Homenagem a Manuel Marulanda - por James Petras
Escrito por James Petras
02-Jun-2008
Pedro Antonio Marín Marín, mais conhecido como Manuel Marulanda Vélez e "Tirofijo", era o líder máximo das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Foi, sem dúvida alguma, o maior campesino revolucionário da história do continente americano. Durante sessenta anos organizou movimentos campesinos e comunidades rurais e, quando todas as vias democráticas legais se lhe fecharam de forma brutal, criou o exército guerrilheiro mais poderoso da América Latina e as milícias clandestinas que o sustentavam. Em sua época de maior apogeu, entre 1999 e 2005, as FARC contavam com quase 20.000 combatentes, várias centenas de milhares de campesinos ativistas e centenas de unidades de milícias comunais e urbanas.
Inclusive hoje, apesar do deslocamento forçado de três milhões de campesinos como resultado das políticas de terra arrasada e os massacres do governo, as FARC têm entre 10.000 a 15.000 guerrilheiros em suas numerosas frentes, distribuídas por todo o país.
O que faz tão importantes as conquistas de Marulanda são suas habilidades organizativas, sua agudeza estratégica e suas intransigentes posições programáticas, baseadas no apoio às exigências populares. Mais que qualquer outro líder guerrilheiro, Marulanda tinha uma compenetração sem par com os pobres das zonas campesinas, os sem-terra, os cultivadores pobres e os refugiados rurais durante três gerações.
Após começar, em 1964, com dúzias de campesinos que haviam fugido de povoados devastados por uma ofensiva militar dirigida pelos EUA, Marulanda construiu metodicamente um exército guerrilheiro revolucionário sem contribuições econômicas ou materiais estrangeiras. Mais que qualquer outro líder guerrilheiro, Marulanda foi um grande mestre político rural. Os extraordinários dotes organizativos de Marulanda se foram refinando através de sua íntima vinculação com o campesinato. Como havia crescido numa família de campesinos pobres, viveu entre eles cultivando e organizando-os: falava sua mesma linguagem, se ocupava de suas necessidades diárias mais básicas e de suas esperanças de futuro. De maneira conceitual, porém também através da experiência cotidiana, Marulanda realizou uma série de operações políticas e militares estratégicas baseadas em seu brilhante conhecimento do terreno geográfico e humano.
Desde 1964 até sua morte, Marulanda derrotou ou escapou de, ao menos, sete importantes ofensivas militares financiadas com mais de sete bilhões de dólares de ajuda militar americana, que incluía milhares de "boinas verdes", corpos especiais, mercenários, mais de 250.000 militares colombianos e 35.000 paramilitares integrados em esquadrões da morte.
Diferentemente de Cuba ou Nicarágua, Marulanda construiu uma base massiva organizada e treinou uma direção, em grande parte, rural; declarou abertamente seu programa socialista e nunca recebeu apoio político ou material dos denominados "capitalistas progressistas". Ao contrário dos corruptos e ambiciosos gângsteres de Batista e Somoza, que saqueavam e se retiravam sob pressão, o exército da Colômbia era um formidável aparato repressor, altamente treinado e disciplinado, reforçado, ademais, por homicidas esquadrões da morte.
Distintamente de outros famosos guerrilheiros "de pôsteres", Marulanda foi um autêntico desconhecido entre os elegantes editores esquerdistas de Londres, os nostálgicos sessenta-e-oitistas parisienses e os socialistas eruditos de Nova Iorque. Marulanda passou seu tempo exclusivamente na "Colômbia profunda"; preferia conversar e ensinar aos campesinos e inteirar-se de suas queixas a conceder entrevistas a jornalistas ocidentais ávidos de aventura. Em lugar de escrever manifestos grandiloqüentes e adotar poses fotogênicas, preferia a pedagogia popular dos deserdados, estável e pouco romântica, porém sumamente eficaz.
Marulanda viajou desde vales praticamente inacessíveis a cordilheiras, desde selvas a planícies, sempre organizando, lutando, recrutando e treinando novos líderes. Evitou apresentar-se nos "foros de debate do mundo" ou seguir a rota dos turistas esquerdistas internacionais. Nunca visitou uma capital estrangeira e contam que jamais pôs os pés em Bogotá, a capital da nação. Porém, tinha um amplo e profundo conhecimento das exigências dos afro-colombianos costenhos; dos indo-colombianos das montanhas e da selva; dos desejos de terra de milhões de campesinos deslocados; dos nomes e endereços dos terra-tenentes maltratadores que brutalizavam e violavam os campesinos e seus familiares.
