanha um pensamento, um sentimento que vem do sofrimento dos povos expresso em um programa do governo".

"... Um programa de dignificação dos bolivianos, um programa que busca a igualdade dos bolivianos e bolivianas, um programa que recupera seus recursos naturais, um programa que permite que os serviços básicos sejam um direito humano...".

"... Quando alguns dos nossos adversários - como vocês, em cada país, têm a sua oposição – nos dizem um governo totalitário, um governo autoritário, um governo ditador, que culpa eu tenho se esse programa de governo proposto por um partido tem mais de dois terços em diferentes estruturas do Estado Plurinacional? Só não pude ganhar a prefeitura da cidade de Santa Cruz”.

"Quanto ao nosso prefeito, o respeitamos. Nos ganharam, mas eu cumprimento o senhor prefeito pelas ações que ele fez na semana passada para combater o ágio, a especulação [...] Felicidades, meu respeito, senhor prefeito ...".

"E alguns dizem que temos pensamento único, não há pensamento único, só um programa trabalhado com diferentes setores sociais, encabeçados pelos movimentos sociais tradicionais e de trabalhadores consegue esse apoio para mudar a Bolívia”.

"Mas o que nós enfrentamos no caminho, se falamos de democracia, foi conspiração, golpe de Estado, tentativa de golpe de Estado em 2008 [...], cujo coordenador foi o ex-embaixador dos EUA”.

"Eu estava revendo algo da história [...]sobre o golpe de Estado de 1964, quando o presidente era o tenente-coronel Gualberto Villarroel, que disse, como presidente: ‘não sou inimigo dos ricos, mas eu sou mais amigo dos pobres’, o militar patriota foi o primeiro presidente que convocou um congresso indígena”.

"Outro presidente, Germain Bush, disse que não chegou à presidência para servir aos capitalistas. Um militar”.

"O primeiro presidente que nacionalizou os recursos naturais foi um outro oficial, David Toro. Eu estou falando de 1937 ou 38 [...] em 1946 ele foi atacado, ele foi assassinado no palácio".

"... a ofensiva concentrou-se no Palacio Quemado, que fica na mira da rua Illimani, da esquina Bolívar, da Rua do Comércio, da polícia, da parte de trás do edifício de La Salle e da construção Kersul, onde fica o consulado dos Estados Unidos".

"... o fogo vinha do edifício Kersul, do consulado dos EUA, contra o militar patriota que garantiu o primeiro congresso indígena... do consulado dos Estados Unidos, metralharam, atirando para acabar com a vida de um militar, há documentos que relatam”.

"... A história se repete, eu tive que enfrentar um embaixador organizando, planejando acabar meu mandato anti-democraticamente, e eu sinto que isso se repete em todo o mundo”.

"Mas um companheiro, um compatriota nosso, vítima de muitos golpes militares, me disse, ‘presidente Evo, cuidado com a embaixada dos Estados Unidos, houve golpes de Estado em toda a América Latina’, e me disse que só não há um golpe nos Estados Unidos porque não há embaixada dos Estados Unidos. Realmente chego a entender que a história não ouve a verdade dos golpes de Estado”.

"... Nós, os países que enfrentamos tentativas de golpe em 2002 na Venezuela, em 2008 na Bolívia, em 2009 em Honduras e em 2010 no Equador, temos que reconhecer, compatriotas latino-americanos ou da América, que os Estados Unidos venceram em Honduras, que consolidaram o golpe, o império dos EUA ganhou, mas também o povo da América, na Venezuela, na Bolívia e no Equador, venceu. [...] O que será no futuro, nós veremos no futuro".

"... Esta avaliação interna deve ser uma discussão aprofundada dos ministros da Defesa para garantir a democracia [...] meus antepassados, meu povo, têm sido permanentemente vítimas de golpes de Estado, golpes sangrentos, não porque assim queriam os militares, as forças armadas, mas por decisões políticas internas e externas para acabar com os governos revolucionários, com os governos que partem do povo, assim é a história da América Latina".

"... Nós temos o direito de pautar como garantir a democracia em cada país, mas sem golpes ou tentativas de golpes”.

"Queríamos que esta conferência de ministros e ministros da Defesa garantisse uma verdadeira democracia dos povos, respeitando as nossas diferenças de região para região, de segmento para segmento”.

"Mas quando falamos de paz, eu pergunto como pode haver paz se há bases militares. E posso falar disso com algum conhecimento, porque eu tenho sido vítima de tais bases militares dos EUA, a pretexto de combater o tráfico de drogas”.

"Quando eu era um soldado raso das Forças Armadas de 1978, os oficiais e suboficiais me ensinaram a defender a pátria, as Forças Armadas têm que defender a pátria, os militares não podem permitir que qualquer militar estrangeiro uniformizado e armado permaneça na Bolívia”.

"... Quando eu me tornei líder, pessoalmente, testemunho que não só a DEA [Departamento Antidrogas dos EUA] uniformizada e armada conduzia as Forças Armadas ou a Polícia Nacional, mas também, com sua metralhadora, sob o pretexto do combate ao tráfico de drogas, combatia os movimentos sociais, perseguia com seus aviões as marchas de Santa Cruz, de Cochabamba, de Oruro, e não podiam nos encontrar nem com seus aviões, e diziam que eram marchas fantasmas... que marchar fantasmas! Chegavam milhares de companheiros trazendo reivindicações e buscando a dignidade e a soberania do nossos povos".
"... estou convencido de que, se nossos povos lutam por essa dignidade, por essa soberania, não se pode deixar fazer essas coisas com bases militares ou intervenções militares. Todos nós, por menores que sejamos, os países chamados subdesenvolvidos, países em via de desenvolvimento, temos soberania. Além do mais, quando eu estava no parlamento, tentaram me fazer aprovar a imunidade para os membros da embaixada dos EUA”.

"O que é imunidade?,Que os funcionários da embaixada dos EUA, incluindo o DEA, se cometerem um crime não serão julgados de acordo com as leis bolivianas, era uma carta aberta para matar, ferir, como fizeram na minha região."

"... A paz é a filha legítima da igualdade, da dignidade, da justiça social, se não há dignidade, se não há igualdade, se não há justiça social, não podemos garantir a paz, de onde se vai garantir? Porque há povos que se rebelam porque há injustiça".

"... ouvi o nosso secretário-geral das Nações Unidas falar sobre doutrinas, as doutrinas que conhecemos na Bolívia são doutrinas anti-comunistas de intervir militarmente nos centros de mineração, porque os movimentos sociais, os centros mineiros, eram os grandes revolucionários da transformação da Bolívia”.

"Nas décadas de 50, 60, acusavam-nos de comunistas, de “vermelhos” aos dirigentes sindicais do setor de mineração, e éramos presos, exilados, processados, massacrados. Esse tempo passou, e neste momento já não podem acusar-nos de vermelhos ou comunistas, todos têm direito de pensar diferente”.

"Se para um país, para uma região, a solução é o comunismo, tudo bem, se para outro país é o socialismo, tudo bem, para outro país, o capitalismo, tudo bem, é a decisão democrática de um país”.

"Mas agora que nós ganhamos essa luta, que não podem mais justificar uma doutrina anti-comunista para calar as pessoas, para mudar de presidente, para mudar os governos, vêm com outra doutrina, a guerra contra as drogas”.

"É claro que é obrigação de nós todos o combate às drogas [...] a Bolívia não é a cultura da droga, a Bolívia não é a cultura da cocaína, mas de onde vem a cocaína? Do mercado de países desenvolvidos, que não é de responsabilidade do governo nacional, que no entanto é forçado a combater".

"... Por trás da luta contra o tráfico de drogas não podem haver interesses geopolíticos, pois a pretexto de combater o tráfico de drogas, demonizam os movimentos sociais, criminalizam os movimentos sociais, confundem coca com cocaína, confundem o produtor de folha de coca com o traficante, ou o consumo legal da folha de coca com a dependência das drogas”.

"Por que não lutaram contra a coca antes, no século passado, se a coca faz mal, os europeus foram os primeiros proprietários a explorar a folha de coca, provavelmente faziam também cocaína”.

"Os governos dos Estados Unidos antes davam certificados de reconhecimento para os melhores produtores de folha de coca, por quê? Para que esse produtor de folha de coca pudesse atender aos mineiros, que exploravam o estanho. A intenção era levar esse estanho para os Estados Unidos”.

