"A LUTA DE UM POVO, UM POVO EM LUTA!"

Agência de Notícias Nova Colômbia (em espanhol)

Este material pode ser reproduzido livremente, desde que citada a fonte.

A violência do Governo Colombiano não soluciona os problemas do Povo, especialmente os problemas dos camponeses.

Pelo contrário, os agrava.


domingo, 26 de fevereiro de 2012

Declaração Pública

Toda vez que nas FARC-EP falamos de paz, de soluções políticas para a confrontação, da necessidade de dialogar para encontrar uma saída civilizada aos graves problemas sociais e políticos que dão origem ao conflito armado na Colômbia, de imediato, se levantam, enzandecidos, os partidários da guerra a desqualificar nossos propósitos de reconciliação. Nos acusam das mais perversas intenções, só para insistir em que o único que resta para nós é o extermínio. Em geral, os mencionados incendiários nunca pelejam na linha de fogo e nem permitem que seus filhos participem diretamente dessa guerra.

São quase 48 anos na mesma situação. A cada tentativa de acabar conosco, tem redundado, por simples lógica, em nosso fortalecimento, diante do qual desenham mais um plano militar, e assim volta a se reiniciar o círculo interminável. O atual fortalecimento militar das FARC se levanta sob o nariz daqueles que proclamaram o fim do fim, incitando-os a proclamar a necessidade de acrescentar o terror e a violência. Da nossa parte consideramos que não é justo aprazar mais a possibilidade de iniciar as possíveis conversações.

Por isso, queremos comunicar nossa decisão de somar aos seis prisioneiros de guerra a serem liberados, os quatro que ainda ficariam em nosso poder. Ao agradecer a disposição generosa do governo que preside Dilma Rousseff e que aceitamos sem vacilo, queremos manifestar nossos sentimentos de admiração pelas famílias dos soldados e policiais que estão em nosso poder, pois jamais perderam a fé em que seus familiares seriam libertados por encima do despreço e a indolência dos distintos governos e comandos militares e da polícia.

Em atenção a eles, gostaríamos de solicitar a senhora Marleny Orjuela, incansável e corajosa mulher dirigente de ASFAMIPAZ, que acuda a recebê-los na data acordada. Para tal efeito, anunciamos ao Grupo de Mulheres do Continente que trabalham ao lado de Colombianas e Colombianos pela Paz, que estamos prontos para concretar o que seja com tal de agilizar este propósito. Toda Colômbia e a Comunidade Internacional serão testemunhas da vontade demonstrada pelo governo de Juan Manuel Santos que já frustrou um feliz final em novembro passado.

Muito tem-se falado acerca das retenções de pessoas, homens ou mulheres, da população civil, que com fins financeiros efetuamos nas FARC com o objetivo de arrecadar dinheiro para nossa luta. Com a mesma vontade indicada acima, anunciamos, também, que a partir de hoje proscrevemos essa prática em nosso acionar revolucionário. Por isso, a Lei 002 expedida pelo nosso Pleno de Estado Maior no ano 2.000 fica derrogada. Chegou a hora de esclarecer quem e com que propósitos sequestram hoje na Colômbia.

Sérios obstáculos impedem a obtenção de uma paz concertada em nosso país. A arrogante decisão governamental de incrementar o gasto militar, o pé de força e as operações militares, indica a prolongação indefinida da guerra que, com certeza, significa mais morte e destruição, mais feridas e mais prisioneiros de guerra de ambas as partes e mais civis encarcerados injustamente. E a necessidade de recorrer a outras formas de financiamento ou pressão política de nossa parte. Já é tempo de que o regime pense seriamente numa saída distinta, que inicie pelo menos por um Acordo de regularização da confrontação e de liberação de prisioneiros políticos.

Desejamos, por fim, expressar nossa satisfação pelos passos dados no sentido de estabelecer a Comissao Internacional que verificará as denuncias sobre as condições desumanas de reclusão e o desconhecimento dos Direitos Humanos e de defesa jurídica, que sofrem os prisioneiros de guerra, os prisioneiros de consciência e os presos sociais nos cárceres do país. Esperamos que o governo colombiano não tema nem obstrua esta legítima labor humanitária propulsada pela Comissão de Mulheres do Continente.


Secretariado do Estado Maior Central das FARC-EP
Montanhas da Colômbia, 26 de fevereiro de 2.012.

NOSSA TERRA

Iván Márquez
Agencia de Noticias Nueva Colombia (ANNCOL.info)


Nossa terra, a que nos pertence porque nascemos nela, nossa pátria, hoje convertida em tesouro desejado pela pirataria transnacional em tempos de decadência e de crise sistêmica do capital. As transnacionais, Sarmiento Angulo y Santodomingo, Efremovich y Francisco Santos, e muitos outros ferozes piratas de tapa olho e faca, tem-se lançado à pilhagem das riquezas que ainda existem na Colômbia, com a anuência gangster e patente do corso Presidente Santos.