Durante as décadas dos 60, 70 e 80, numerosos movimentos guerrilheiros se levantaram em armas, lutaram com maior ou menor capacidade e logo desapareceram assassinados, derrotados (alguns, inclusive, se converteram em colaboradores) ou se integraram nas partilhas e repartilhas eleitorais. Pouco numerosos, lutavam em nome de inexistentes "exércitos populares"; a maioria era de intelectuais, mais familiarizados com os discursos europeus que com a micro história, a cultura popular e as lendas dos povos aos quais tratavam de organizar. Foram isolados, cercados e arrasados; deixaram, talvez, uma herança bem divulgada de sacrifício exemplar, porém não mudaram nada sobre o terreno.
Pelo contrário, Marulanda encaixou os melhores golpes dos presidentes contra-insurgentes de Washington e Bogotá e se os devolveu em 100%. Por cada povo arrasado, Marulanda recrutou dúzias de campesinos lutadores, enfurecidos e desamparados e os treinou com suma paciência para que fossem quadros e comandantes. Mais que qualquer exército guerrilheiro, as FARC chegaram a ser um exército de todo o povo: um terço dos comandantes eram mulheres, mais de setenta por cento eram campesinos, se bem que se associaram intelectuais e profissionais, que foram treinados por quadros do movimento.
Marulanda foi um homem venerado por seu estilo de vida excepcionalmente simples: compartilhou a chuva torrencial sob cobertas de plástico. Milhões de campesinos o respeitavam profundamente, porém nunca praticou o culto à personalidade: era demasiado irreverente e modesto, preferia delegar as tarefas importantes a uma direção coletiva, com muita autonomia regional e flexibilidade tática. Aceitou um amplo leque de opiniões sobre táticas, inclusive se discrepava profundamente delas. Em princípios dos 80, muitos quadros e líderes decidiram testar a via eleitoral, firmaram um "acordo de paz" com o presidente colombiano, criaram um partido – a União Patriótica – e fizeram eleger a numerosos prefeitos e deputados. Inclusive, obtiveram numerosos votos nas eleições presidenciais.
Marulanda não se opôs publicamente ao acordo, porém não abandonou as armas nem "baixou desde as montanhas às cidades". Muito mais lúcido que os profissionais e os sindicalistas que se postulavam nas eleições, Marulanda compreendia o caráter extremamente autoritário e brutal da oligarquia e seus políticos. Sabia que os governantes da Colômbia não aceitariam nunca uma reforma agrária justa só porque uns "poucos campesinos analfabetos os derrotassem nas urnas". Em 1987, mais de 5.000 membros da União Patriótica haviam sido assassinados pelos esquadrões da morte da oligarquia, entre eles três candidatos à presidência, uma dúzia de congressistas e mulheres e prefeitos e vereadores. Os sobreviventes fugiram para a selva, se reincorporaram à luta armada ou marcharam para o exílio.
Marulanda era um mestre na hora de romper os cercos e evitar as campanhas de aniquilação, sobretudo as que elaboraram os melhores e mais brilhantes estrategistas do centro de contra-insurgência dos Corpos Especiais do US Fort Bragg e da Escola das Américas. Em fins dos 90, as FARC haviam ampliado seu controle a mais da metade do país, bloqueavam autopistas e atacavam bases militares situadas a apenas 65 quilômetros da capital. Muito debilitado, o então presidente Pastrana terminou por aceitar negociações sérias de paz, nas quais as FARC exigiram uma zona desmilitarizada e um programa que incluía mudanças estruturais básicas no Estado, na economia e na sociedade.
Ao contrário das guerrilhas centro-americanas, que trocaram as armas por cargos eleitorais, antes de depor as suas Marulanda insistiu na redistribuição da terra, no desmantelamento dos esquadrões da morte, na destituição dos generais colombianos implicados nos massacres, numa economia mista baseada em boa medida na nacionalização dos setores econômicos estratégicos e no financiamento em grande escala dos campesinos para o desenvolvimento de colheitas alternativas à coca.
Em Washington, o presidente Clinton assistia histérico àquele espetáculo e se opôs às negociações de paz, em especial ao programa de reformas, assim como aos debates públicos abertos e aos foros de debate organizados pelas FARC na zona desmilitarizada, aos quais assistia numerosamente a sociedade civil colombiana. A aceitação, por parte de Marulanda, do debate democrático, a desmilitarização e as mudanças estruturais desmascaram a mentira dos social-democratas ocidentais e latino-americanos e dos universitários de centro-esquerda que o acusaram de "militarista". Washington tratou de repetir o processo de paz centro-americano enganando os chefes das FARC com a promessa de cargos eleitorais e privilégios em troca de que vendessem aos campesinos e aos colombianos pobres. Ao mesmo tempo, Clinton, com o apoio dos dois partidos do Congresso, fez aprovar um projeto de lei de apropriação de dois bilhões de dólares para financiar o maior e mais sangrento programa de contra-insurgência desde a guerra da Indochina, denominado "Plano Colômbia". O presidente Pastrana deu por terminado, de forma abrupta, o processo de paz e enviou soldados à zona desmilitarizada para que capturassem a cúpula das FARC. Porém, quando estes chegaram, Marulanda e seus companheiros já se haviam ido dali.