"... O mundo sabe, você sabe, a chamada guerra contra as drogas fracassou. Há que se mudar essas políticas, é claro. Uma nova política, por exemplo, para acabar com o sigilo bancário, ou os grandes traficantes, os peixes grandes do narcotráfico, andam carregado seu dinheiro na mochila, viajando de avião, não, circulam nos bancos. Por que não pôr fim ao sigilo bancário para acabar com a droga, para controlar o traficante de drogas?”.

"Por que não cada país defender a entrada de drogas no seu próprio país? Com as tecnologias de radar, eu sinto que há capacidade de controlar. Mas não podemos controlar, isso é somente um pretexto, o de combater tráfico de drogas, para que se apliquem políticas de controle sobre todos, especialmente voltadas para tomar os recursos naturais para as corporações transnacionais. "

"... O ex-embaixador dos Estados Unidos, Manuel Rocha, disse: ‘não votem em Evo Morales, Evo Morales é o Bin Laden andino e os cocaleiros, os talibans’”.

"Isso é, caros ministros, ministras da Defesa, vocês que concordam com esse tipo de doutrina estão neste momento reunidos com o Bin Laden andino e meus companheiros dos movimentos sociais, os talibans, segundo tais acusações e tergiversações".

"... Agora que já não podem sustentar essas teses e doutrinas anti-comunistas e anti-terroristas, há uma nova doutrina que ouvimos há dias, e aproveito esta oportunidade para informar ao meu povo através dos meios de comunicação”.

"Em 17 de novembro, em uma reunião de alguns latino-americanos e alguns congressistas dos EUA, nos Estados Unidos, em um fórum que se chamou ‘o perigo dos Andes, as ameaças à democracia, aos direitos humanos e à segurança norte-americana’...”.

"...a congressista Ileana Ros-Lehtinen, disse: ‘nos últimos anos temos observado com preocupação os esforços de diversos governantes na região, como Hugo Chávez na Venezuela, Evo Morales na Bolívia, Daniel Ortega na Nicarágua, Rafael Correa no Equador, para consolidar seu poder a qualquer custo necessário. Os membros da aliança Alba, com Chávez na cabeça, um após o outro, manipulam o sistema democrático nos seus países para servir aos seus próprios objetivos autocráticos”.

"É o caso de dizer a essa congressista que não vencemos, como nos Estados Unidos, com uma diferença de um por cento, dois por cento; aqui ganhamos com mais do que 50, ou 60 por cento, e em algumas regiões mais de 80 por cento, isso que é uma verdadeira democracia”.
"Disse sobre a agenda de Daniel Ortega, da agenda de coca impulsionada pelo presidente Evo Morales, que é uma aliança que está nascendo com o Irã e a Rússia, sobre o Rafael Correa e as reformas constitucionais de conteúdo duvidoso, anti-americano”.

"... A Bolívia sob minha direção tem acordos, alianças com o mundo inteiro, ninguém vai proibir o nosso direito, nós somos a cultura do diálogo".

"...sem parceiros estáveis, democráticos, não pode haver segurança regional. Os Estados Unidos também buscam segurança nacional, e como tal, agora mais que nunca é hora da América decidir entre apoiar os seus inimigos ou enfraquecer os seus inimigos. Por isso, agora é a hora para o Organização dos Estados Americanos absolver o seu legado de duplos padrões e, finalmente, fazer cumprir a todos os Estados-Membros seus princípios e obrigações da Carta Democrática Interamericana, deverá também rever a Carta Interamericana”.

"O segundo congressista (está falando de Connie Mack, e explica as suas ideias com estas palavras), eu tenho toda a redação, toda a intervenção, mas para ganhar tempo, para resumir, reproduzo a declaração que diz: ‘eu quero fazer algumas observações, nos últimos seis anos como membro do Congresso, francamente, eu vi as duas administrações: o governo republicano e o governo democrata”.

"Nessa linha, eu creio que essa ideia que ambas as administrações têm tido em relação a Hugo Chávez, são: a de não intervir, de sentar e deixá-lo implodir a si mesmo, e outro pensamento é que, talvez, Hugo Chávez esteja louco’, e ele disse: ‘eu não caio em nenhuma dessas noções, eu não acho que Hugo Chávez esteja louco, e não acho que o enfoque de que o deixemos que se imploda vai funcionar, Hugo Chávez é uma ameaça à liberdade e à democracia na América Latina e ao redor do mundo".

"...Isto é o que mais me preocupa, espero que ao nos tornarmos a próxima maioria no próximo Congresso, como presidente do subcomitê façamos exatamente isso, nos encarreguemos de Chávez. Derrotar politicamente ou fisicamente".

Em seguida Evo diz:

"Eu diria que esse congressista Connie Mack já é um assassino confesso ou um conspirador confesso do companheiro irmão presidente da Venezuela, Hugo Chávez”.

"Se algo acontecer com a vida de Hugo Chávez é da exclusiva responsabilidade desse congressista dos Estados Unidos, ele disse publicamente e está por escrito na mídia e em seu discurso".

"Camarada, irmão secretário-geral da OEA, você tem que expulsar a Venezuela, o Equador e a Bolívia, e um outro lugar, disse o congressista, a Nicarágua, e aplicar sanções. O que significa? Um bloqueio econômico como o de Cuba, seguramente".

"Penso que é a isso a que se referem as sanções, então como podem alguns países da América garantir a segurança, a paz, quando há as abordagens assim de alguns parlamentares, alguns latino-americanos?”.

"Eu estava verificando por qual motivo, por que Cuba foi expulsa em 1962. Por ser leninista, marxista e comunista, expulsaram Cuba da OEA. Agora a nova doutrina é uma doutrina anti-Alba e os seus países organizados. Cumprimentamos Fidel, cumprimentamos Chávez, e outros presidentes, por construírem um instrumento como a Alba, um instrumento de integração, de solidariedade, solidariedade incondicional, que partilha em vez de competir, que pratica políticas de complementaridade e não de competição”.

"... Nessa concorrência só se beneficiam pequenos grupos e não as maiorias que têm expectativas em seus presidentes”.

"Dentro dessa política de concorrência e não de complementaridade, nem o capitalismo é mais uma solução para o capitalismo, por isso há crise financeira”.

"... A nova doutrina não é como antes, quando vinham as doutrinas da escola do Panamá e o comando Sul entregava aos nossos militares; eles acabaram com isso por causa das lutas dos povos. Agora não há a escola das Américas, então o que há ? A nova doutrina é implementada por meio de operações conjuntas das forças especiais ".

"... Eu admiro alguns de meus oficiais militares que relataram em detalhes sobre os treinamentos que fazem a cada ano numa base rotativa nos diferentes países da América. Para o quê? Para ensiná-los como acabar com tais países revolucionários, países que estão fazendo mudanças democráticas profundas, treinamentos inclusive para praticar ou ensinar aos franco atiradores que matem os líderes”.

"...Com grande indignação eu havia visto algumas imagens dessas operações conjuntas das forças especiais que vão rodando em cada povo. É claro que a Bolívia não está mais envolvida e não estará envolvida enquanto eu for presidente, deste tipo de operações conjuntas que atacam a democracia”.

"... Para o movimento indígena [...] este planeta, ou a Mãe Terra, que chamam de Pachamama, pode existir sem o ser humano, mas o ser humano não podem viver sem o planeta, a Pachamama".

“... o capitalismo não é a propriedade privada, porque às vezes tentam confundir e nos dizem que o presidente Evo questiona o capitalismo, que vai tirar nossas casas, nossos carros. Não, a propriedade privada está garantida”.


“... a nova Constituição garantirá uma economia plural, e essa economia plural garantirá a propriedade privada, garantirá a propriedade comunal, estatal, de todos os setores sociais, mas quando falamos de capitalismo estamos falando deste desenvolvimento irracional, irresponsável, ilimitado”.

“Nossos companheiros já não encontram água na Amazônia. Quando começamos a perfurar em alguma região, a água encontra-se em uma profundidade cada vez maior, e pouca água. E quando não garantimos água por causa de seca, justamente produto do aquecimento global, essa família fica abandonada à sua sorte. São milhares, milhões no mundo. São migrantes climáticos”.

“Isso não vamos resolver com a participação das Forças Armadas, não podemos resolver com a participação dos ministros da Defesa e nem com cooperação. É um tema estrutural de caráter rmundial”.