Investir na terra tem hoje alcances estratégicos. A geografia, o território, se tem convertido na obsessão da avareza do capital. Diante do declínio da produção petroleira em escala mundial as empresas têm voltado seus olhos para a perspectiva de ganhos rápidos com a produção de biocombustíveis e a exploração do subsolo. A Amazônia, a região do Orenoco e a extensa faixa do Pacífico são os novos espaços cobiçados pelo capital para a obtenção de lucros a qualquer preço. A terra já não interessa tanto como meio de produção pecuarista e de geração de soberania em alimentação. O negocio está na produção de biocombustíveis, de etanol, no cultivo do milho, cana-de-açúcar, palmeira africana e na exploração do que há na superfície e debaixo dela: petróleo, ouro, carvão, columbita-tantalita, ferro-níquel, água e biodiversidade, sem nenhum tipo de barreiras éticas nem sócio-ambientais.

Durante 25 anos, os últimos governos prepararam o terreno para o assalto. Temos vivido um quarto de século de despojo violento comandado pelo Estado, de expropriação de terras, de massacres paramilitares, de deslocamentos forçados. Definitivamente a mão negra do Estado é o paramilitarismo. Nesse lapso foram deslocados 5 milhões de camponeses e expropriados 7 milhões de hectares. O paramiltarismo de Estado, o plano Colômbia, a ingerência norteamericana no conflito interno, foram utilizadas como aríete criminoso para quebrar o povo e gerar condições de segurança para a entrada em cena dos investidores.

Após 8 anos de governo ilegítimo, ilegal e mafioso, Uribe acabou ensanguentado até os cabelos. Santos simplesmente está lavando o sangue o respinga no regime. É um falso samaritano tentando tampar com cosméticos o desprestigio internacional de um governo. Diferencia-se de Uribe porque não assassina descaradamente, mas mata e despoja em nome da constituição e da lei.

Modificam-se as aparências, mas o lucro e o saque são sagrados. Não se mexem. Nisso é igualzinho ou pior do que Uribe. A confiança dos investidores é o eufemismo que encobre a entrega da soberania. Uribe assinou com as transnacionais, contratos de segurança jurídica até por 20 anos, os encheu de incentivos, de isenções tributárias, de garantias para o espolio...Quantos fardos de dólares e moedas de prata terão acrescentado ao bolso deste Judas da Colômbia? E Santos? Está fazendo o mesmo. Seu empenho é aprofundar a política neoliberal e nesse contexto é o propulsor de uma legislação que privilegia os direitos do capital diante do interesse comum e da pátria. Transformou 90 mil soldados do exército colombiano em taciturnos seguranças das transnacionais, em guardas da infraestrutura e dos lucros do capital estrangeiro contra a inconformidade social. Não foi esse o papel designado ao exército pelo Libertador. Ele falou de defender as fronteiras e as garantias sociais.

Dia e noite, centenas de vagões de carvão e cerca de um milhão de barris de petróleo por dia saem do país rumo ao mercado internacional, espalhando também, grande contaminação ambiental, e Santos, cheio de incompreendida satisfação, proclama que as exportações estão crescendo e a que a economia crescerá 7%. Vale se perguntar, tal como o sugerem os especialistas e acadêmicos do pais, quão tão colombiana é a economia colombiana? Quem exporta o petróleo, o carvão, o ferro-níquel e o ouro? As transnacionais. A prosperidade é, então, das transnacionais e dos governantes vendidos, não o país. A este sobram apenas os buracos e socavões vazios e o desastre sócio-ambiental.

Toda a população de Marmato, Caldas – povoado de antiga tradição mineira – pretende ser deslocada pelo governo para que uma transnacional canadense possa explorar seu ouro a céu aberto. Agora estão tentando criminalizar a mineração artesanal da que depende o sustento de milhares de colombianos, para entregar o monopólio da exploração aurífera às transnacionais. À frente desta campanha está o ministro de Minas e Energia. Por todos os lugares se ouve sua ladainha mentirosa de que este tipo de mineração está ligado aos bandos criminosos e ao terrorismo. O cúmulo da desfaçatez! É urgente amarrar esse burocrata louco que Santos colocou à frente do ministério, Mauricio Cardenas, antes de acabe destroçando o pouco de soberania que milagrosamente ainda temos.

Todos os esforços da estratégia de Santos estão dirigidos a legalizar o despojo, quer dizer, despojar e expropriar em nome da lei; suavemente, sem esse derramamento de sangue que tanto escandaliza a opinião pública internacional. Esse é o espírito que domina o pacote legislativo que será enviado ao Congresso em março. A lei de terras e indenização das vitimas promovida por Santos é um engano, assim como confundir sobre a verdadeira identidade dos culpados. De forma insólita resolveu pregar ultimamente, atirando para todos os lados, que a insurgência é a causa do despojo, quando historicamente está demonstrado que o responsável é o Estado com seu exército, seus paramilitares, seus latifundiários, seus pecuaristas e suas leis. Assim, o Presidente se assemelha ao ladrão que grita: pega ladrão!