Desde 2002 até agora, as FARC têm alternado os ataques ofensivos e as retiradas defensivas, em especial desde finais de 2006. Com um financiamento sem precedentes e um apoio tecnológico ultramoderno dos EUA, o novo presidente Álvaro Uribe – sócio de narcotraficantes e organizador de esquadrões da morte – adotou uma política de terra arrasada para enfurecer-se com o campo colombiano. Entre sua eleição em 2002 e sua reeleição em 2006, mais de 15.000 campesinos, sindicalistas, trabalhadores de direitos humanos, jornalistas e outros críticos foram assassinados. Regiões inteiras do campo foram esvaziadas: da mesma maneira que na Operação Fênix americana no Vietnã, se contaminou a terra de cultivo com herbicidas tóxicos. Mais de 250.000 soldados e seus amigos paramilitares dos esquadrões da morte dizimaram amplas zonas do campo colombiano controladas pelas FARC. Helicópteros proporcionados por Washington bombardearam a selva em missões de busca e destruição (que não tinham nada a ver com a produção de coca ou com o envio de cocaína aos EUA). Ao destruir toda a oposição popular e as organizações campesinas e ao deslocar milhões de colombianos, Uribe logrou empurrar as FARC para regiões mais remotas. Assim como havia feito no passado, Marulanda assumiu uma estratégia de retirada tática defensiva, abandonando território para proteger a capacidade de luta dos guerrilheiros no futuro.
Diferentemente de outros movimentos guerrilheiros, as FARC não receberam nenhum apoio material do exterior: Fidel Castro repudiou publicamente a luta armada e buscou laços diplomáticos e comerciais com governos de centro-esquerda, inclusive melhores relações com o brutal Uribe. Depois de 2001, a Casa Branca de Bush rotulou as FARC de "organização terrorista", pressionando Equador e Venezuela para que restringissem os movimentos fronteiriços das FARC em busca de abastecimentos. A "centro-direita" da Colômbia se dividiu entre os que prestavam um "apoio crítico" à guerra total de Uribe contra as FARC e os que protestavam infrutiferamente contra a repressão.
É difícil imaginar que um movimento guerrilheiro possa sobreviver frente a um financiamento tão massivo da contra-insurgência, um quarto de milhão de soldados armados pelo império, milhões de deslocados de suas terras e um presidente psicopata vinculado diretamente com uma cadeia de 35.000 membros de esquadrões da morte. No entanto, sereno e resoluto, Marulanda dirigiu a retirada tática; a idéia de negociar uma capitulação nunca lhe passou pela cabeça, nem a ele nem à cúpula das FARC.
As FARC não têm fronteira contígua com um país que as apóie, como o Vietnã com a China; tampouco gozam, como o Vietnã, do fornecimento de armas da URSS e do apoio massivo internacional dos grupos ocidentais de solidariedade, como os sandinistas.
Vivemos numa época em que apoiar aos movimentos campesinos de libertação nacional não está "na moda"; em que reconhecer que o gênio de líderes campesinos revolucionários que constroem e mantêm a autêntica massa dos exércitos populares é tabu nos pretensiosos, loquazes e impotentes Foros Sociais Mundiais, cujo "mundo" exclui regularmente aos campesinos militantes e para os quais "social" significa o constante intercâmbio de mensagens eletrônicas entre fundações financiadas por ONGs.
É neste ambiente tão pouco promissor frente às pírricas vitórias dos presidentes de EUA e Colômbia onde podemos apreciar o gênio político e a integridade pessoal de Manuel Marulanda, o maior campesino revolucionário da América Latina. Sua morte não gerará cartazes ou camisetas para estudantes universitários de classe média, porém viverá eternamente nos corações e nas mentes de milhões de campesinos da Colômbia.
Recordar-se-á dele sempre como "Tirofijo", um ser de legenda ao qual mataram uma dúzia de vezes e, apesar disso, regressou aos povos para compartilhar com os campesinos suas vidas simples. Tirofijo foi o único líder que era realmente "um deles", que durante meio século enfrentou o aparato militar e mercenário ianque e nunca foi capturado ou derrotado.
Desafiou-os a todos em suas mansões, seus palácios presidenciais, suas bases militares, suas câmaras de tortura e suas burguesas salas de redação. Morreu de morte natural, depois de sessenta anos de luta, nos braços de seus queridos companheiros campesinos.
Tirofijo presente!
Publicado no Rebelión.
James Petras é sociólogo, nasceu em Boston a 17 de janeiro de 1937, de pais gregos, originários da Ilha de Lesbos. Publicou mais de sessenta livros de economia política e, no terreno da ficção, quatro coleções de contos.