“... consideramos que para resolver, a médio e longo prazo, a melhor solução para acabar com os desastres naturais é acabar com o capitalismo, substituindo essas políticas de exagerada industrialização.
“Claro que todos os países querem se industrializar, industrialização para a vida, para o ser humano e não uma industrialização para acabar com a vida, com os seres humanos. Há doutrinas que proclamam e promovem a guerra, e isso tem que terminar. E, sim, temos que acabar com essas grandes indústrias de armamentos que acabam com a vida”.
“...eu sei que muitos ministros trazem a mensagem de seus presidentes, de seus governos, de seus povos, mas sejamos responsáveis com a vida. E ser responsável com a vida é ser responsável com o planeta ou com Pachamama, com a Mãe Terra, e ser responsável com a Mãe Terra, planeta ou Pachamama é respeitar os direitos da Mãe Terra”.

“... oxalá a América possa encabeçar, mediante vocês, ministras e ministros de Defesa, a garantia dos direitos da Mãe Terra, a garantia dos direitos humanos, da vida, da humanidade, não somente para a América, mas para o mundo. Sinto que temos uma grande responsabilidade nessa conjuntura.


“Quero saudar a participação de nossas Forças Armadas, e também quero ser sincero com vocês, eu tinha muito medo, em 2005, 2006, quando cheguei à Presidência, se as Forças Armadas me acompanhariam ou não nesse processo”.

“... as Forças Armadas participaram de trabalhos sociais, nas mudanças estruturais, recuperando as minas, apoiando as políticas de recuperação dos recursos naturais, essas Forças Armadas agora são queridas pelo povo boliviano”.

“... o povo sente que tem Forças Armadas para o povo. Agora felizmente temos duas estruturas importantes no Estado Plurinacional: os movimentos sociais que defendem seus recursos naturais e as Forças Armadas, também defendendo os recursos naturais. Se voltarmos a 1810, claro, as Forças Armadas nasceram defendendo os recursos naturais, a identidade, a soberania de nosso povo. Só em alguns momentos fizeram um mau uso de nossas Forças Armadas, não por culpa dos comandantes, e sim pelos interesses oligárquicos ou estranhos a nosso povo, que evidentemente nos fizeram muito mal.”

“... com a imposição de políticas ‘pelo alto’ e de fora, que vinham do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, privatizações, desnacionalização de empresas públicas”.

"...Dos lucros do solo [...] ficavam 18 por cento para os bolivianos e 82 por cento iam para as empresas transnacionais.

"Em primeiro de maio de 2006, através de um decreto presidencial, em primeiro lugar decidimos o controle do Estado dos nossos recursos naturais, segundo, convencidos de que quem investe tem o direito de recuperar o seu investimento, e tem o direito de ter lucros, dissemos que agora eles poderiam ter 18 por cento do lucro e ainda assim recuperar o seu investimento, pois isso os técnicos me demostraram, e em maio de 2006, 82 por cento ficaram sendo dos bolivianos e 18 por cento para as empresas que transnacionais investidoras, ou seja, fizemos a nacionalização respeitando os investimentos".

Evo concluiu seu discurso, fornecendo dados irrefutáveis sobre os resultados econômicos obtidos pela revolução.
"Antes, o produto interno bruto de US $ 9 bilhões em 2005. Em 2010, tivemos 18,5 bilhões de dólares americanos de Produto Interno Bruto”.

"... Com o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, o rendimento médio por pessoa era de mil dólares por ano [...] no nosso governo, é de 1 900 dólares".

"... Em 2005 a Bolívia foi o penúltimo país em reservas internacionais, agora temos melhorado, a Bolívia tinha reservas internacionais de US $ 1,7 bilhões, agora, este ano, temos 9,3 bilhões de dólares ..."

"... Quando o governo dependia dos Estados Unidos não poderia mesmo erradicar o analfabetismo. Através da cooperação incondicional de Cuba, especialmente, e também da Venezuela, há dois anos atrás declaramos a Bolívia território livre do analfabetismo, depois de quase 200 anos”.

"Em troca desta colaboração de Cuba o que nos pedem? Nada, isso se chama solidariedade, compartilhar o pouco que temos e não compartilhar o que nos sobra, isso eu aprendi com o companheiro Fidel, e lhe tenho grande admiração."

Por pura modéstia, Evo não mencionou os avanços colossais obtidos pelo povo boliviano em matéria de saúde. Somente no campo da oftalmologia, cerca de 500 mil bolivianos fizeram cirurgias oculares, os serviços de saúde chegam a todos os bolivianos e cerca de 5 mil especialistas em Medicina Geral Integral estão se formando e em breve irão receber o seu diploma. Este país irmão latino-americano tem todas as razões para se sentir orgulhoso.

Evo conclui:

"...Sem o Fundo Monetário Internacional, ou seja, sem a imposição de políticas econômicas de privatização, de leilões, pudemos melhorar a vida democrática, sem depender dos Estados Unidos, melhoramos a nossa democracia na América Latina, esse é o resultado de cinco anos de mandato como presidente".

"Claro que eu não quero negar que a Bolívia ainda necessita de cooperação, a Bolívia ainda precisa de empréstimos internacionais, de cooperação internacional, cumprimento os países que colaboraram na Europa, América Latina, que oferecem facilidade de crédito, porque estamos em um processo de profunda transformação ..."

"... Que os povos tenham o direito de decidir por si próprios sobre a sua democracia, sua segurança. Enquanto houver atitudes intervencionistas, sob qualquer pretexto [...] certamente vai demorar a libertação dos povos, e mais cedo ou mais tarde o povo, como estamos vendo, vai se rebelar”.

"Por isso estou convencido da rebelião à revolução, da revolução à descolonização...".

Após o discurso de Evo, apenas 48 horas depois, caiu como um raio o discurso de Chávez. As luzes da rebelião estavam iluminando os céus da nossa América.

Fidel Castro Ruz


Fuente Cubadebate

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Reflexões de Fidel : A OTAN, gendarme mundial

MUITAS pessoas sentem náuseas ao escutarem o nome dessa organização.

Sexta-feira, 19 de novembro de 2010, em Lisboa, Portugal, os 28 membros dessa belicosa instituição, engendrada pelos Estados Unidos, decidiram criar o que com cinismo qualificam de "a nova OTAN".

A OTAN surgiu depois da Segunda Guerra Mundial como instrumento da Guerra Fria desencadeada pelo imperialismo contra a União Soviética, o país que pagou com milhões de vidas e uma colossal destruição a vitória sobre o nazismo.

Contra a URSS, os Estados Unidos mobilizaram, junto a uma parte sadia da população europeia, a extrema direita e toda a escória nazista e fascista da Europa, cheia de ódio e disposta a tirar proveito dos erros cometidos pelos próprios dirigentes da URSS, depois de morte de Lenin.

O povo soviético, com enormes sacrifícios, foi capaz de manter a paridade nuclear e apoiar a luta de libertação nacional de numerosos povos, se opondo aos esforços dos Estados europeus de manterem o sistema colonial imposto pela força durante séculos; Estados que no pós-guerra se aliaram ao império ianque, quem assumiu o comando da contra-revolução no mundo.

Em apenas dez dias — menos de duas semanas — a opinião mundial recebeu três grandes e inesquecíveis lições: o G-20, a APEC e a OTAN, em Seul, Yokohama e Lisboa, de modo que todas as pessoas honestas que saibam ler e escrever, e cujas mentes não tenham sido mutiladas pelos reflexos condicionados do aparelho da mídia do imperialismo, possam ter uma idéia real dos problemas que afetam hoje a humanidade.

Em Lisboa não foi dita uma só palavra que fosse capaz de transmitir esperanças a bilhões de pessoas que sofrem a pobreza, o subdesenvolvimento, a deficiência alimentar, a falta de habitação, saúde, educação e emprego.

Pelo contrário, o vaidoso personagem que figura como chefe da máfia militar da OTAN, Anders Fogh Rasmussen, declarou, em tom de pequeno führer nazista, que o "novo conceito estratégico" era para "atuar em qualquer lugar do mundo". Não foi sem razão que o governo da Turquia esteve a ponto de vetar sua designação quando Fogh Rasmussen — neoliberal dinamarquês —, como primeiro-ministro da Dinamarca, usando o pretexto da liberdade de imprensa, defendeu, em abril de 2009, os autores de graves ofensas ao profeta Maomé, uma figura respeitada por todos os crentes muçulmanos.

Não poucos no mundo lembram as estreitas relações de cooperação entre o governo da Dinamarca e os "invasores" nazistas, durante a Segunda Guerra Mundial.

A OTAN, ave de rapina chocada no seio do império ianque, dotada inclusive de armas nucleares táticas que podem ser até várias vezes mais destrutivas do que a que fez sumir a cidade de Hiroshima, está comprometida pelos Estados Unidos na guerra criminosa do Afeganistão, mais complexa ainda do que a aventura de Kosovo e a guerra contra a Sérvia, onde a cidade de Belgrado foi massacrada e estiveram a ponto de sofrer um desastre se o governo daquele país se tivesse mantido firme, em vez de confiar nas instituições de justiça européia em Haia.

A inglória declaração de Lisboa, em um de seus pontos afirma, de forma vaga e abstrata:

"Apoio à estabilidade regional, aos valores democráticos, à segurança e à integração no espaço euro-atlântico nos Bálcãs."

"A missão em Kosovo é orientada a uma presença menor e mais flexível."

Agora?

Tampouco a Rússia poderá esquecer tão facilmente: o fato real é que quando Yeltsin desintegrou a URSS, os Estados Unidos fizeram avançar as fronteiras da OTAN e suas bases de ataque nuclear para o coração da Rússia, a partir da Europa e Ásia.

Essas novas instalações militares ameaçavam também a República Popular da China e de outros países asiáticos.

Quando aconteceu aquilo em 1991, centenas de mísseis SS-19, SS-20 e outras poderosas armas soviéticas podiam alcançar, em questão de minutos, as bases militares dos Estados Unidos e da OTAN na Europa. Nenhum secretário-geral da OTAN teria ousado falar com a arrogância de Rasmussen.

O primeiro acordo sobre limitação de armas nucleares foi assinado, numa data tão antecipada, como o 26 de maio de 1972, pelo presidente dos Estados Unidos Richard Nixon e pelo secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, Leonid Brezhnev, com o objetivo de limitar o número de mísseis balísticos (Tratado ABM) e defender alguns pontos contra mísseis com carga nuclear.

Em 1979, Brezhnev e Carter assinaram em Viena novos acordos conhecidos como SALT II, mas o Senado dos Estados Unidos se negou a ratificar esses acordos.

O novo rearmamento promovido por Reagan, com a Iniciativa de Defesa Estratégica, pôs fim aos acordos SALT.

O gasoduto da Sibéria já tinha sido explodido pela CIA.

Pelo contrário, em 1991 um novo acordo foi assinado entre Bush pai e Gorbachev, cinco meses antes do colapso da URSS. Ao se produzir tal acontecimento, o campo socialista já não existia mais. Os países que o Exército Vermelho tinha libertado da ocupação nazista não foram capazes, sequer, de manter a independência. Governos de direita que acederam ao poder se passaram com armas e apetrechos à OTAN e caíram nas mãos dos Estados Unidos. O da RDA, que sob a direção de Erich Honecker, tinha feito um grande esforço, não pôde vencer a ofensiva ideológica e consumista lançada da mesma capital ocupada pelas tropas ocidentais.

Como donos virtuais do mundo, os Estados Unidos incrementaram a política aventureira e de guerra.

Devido ao processo bem manipulado, a URSS se desintegrou. O golpe de graça foi dado por Boris Yeltsin, no dia 8 de dezembro de 1991 quando, em sua condição de presidente da Federação Russa, declarou que a União Soviética tinha deixado de existir. No dia 25 desse mesmo mês e ano, a bandeira vermelha da foice e do martelo foi arriada do Kremlin.

Um terceiro acordo sobre armas estratégicas foi assinado então entre George H. W. Bush e Boris Yeltsin, no dia 3 de janeiro de 1993, que proibia o uso dos mísseis balísticos intercontinentais (ICBM suas siglas em inglês) com ogivas múltiplas. Foi ratificado pelo Senado dos Estados Unidos, no dia 26 de janeiro de 1993, com uma margem de votos de 87 contra 4.

A Rússia herdava a ciência e a tecnologia da URSS — que apesar da guerra e dos enormes sacrifícios foi capaz de equiparar seu poder com o imenso e rico império ianque —, a vitória contra o fascismo, as tradições, a cultura, e as glórias do povo russo.

A guerra da Sérvia, um povo eslavo, tinha atingido duramente a segurança do povo russo, coisa que nenhum governo podia ignorar.

A Duma russa — indignada pela primeira guerra do Iraque e a de Kosovo na qual a OTAN massacrou o povo sérvio —, se negou a ratificar o START II e não assinou esse acordo até o ano 2000, e nesse caso, para tentar salvar o tratado ABM que os ianques para essa data não lhes interessava manter.

Os Estados Unidos tratam de utilizar seus enormes recursos da mídia para manter, enganar e confundir a opinião pública mundial.

O governo desse país atravessa uma etapa difícil, em consequência de suas aventuras bélicas. Na guerra do Afeganistão estão comprometidos os países da OTAN, sem exceção alguma, e vários outros do mundo, para cujos povos resulta odiosa e nojenta a carnificina em que estão envolvidos, em maior ou menor grau, países ricos e industrializados como o Japão, Austrália e outros do Terceiro Mundo.

Qual a essência do acordo aprovado em abril deste ano pelos Estados Unidos e a Rússia? Ambas as partes se comprometem a reduzir o número de ogivas nucleares estratégicas até 1.550. Das ogivas nucleares da França, do Reino Unido e de Israel, todas capazes de golpear a Rússia, não se diz uma palavra. Das armas nucleares táticas, algumas delas com muito mais poder do que a que fez sumir a cidade de Hiroshima, tampouco se falou. Não se faz referência à capacidade destrutiva e letal de numerosas armas convencionais, as radioelétricas e outros sistemas de armamentos aos quais os Estados Unidos dedicam seu crescente orçamento militar, superior aos de todas as outras nações do mundo juntas. Ambos os governos conhecem, e talvez outros muitos daqueles que ali se reuniram, que uma terceira guerra mundial seria a última. Que tipo de expectativas podem criar os membros da OTAN? Qual a tranqüilidade que dessa reunião deriva para a humanidade? Que benefício para os países do Terceiro Mundo e, inclusive, para a economia internacional, é possível esperar?

Não podem sequer oferecer a esperança de que a crise econômica mundial possa ser ultrapassada, nem quanto duraria essa melhoria. A dívida pública total dos Estados Unidos, não só a do governo central, mas também do resto das instituições privadas desse país, eleva-se já a uma cifra que iguala o PIB mundial de 2009, que era de 58 trilhões de dólares. Por acaso os que se reuniram em Lisboa se perguntaram de onde saíram esses fabulosos recursos? Simplesmente, da economia de todos os demais povos do mundo, aos quais os Estados Unidos entregaram papéis convertidos em divisas que, ao longo de 40 anos, unilateralmente, deixaram de ter respaldo em ouro e agora o valor desse metal é 40 vezes superior. Esse país ainda dispõe de poder de veto no Fundo Monetário Internacional e no Banco Mundial. Por que é que isso não foi discutido em Portugal?

A esperança de retirar do Afeganistão as tropas dos Estados Unidos, da OTAN e de seus aliados é idílica. Terão de abandonar esse país antes de serem derrotados e entreguem o poder à resistência afegã. Os próprios aliados dos Estados Unidos já começam a reconhecer que poderiam transcorrer dezenas de anos antes de finalizar essa guerra, e a OTAN estará disposta a permanecer ali durante esse tempo todo? Será permitido pelos próprios cidadãos de cada um dos governos ali reunidos? Não se pode esquecer que um país de grande população, o Paquistão, partilha uma fronteira de origem colonial com o Afeganistão e uma percentagem não desprezível de seus habitantes.

Não critico Medvedev, faz muito bem em tentar limitar o número de ogivas nucleares apontadas para seu país. Barack Obama não pode inventar justificação alguma. Seria risível imaginar que esse colossal e custoso desdobramento do escudo nuclear antimíssil é para proteger a Europa e a Rússia dos mísseis iranianos, procedentes de um país que não possui sequer um artefato nuclear tático. Isso não pode ser afirmado nem sequer em um livro de histórias em quadrinhos.

Obama já admitiu que sua promessa de retirar os soldados norte-americanos do Afeganistão poderia se dilatar e os impostos aos contribuintes mais ricos serem suspensos de imediato. Depois do Prêmio Nobel haveria que conceder-lhe o prêmio ao "maior encantador de serpentes" que tenha existido jamais.

Tomando em conta a autobiografia de W. Bush, tornada já um sucesso, que algum redator inteligente elaborou para ele, por que não o convidaram a Lisboa? Certamente, a extrema direita, o "Tea Party" da Europa, estaria feliz.

Fidel Castro Ruz

O Estado não caiu de Marte

Na abertura da primeira Conferência do Desenvolvimento, nesta quarta-feira, em Brasília, o ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, Samuel Pinheiro Guimarães defendeu que o Brasil precisa investir em planejamento e no incremento das taxas de desenvolvimento do país, especialmente em áreas estratégicas como educação, saúde e cultura. A idéia do planejamento, lembrou, ainda tem muitos inimigos, dentro e fora do Brasil. "Ela não é muito aceita por aqueles que pensam que é o mercado que deve decidir sobre o planejamento". O fracasso do Consenso de Washington, porém, recoloca essa questão na ordem do dia.

O artigo é de Katarina Peixoto.

O ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República, Samuel Pinheiro Guimarães, defendeu nesta quarta-feira, na abertura da primeira Conferência do Desenvolvimento, que o Brasil precisa investir em planejamento e no incremento das taxas de desenvolvimento do país, especialmente em áreas estratégicas como educação, saúde e cultura. “O Brasil tem uma renda per capita muito inferior a de países de sua dimensão e ainda apresenta indicadores de subdesenvolvimento que persistem e precisam ser superados. Este é um processo que implica, em primeiro lugar, aumentar a produção e não só dos bens físicos. Em segundo lugar, é necessário diminuir a concentração de renda e melhorar sua distribuição”, destacou.

Além de modificar a estrutura da distribuição de renda, Samuel Pinheiro Guimarães defendeu a integração dos sistemas de transportes, energia e rede de saneamento. “Tudo isso dentro de um contexto de preocupação com as gerações futuras. A exploração predatória dos recursos equivale a situação predatória dos recursos humanos”, observou. Samuel Pinheiro Guimarães também disse que o processo de planejamento do Brasil deve levar em conta os vizinhos da América do Sul. “A nossa vizinhança é a América do Sul. Devemos ter interesse na nossa região como um todo. O Brasil não se desenvolverá plenamente sem a América do Sul”.

No hemisfério Norte, planejamento é visto como “coisa de comunista”
A ideia de planejamento, lembrou ainda o ministro, ainda tem muitos adversários no Brasil e fora dele. “Posto o desafio de vencer o subdesenvolvimento, a questão do planejamento se coloca imediatamente. Ela não é muito aceita entre aqueles que acreditam que o Brasil já é um país desenvolvido. Eles pensam que é o mercado que deve decidir sobre o planejamento. A ideia de planejamento, em países desenvolvidos do hemisfério norte, é considerada coisa de socialista, de comunista. Para eles, não é necessário planejar. O mercado aloca os recursos e garante tudo. Já nos países subdesenvolvidos, a necessidade do planejamento é absoluta”.

“O Estado não caiu de Marte”, ironizou “Os investimentos do Estado são investimentos coletivos, através dos seus representantes. Ele deve ser enquadrado e metas devem ser estabelecidas. Sem metas não se sabe aonde vai. Mas elas não podem ser apenas metas genéricas, monetárias. É necessário que haja metas na área da educação, da cultura. É necessário também aumentar a taxa de desenvolvimento para ver, entre outras coisas, se a diferença de renda que nos separa dos países ricos está diminuindo ou está aumentando”.

Samuel Pinheiro Guimarães destacou a iniciativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) de realizar a Conferência. “É necessário conhecer. E o conhecimento resulta da pesquisa. E o IPEA é a instituição crucial para isso no Basril, é a mais antiga. A função do IPEA é extraordinária nesse processo”.

O Consenso de Washington e os erros do passado

O planejamento, defendido pelo ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, foi o tema central do primeiro painel da Code, reunindo o presidente do IPEA, Marcio Pochmann, os membros do Conselho de Orientação do Instituto João Paulo dos Reis Velloso, ex-ministro do Planejamento, e Cândido Mendes, além do secretário executivo de Planejamento e Investimentos Estratégicos do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, Afonso Oliveira de Almeida. O painel foi mediado pelo representante do instituto na região Norte, Guilherme Almeida.

Cândido Mendes disse que um dos avanços do País nos últimos anos foi ter saído do chamado “Consenso de Washington”, onde investimento e poupança se dão, fundamentalmente, em função da iniciativa privada. “Isso permitiu que tivéssemos um modelo econômico claro de produção com distribuição de renda, com a oportunidade de manter e desdobrar o desenvolvimento”. Programas como o Bolsa Família, destacou, são iniciativas acertadas, já que permitem a milhões de brasileiros se encontrar no processo de mobilidade social.

João Paulo dos Reis Veloso, por sua vez, propôs um modelo de desenvolvimento para o País baseado no conhecimento. “Na dimensão econômica, é preciso levar o conhecimento em todas as suas formas para todos os setores da economia e na dimensão econômico-social, levar o conhecimento a todos os segmentos da sociedade, promovendo inclusão social, inclusão digital. Isso exige a transformação do Brasil em um país de alto conteúdo humano interagindo com inovação e tecnologia”.

Veloso assinalou ainda que o Brasil fez opções erradas no passado “Não fizemos mudanças e reformas que deveriam ser feitos. Levantes armados não são revoluções. Revolução é uma grande transformação econômica, social e política, por isso ficamos atrás de onde deveríamos estar”. Para tornar o Brasil desenvolvido em duas ou três décadas, acrescentou, é preciso sonhar e criar uma mobilização por um modelo com grande geração de empregos. “Se não fizermos essa opção, seremos a geração perdida.”

Já Afonso Almeida destacou que um dos ganhos mais importantes que o País teve nos últimos anos foi o resgate de agendas que estavam esquecidas, como o combate à fome, o saneamento básico e os investimentos no ensino médio e na universidade pública. “Houve uma importante mudança no modelo mental do governo, que considerava que eficiência do gasto e melhoria do gasto era simplesmente não gastar nada.”

Três entraves para o desenvolvimento

Marcio Pochmann assinalou que o planejamento do desenvolvimento exige sabedoria para enfrentar questões que nos conectam ao passado e que nos ligam ao futuro. O presidente do IPEA apontou três razões para o fato de o Brasil não ser, ainda, um país desenvolvido. “o fato de o Brasil não ter cultura democrática, a demora na transição para uma sociedade urbana e industrial e a inversão na trajetória dos direitos sociais, que, no Brasil, vieram antes dos direitos políticos”.

Pochmann defendeu ainda a necessidade de entender melhor os processos de hipermonopolização do capital e as profundas mudanças em curso na estrutura demográfica da população brasileira, além de reconhecer novas fontes de riqueza, como o trabalho imaterial. E apontou, por fim, um fator subjetivo que estaria atrapalhando o desenvolvimento do Brasil: o medo. “Esperamos que a Code nos afaste do medo e que, pela rebeldia, nós caminhemos mais rápido para o Brasil do futuro. O Brasil deste início de século tem pressa e não admite mais incorrer nos velhos erros. É hora de pormos em prática o exercício da grande arte da política pública para garantir a universidade da igualdade e a geração de oportunidades”.

(*) Com informações do Portal do IPEA

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A via brasileira

Por Emir Sader

Havia dois horizontes para as elites brasileiras: o Estado de bem estar social europeu ou o dinamismo e a afluência ao consumo dos EUA. O primeiro estava identificado com civilização e com estabilidade. O segundo, com dinamismo e modernização.

O getulismo tinha sido nosso modelo de bem estar social, com o Estado assumindo responsabilidade sobre o desenvolvimento econômico e os direitos dos trabalhadores. Foi sempre repudiado pelas elites que, mesmo beneficiadas pela expansão industrial propiciada pelos governos, manteve sempre repúdio a Getúlio, por não se considerar representada politicamente nele. O modelo de aliança de classes que Getúlio representava, com expansão do mercado interno e base popular de apoio, nunca foi digerido nem sequer pela burguesia industrial.


Mesmo JK - claramente mais moderado no estilo de liderança política -, além da hegemonia econômica que passou a estar em mãos do capital estrangeiro, com a instalação do parque automobilístico, nunca foi de agrado, por exemplo do grande empresariado paulista. (JK ficou em terceiro lugar nas eleições de 1955, atrás de Adhemar de Barros e do candidato udenista, Juarez Távora.)

O governo Jango já se instalou quando o impulso econômico apresentava sinais de esgotamento, com uma grande pugna redistributiva entre trabalhadores e grande empresariado tomando conta do cenário político e refletindo-se em brote inflacionário. A resolução do conflito se deu pela via violenta (“A burguesia prefere um fim com violência do que uma violência sem fim”, dizia Marx no XVIII Brumário.). O modelo instalado cortou bruscamente o processo de distribuição de renda com expansão do mercado internacional, favorecendo a acumulação de capital centrada no consumo da alta esfera do mercado e na exportação. O arrocho salarial e a intervenção em todos os sindicatos produziu uma lua de mel para o grande capital nacional e internacional, que nunca ganhou tanto como na ditadura.

O eixo de referência da elite se unificava em torno do modelo norteamericano de livre comércio, de competição, de crescimento com exclusão social e concentração de renda, de dinamismo do capital internacionalizado. O tema do bem estar social desapareceu, o desenvolvimento foi assimilado à expansão do grande capital internacionalizado, o mercado interno de consumo popular ficou deprimido.

A redemocratização foi atropelada pela crise de 1979/1980, quando a economia deixou de crescer –praticamente pela primeira vez desde 1930 -, e a crise da dívida fez a economia funcionar em função da exportação para arrecadar recursos para pagar a divida – multiplicada pela crise. Desenvolvimento e bem estar social ficaram relegados.

A década neoliberal enterrou de vez o desenvolvimento, promovendo a estabilidade monetária a objetivo central. A democratização não trouxe nem retomada da expansão econômica, nem melhoria social da massa da população. O neoliberalismo institucionalizou essa tendência, na expectativa que o controle da inflação se refletiria nas condições sociais da população. O que foi imediatamente verdade, até que esse impulso se esgotou, a economia, por sua vez, foi jogada na maior recessão dos últimos tempos e a situação social do povo voltou a se degradar fortemente.

A social democracia tinha chegado ao governo na era da sua conversão ao neoliberalismo – a começar pela França e pela Espanha, referencias centrais dos tucanos. Não trouxe o Estado de bem estar social, mas o modelo mais mercantilista que tínhamos conhecido.

Com o governo Lula, a superação da crise foi feita mediante um novo modelo, que foi sendo construído aos poucos. Que incorporou o consenso nacional de controle da inflação, mas não fez dele o centro do modelo, apenas uma de suas dimensões. A especificidade do novo modelo foi a retomada do crescimento econômico estruturalmente articulado com a expansão do mercado interno do consumo de massas, requerendo portanto políticas sociais e papel indutor do crescimento e da garantia dos direitos sociais pelo Estado. O Brasil vai construindo assim seu próprio caminho de desenvolvimento histórico.


terça-feira, 23 de novembro de 2010

As linhas de Chávez

Soldado Bolivariano!

Na segunda-feira, 8 de novembro, estivemos celebrando o décimo aniversário do Convênio Integral de Cooperação Cuba-Venezuela, em Havana. Não é pouca coisa o que temos conquistado durante estes dez anos de sua vigência. Desde aquele luminoso 30 de outubro de 2000 em que foi firmado pelo Comandante Fidel Castro e por este servidor, Cuba e Venezuela tem dado vida a um novo modelo de relacionamento entre dois países, entre dois povos.

Dez anos... Com dificuldades, haja vista a quantidade de obstáculos que temos tido que superar para tornar realidade o conjunto de grandes benefícios que agora desfrutam nossos povos: benefícios que, hoje mais que nunca, legitimam o fortalecimento do Convênio para que possa transitar mais dez anos rumo à consolidação de nossas revoluções, cada uma com suas matizes, visões e propósitos diversos, mas com uma poderosa raiz fundamental de onde nossas Repúblicas recebem seus nutrientes. Refiro-me ao legado de Bolívar e Martí, um mesmo sentimento latino-americano e de patriótica humanidade: é o legado do qual é a encarnação viva o Comandante Fidel Castro.

Tenhamos presente que este Convênio foi a pedra fundamental da ALBA. Cuba e Venezuela tem traçado um caminho comum e compartilhado aquilo que vai muito além da integração, para retomar e reivindicar plenamente a bandeira histórica que nos legaram nossos Libertadores: a unidade. A unidade fraterna que se baseia na cooperação, na complementação, na interdependência, no apoio mutuo e na plena identificação com a causa do socialismo: do socialismo não como receita, como dogma, mas como construção coletiva e, nas palavras de Mariátegui, como criação heróica de cada povo.

A grande fraternidade entre Cuba e Venezuela tem uma longa história. Uma história que começa com os planos de Bolívar e Sucre para liberar Cuba, abortados pelos inimigos históricos de nossos povos, Páez e Santander, que também deixaram seu legado, sim, mas de vergonha: é o legado que encarnam as oligarquias, que fazem o possível e o impossível para reduzir nossa América a uma nova colônia.

Falando de
Bolívar e do processo de independência tantas vezes interrompido e mesmo frustrado, dizia José Martí em 1893: Se por acaso em seu sonho de glória, para a América e para si, não viu que a unidade de espírito, indispensável à salvação de nossos povos americanos, padecia, mais que ajudava, com sua união em formas teóricas e artificiais que não se acomodavam sobre a segurança da realidade.

E para
atuar sobre a segurança da realidade, nada mais pertinente que assumir mudanças radicais, fundamentadas em uma nova subjetividade. O mesmo Martí, em 1891, havia enfrentado esta fórmula: O problema da independência não era a mudança de formas, mas a mudança de espírito. Durante esses dez anos, Cuba e Venezuela tem promovido, precisamente, uma mudança de espírito.

São dez anos que têm sido marcados por conquistas históricas da maior importância, que muito dificilmente teríamos podido alcançar sem o apoio fraterno e solidário entre nossos povos e governos.


Bem disse Raul em 8 de novembro
: Este convênio constituiu, até o presente, a base fundamental para a consolidação de nossos vínculos. Mediante sua execução temos levado a cabo ações de elevado benefício econômico e social para ambos os povos. Entre os setores mais favorecidos nestes programas se encontram a saúde, educação, cultura, esportes, agricultura, modernização energética, mineração, informática, telecomunicações e a formação integral de quadros, entre outros não menos importantes.

No
caso da Venezuela, basta pensar na Missão Robinson (a erradicação do analfabetismo na Venezuela) e na Missão Bairro Adentro (a primeira experiência histórica de exercício sistemático da medicina social em nossa pátria). É por isso que contar com a Revolução Cubana, tem sido e é para a Revolução Bolivariana um poderoso motivo de alento e estímulo na batalha por nossa definitiva Independência.

Para
trás, no lixo da história, ficaram os maquinadores e apátridas de sempre, aos quais Víctor Valera Mora cantava com seu verso rebelde na década de 60 do século passado: Se enraivecem porque Cuba é o mais imediato querer / e a vergonha de Fidel é toda a dignidade em pé de guerra.

Parafraseando nosso Libertador, o que Cuba e Venezuela já tem feito é um prelúdio do que vamos fazer nos próximos dez anos.

II

Os canalhas tem buscado
converter as palavras de um soldado venezuelano, palavras que expressam uma firme posição de dignidade, como pretexto para agredir a Pátria, transgredindo o que o bom sentido dita e insinuando qualquer tipo de intervenção externa contra Venezuela.

Esses canalhas que aplaudem tudo o que vomita um confesso narcotraficante da Colômbia contra os poderes nacionais, de nossas instituições e de compatriotas de longa trajetória ao que me uno em nome da pátria e da vocação de serviço, são os mesmos canalhas que pedem que joguemos aos leões o General Henry Rangel Silva, precisamente por diferenciar-se anos luz daquela casta militar corrupta e complacente com os interesses apátridas. Hoje algumas vozes daquela casta liquidada historicamente pela Revolução Bolivariana, dirigem a partir dos meios de comunicação e a partir de todos aqueles lugares onde não coloque em perigo a comodidade de que gozam, covardes como sempre foram, todo classe de ataques contra nosso respeitado e querido companheiro de armas.

A eles tem se unido certos atores internacionais, tão lamentavelmente insignificantes em relação aos inúteis organismos que representam. Me refiro, concretamente, ao Secretário Geral da OEA, José Miguel Insulza. Suas infelizes declarações não são outra coisa que um desrespeito contra nossa soberania, mesmo que saiba, como diplomata de longa carreira, das conseqüências que uma declaração gratuita e irresponsável pode provocar.

Por todas estas razões que tem transformado esta situação num problema de caráter nacional, de dignidade e honra patriótica, convidei especialmente ao General Henry Rangel Silva ao Conselho de Ministros, na quinta-feira 11 de novembro, para brindar-lhe nossa solidariedade e firmar nossa posição de Estado, reafirmando que a Venezuela deve ser respeitada. Não pedimos outra coisa.

O General Rangel, um soldado bolivariano, um soldado patriota, um soldado revolucionário, é o chefe do Comando Estratégico Operacional, e a campanha de infâmias contra sua pessoa, orquestrada a partir da mídia golpista, se converte em uma ofensa a nossas digníssimas Forças Armadas Bolivarianas.

A
s declarações do General Rangel Silva são as de um soldado que ama o que faz: um soldado comprometido com a transformação de nossas Forças Armadas Bolivarianas; são as palavras de um oficial com um respeito sagrado à profissão, manifestado pela mesura e inteligência de suas respostas e afirmações.

Eu o
ascendi ao grau de General em Chefe como um reconhecimento de seus méritos e suas virtudes. E como um reconhecimento, por tudo o que Rangel Silva encarna: a todos os soldados e soldadas de nossa Pátria; às soldadas e soldados apegados ao espírito e à letra da Constituição Bolivariana; às defensoras e defensores das garantias sociais, dos direitos do povo.

Soldados que me lêem: Nunca mais estaremos a serviço da apátrida burguesia e seus amos imperiais!

Vamos para sempre com Bolívar: “eu sigo a carreira gloriosa das armas só para obter a honra que elas me dão; por libertar a minha Pátria; e por merecer as benções dos povos”.

“Venceremos”.

Traduzido por Juliano Medeiros

Uma expressão da barbárie

O conflito colombiano: Forma violenta do capitalismo

Por Carlos A. Lozano Guillén

(É advogado e jornalista colombiano. Director do jornal VOZ. Dirigente do Partido Comunista Colombiano e do Pólo Democrático Alternativo. Autor de sete livros e de numerosos ensaios em jornais e revistas.)


A história política da Colômbia é a história dos grandes conflitos sociais e económicos. Faz apenas quarenta anos, mais ou menos, que se publicou o texto “Os grandes conflitos sociais e económicos da nossa história”, primeira tentativa de escrever a “nova história da Colômbia”, diferente da tradicional e confessional que se transmite de geração em geração até aos nossos dias. O autor foi Indalécio Liévano Aguirre. No inicio, o texto afirma o seguinte: “A conquista e a colonização da América serão objecto de infindas controvérsias enquanto se insistir em as descrever como um processo homogéneo e rectilíneo e não como um conflito dinâmico, dentro o qual as chamadas Lenda Negra e Lenda Rosa representam, apenas, as duas tendências que ao longo dos séculos coloniais inspiraram a grande controvérsia entre o Estado espanhol e os poderes senhoriais da riqueza. No relato que vamos fazer dos episódios principais da nossa história desde a conquista, se poderão perceber as origens dessa grande controvérsia e a maneira decisiva como ela ancorou no centro de gravidade da nossa sociedade o grande debate entre a justiça que defende os humildes e todas as formas de opressão que favorecem os poderosos”.(1)

Essa espécie de confrontação é constante, porque as classes dominantes desde “A Conquista”, acostumaram-se a exercer o poder mediante o exercício da violência. Nem sequer a época republicana se livrou desta perversa tendência oligárquica, depois de Simón Bolívar, a história colombiana desde finais do século XVIII até aos nossos dias, manteve essa constante. O pequeno, mas poderoso círculo governante, impôs a “lei e a ordem” sob métodos repressivos e terroristas de Estado. Mediante o extermínio do contraditor e os estatutos de segurança, como a lei heróica, a lei dos cavalos, o estatuto de segurança, a segurança democrática, entre outros. Todos orientados para impor a ordem e neutralizar a subversão em defesa dos interesses imperialistas e da oligarquia dominante. Esta é a causa de tantos conflitos e de guerras civis ao longo da história.

“Para entender o conflito político, social e armado que afecta o país no momento actual, basta seguir a trajectória da história da violência na Colômbia nos últimos cinquenta anos, que é apenas uma das tantas violências que a classe dominante impôs ao povo, porque ao fim e ao cabo não conheceu outra forma de governar para fixar o regímen antidemocrático e despótico que garante gordos benefícios á oligarquia, que lucra com o poder em cada etapa do processo de acumulação capitalista. Primeiro foram os latifundiários, depois a burguesia detentora dos meios de produção e na actualidade o capital financeiro, proporcionado pelo modelo neoliberal do capitalismo selvagem e os poderosos grupos económicos que concentram cada vez mais a riqueza, naturalmente amarrados como usufrutuários do poder dominante, ligado aos interesses imperialistas”.(2)

O conflito político, social e armado da actualidade, o último de tantas violências dos 500 anos de existência e 200 da primeira independência, teve a sua origem em meados do século passado nas lutas camponesas pela reforma agrária e da contradição com os latifundiários, protegidos pelo governo de então (Mariano Ospina Pérez, conservador) a ferro e fogo. Foi a época em que se consolidaram as formas terroristas do Estado colombiano, que ainda perduram.

A Colômbia era na época um país agrário, de economia agrária e com a maior concentração da riqueza e população no campo. Apenas 3 por cento dos proprietários controlava 95 por cento da terra fértil. Sessenta anos depois, apesar da Colômbia ser um país urbano, com forte economia agro-industrial e com ritmos altos na produção industrial, nunca se fez uma reforma agrária. Antes pelo contrário, nos últimos vinte anos, o emaranhado de políticos regionais tradicionais, as máfias do narcotráfico e o para-militarismo, avançaram com uma contra-reforma agrária para despojar da terra os médios e pequenos camponeses. Despejo imposto com a protecção dos governantes, mesmo em formas descaradas de assistência a latifundiários e outros sectores da oligarquia, como o Programa de Agro Ingresso Seguro no anterior Governo, que entregou milhões e milhões de pesos em subsídios e ajudas aos ricos, em aberto desafio às comunidades empobrecidas da agricultura colombiana.

São estas as razões do conflito, que se retroalimentou nos últimos trinta anos com a configuração excludente de um sistema bipartidarista de formas repressivas e da liquidação das liberdades públicas, que afastam a possibilidade de um Estado social de direito, como consagra a Constituição Política de 1991 na sua letra morta. Precisamente, por a oligarquia dominante, em cada momento, se negar a alterar esta situação, é que fracassaram todos as tentativas nos últimos 30 anos de encontrar a paz mediante o diálogo com as guerrilhas. Não há uma vontade política de mudança na classe dominante, preferem a paz dos cemitérios á paz romana. A causa do fracasso dos processos de paz ou de diálogo foi a resistência do governo de turno, pressionado pela classe dominante e pelo imperialismo ianque, a aceitar alterações políticas, sociais e económicas que erradiquem as causas do conflito. Cada governo prefere a linha da guerra, com a velha ambição de levar a guerrilha derrotada á mesa de diálogo para assinar a desmobilização e a rendição.

É a causa de tantos fracassos e de tantas frustrações do povo colombiano, que anseia pela paz. O conflito prolongou-se de maneira indefinida, conhecendo altos níveis de degradação e barbárie. Por esta razão, um diálogo de paz deve começar por acordos humanitários bilaterais, que comprometam as partes na aplicação e respeito pelo direito internacional humanitário. Contudo, o fracasso da via militar é evidente, e mais ainda depois dos oito anos de guerra sustentada na chamada “segurança democrática” nos dois governos de Álvaro Uribe Vélez, incluindo a entrega de parte do território nacional para a instalação de bases militares norte-americanas.

É a linha em que persiste o governo actual de Juan Manuel Santos, que chegou ao desaforo de qualificar Uribe Vélez como o segundo libertador da Colômbia. Enquanto insiste nas operações militares e bombardeamentos aéreos indiscriminados e calculados, sempre com o apoio do governo dos Estados Unidos, que lhe permitiu assestar duros golpes na guerrilha das FARC, embora sem acabar com ela como é a pretensão e a propaganda. Não chegou o “sonho dourado” da madre de todas as batalhas que permita ao governo da Colômbia arrasar a totalidade da força guerrilheira.

Depois do sete de Agosto passado, quando Juan Manuel Santos assumiu a presidência, as FARC fizeram pelo menos três tentativas de abrir um cenário de diálogo, com uma agenda concreta que incluía cinco pontos como o direito internacional humanitário, a reforma agrária, o modelo económico, as mudanças políticas e as bases militares e a soberania nacional. Santos, por seu lado, assegura que tem na sua mão a chave do diálogo, condicionado a gestos de vontade de paz da guerrilha, ainda que a ênfase seja colocada nos meios operativos militares e de guerra. Tudo num clima de confrontação e perseguição aos opositores como é o caso da senadora Piedad Córdoba e de tantos colombianos e colombianas que trabalham para construir um novo país em condições de paz com democracia e justiça social.

A via militar é inviável. A solução política negociada do conflito, a via pacífica e democrática, apoiada nas massas populares, é a única que pode tirar o país da crise. Neste sentido é importante fortalecer os processos de unidade em redor do Pólo Democrático Alternativo e de outros sectores políticos e sociais, que se pronunciam pela paz e o fortalecimento da democracia. É a contradição entre a barbárie e a civilização, Entre as forças progressistas e o fascismo; entre os que queremos uma Colômbia democrática virada para os processos latino-americanos e os que insistem em estar atados á tirania imperialista que impõe o atraso e a guerra.

(1) LIEVANO, Aguirre Indalecio Os grandes conflitos sociais e económicos da nossa história. Intermedio Editores 2002. Pág. 19

(2) ANO, Guillén Carlos A. Guerra ou Paz na Colômbia? Cinquenta anos de um conflito sem solução. Edições Izquierda Viva y Ocean Sur. 2006. Pág. 37


Tradução para português: Guilherme Coelho

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

O que foi a Revolta da Chibata?

À direita, João Candido. (foto)

Em 22 de novembro de 1910, 2.400 marinheiros rebelam a Armada de Guerra, chefiados por João Cândido. Não querem mais ser açoitados. Têm um comitê clandestino e sofrem influência socialista. Para o pasmo da oficialidade racista, o Almirante Negro manobra a frota com precisão e elegância.

Por Clóvis Moura*, em História do Negro Brasileiro

Uma das instituições na qual o comportamento escravista dos seus superiores mais se evidenciava era a marinha de Guerra do Brasil. O uso do açoite como medida disciplinar continuou sendo aplicado nos marinheiros, como no tempo em que existia o pelourinho. Todos os marinheiros, na sua esmagadora maioria negros, continuavam a ser açoitados às vistas dos companheiros, por determinação da oficialidade branca.

Os demais marujos eram obrigados a assistir à cena infamante no convéns das belonaves. Com isto, criaram-se condições de revolta no seio da marujada. Os seus membros não aceitavam mais passivamente esse tipo de castigo.


Chefiados por Francisco Dias, João Cândido e outros tripulantes do Minas Gerais, navio capitânia da esquadra, organizaram-se contra a situação humilhante de que eram vítimas. Nos outros navios a marujada também se organizava: o cabo Gregório conspirava no São Paulo, e no Deodoro havia o cabo André Avelino.

Dia 22 de novembro de 1910. Final praticamente de mais um ano do início do governo do marechal Hermes da Fonseca. A informação chega até o presidente: a esquadra se sublevara. O movimento que vinha sendo articulado pelos marinheiros foi antecipado em face da indignação dos marujos contra o espancamento de mais um companheiro. O marinheiro negro Marcelino recebeu 250 chibatadas aos olhos de toda a tripulação, formada no convés do Minas Gerais. Desmaiou, mas os açoites continuaram.

Os marinheiros, tendo João Cândido como líder, resolveram sublevar-se imediatamente. Num golpe rápido, apoderaram-se dos principais navios da Marinha de Guerra brasileira e se aproximaram do Rio de Janeiro. Em seguida mandaram mensagem ao presidente da República e ao ministro da Marinha exigindo a extinção do uso da chibata.

O governo ficou estarrecido. Supôs tratar-se de um golpe político das forças inimigas. O pânico apoderou-se de grande parte da população da cidade. Muitas pessoas fugiram. Somente em um dia correram 12 composições especiais para Petrópolis, levando 3 000 pessoas. Todos os navios amotinados hastearam bandeiras vermelhas. Alguns navios fiéis ao governo ainda tentaram duelar com os revoltosos, mas foram logo silenciados. Com isto os marujos criaram um impasse institucional.

De um lado a Marinha, que queria a punição dos amotinados, em conseqüência da morte de alguns oficiais da armada. Do outro lado, o governo e os políticos, que sabiam não ter forças para satisfazer essa exigência. Mesmo porque os marinheiros estavam militarmente muito mais fortes do que a Marinha de Guerra, pois comandavam, praticamente, a armada e tinham os canhões das belonaves apontados para a capital da República.

Depois de muitas reuniões políticas, nas quais entrou, entre outros, Rui Barbosa, que condenou os “abusos com os quais, na gloriosa época do abolicionismo, levantamos a indignação dos nossos compatriotas”, foi aprovado um projeto de anistia para os amotinados. Com isto, os marinheiros desceram as bandeiras vermelhas dos mastros dos seus navios. A revolta havia durado cinco dias e terminava vitoriosa. Desaparecia, assim, o uso da chibata como norma de punição disciplinar na Marinha de Guerra do Brasil.

As forças militares, não-conformadas com a solução política encontrada para a crise, apertam o cerco contra os marinheiros. João Cândido, sentindo o perigo, ainda tenta reunir o Comitê Geral da revolução, inutilmente. Procuram Rui Barbosa e Severino Vieira, que defenderam a anistia em favor deles, mas sequer são recebidos por esses dois políticos. Unem-se, agora, civis e militares para desafrontar os “brios da Marinha de Guerra” por eles atingidos. Finalmente vem um decreto pelo qual qualquer marinheiro podia ser sumariamente demitido. A anistia fora uma farsa para desarmá-los.

São acusados de conspiradores, espalham boatos de que haveria uma outra sublevação. Finalmente, afirmam que a guarnição da ilha das Cobras havia se sublevado. Pretexto para que a repressão se desencadeasse violentamente sobre os marinheiros negros. O presidente Hermes da Fonseca necessitava de um pretexto para decretar o estado de sítio, a fim de sufocar os movimentos democráticos que se organizavam. As oligarquias regionais tinham interesse em um governo forte. Os poucos sublevados daquela ilha propõem rendição incondicional, o que não é aceito. Segue-se uma verdadeira chacina. A ilha é bombardeada até ser arrasada. Estava restaurada a honra da Marinha.

João Cândido e os seus companheiros de revolta são presos incomunicáveis, e o governo e a Marinha resolvem exterminar fisicamente os marinheiros. Embarca-os no navio Satélite rumo ao Amazonas.

Os 66 marujos que se encontravam em uma masmorra do Quartel do Exército e mais 31, que se encontravam no Quartel do 1º Regimento de Infantaria, são embarcados junto com assassinos, ladrões e marginais para serem descarregados nas selvas amazônicas. Os marinheiros, porém, tinham destino diferente dos demais embarcados. Ao lado dos muitos nomes da lista entregue ao comandante do navio, havia uma cruz vermelha, feita a tinta, o que significava a sua sentença de morte. Esses marinheiros foram sendo parceladamente assassinados: fuzilados sumariamente e jogados ao mar.

João Cândido, que não embarca no Satélite, juntamente com alguns companheiros foram recolhidos a uma masmorra da ilha das Cobras, onde viviam como animais. Dos 18 recolhidos ali, 16 morreram. Uns fuzilados sem julgamento, outros em conseqüência das péssimas condições em que viviam enclausurados.

João Cândido enlouqueceu, sendo internado no Hospital dos Alienados. Tuberculoso e na miséria, consegue, contudo, restabelecer-se física e psicologicamente. Perseguido constantemente, morre como vendedor no Entreposto de Peixes da cidade do Rio de Janeiro, sem patente, sem aposentadoria e até sem nome, este herói que um dia foi chamado, com mérito, de Almirante Negro.

*Clóvis Moura foi sociólogo, jornalista, historiador e escritor. Destacou-se pela militância pioneira no movimento negro brasileiro. Faleceu em 2003.