Sim. Santos começou a dar o titulo de terras a supostos ou verdadeiros deslocados, mas o que está entregando é um direito à superfície, um papel de ilusões que leva o camponês a acreditar que é o dono da terra, sendo que na realidade o que está entregando é um titulo para que possa vender ou alugar. Logo cairão sobre os camponeses, como abutres, as transnacionais e a agroindústria, para alugar com direito a 20 ou 30 anos para produzir etanol e extrair ouro, petróleo, carvão, enquanto o camponês continuará confinado nos mesmos cinturões de miséria das grandes cidades, longe da sua terra, vivendo talvez de uma renda precária.

A terra, nestas circunstâncias, faz com que a categoria PÁTRIA perceba-se mais nítida e se aferre com todas suas forças ao coração dos colombianos. Lutar pela soberania deixa de ser uma bandeira abstrata, incompreendida e etérea, para se converter em exigência de dignidade das maiorias. Dessa forma, o punho da pátria levantado contra o saque das riquezas nacionais e a devastação do meio ambiente, adquire novas dimensões e ao mesmo tempo denota um novo nível de consciência de luta popular. Defender o nosso, nossa terra, é defender nossa dignidade.

Montanhas da Colômbia, fevereiro de 2012

(*) Iván Márquez é comandante e membro do Secretariado das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia - Exército do Povo (FARC-EP).

sábado, 25 de fevereiro de 2012

EUA são piores do que a inquisição espanhola

Michel Chossudovsky, presidente e diretor do Centro de Pesquisa em Globalização (Centre for Research on Globalization), Michel Chossudovsky conversou com o ODiário.Info sobre a discussão de uma possível terceira guerra mundial, de que fala no seu livro “Towards a World War III Scenario: The Dangers of Nuclear War”.

Por Sara Sanz Pinto*

Crítico da fortificação militar que os Estados Unidos estão construindo em torno da China, o professor canadiano da Universidade de Otava defende que a opinião pública é fundamental para evitar uma guerra nuclear.

ODiário.Info: Diz no seu livro que a guerra com o Irã já começou e que os Estados Unidos estão apenas à espera de um rosto humano para lhe dar. Acredita que os objetivos políticos e geoestratégicos de Washington podem levar-nos a uma guerra nuclear com consequências para toda a humanidade?

Michel Chossudovsky: Não quero fazer previsões e ir além do que aconteceu. Tudo o que posso dizer, e tenho vindo a dizê-lo de forma repetida, é que a preparação para a guerra está a um nível muito elevado. Se será levada a cabo ou não é outro patamar, e ainda não o podemos afirmar. Esperemos que não. Mas temos de considerar seriamente o fato de que este destacamento de tropas é o maior da história mundial. Estamos assistindo o envio de forças navais, homens, sistemas de armamento de ponta, controlados através do comando estratégico norte-americano em Omaha, Nebrasca, e que envolve uma coordenação entre EUA, Otan e forças israelitas, além de outros aliados no golfo Pérsico (Arábia Saudita e estados do Golfo).

Estas forças estão a postos. Isto não significa necessariamente que vamos entrar num cenário de terceira guerra mundial, mas os planos militares no Pentágono, nas bases da Otan, em Bruxelas e em Israel, estão a ser feitos. E temos de levá-los muito a sério. Tudo pode acontecer, estamos numa encruzilhada muito perigosa e infelizmente a opinião pública está mal informada. Dão espaço a Hollywood, aos crimes e a todo o tipo de acontecimentos banais, mas, no que toca a este destacamento militar que poderá levar-nos a uma terceira guerra mundial, ninguém diz nada. Isso é um dos problemas, porque a opinião pública é muito importante para evitar esta guerra.

E isso não está a acontecer, as pessoas não estão se organizando para se oporem à guerra. Isto não é uma questão política, é um problema muito maior, e tenho de dizer que os meios de comunicação ocidentais estão envolvidos em atos de camuflagem absolutamente criminosos. Só o fato de alinharem com a agenda militar, como estão a fazer na Síria, onde sabemos que os rebeldes são apoiados pela Otan, na Arábia Saudita e em Israel, e como fizeram na Líbia, é chocante do meu ponto de vista, porque as mentiras que se criam servem para justificar uma intervenção humanitária. Em vez de uma guerra nuclear, não podemos assistir a um cenário semelhante à Guerra Fria, com os EUA, a União Europeia e Israel de um lado e a China, a Rússia e o Irã do outro?

Esse cenário já é visível. A Otan e os EUA militarizaram a sua fronteira com a Rússia e a Europa de Leste, com os chamados escudos de defesa antimíssil – todos esses mísseis estão apontados a cidades russas. Obama sublinhou em declarações recentes que a China é uma ameaça no Pacífico – uma ameaça a quê? A China é um país que nunca saiu das suas fronteiras em 2 mil anos. E eu sei, porque investigo este tema há muito tempo, que está sendo construída toda uma fortaleza militar em volta da China, no mar, na península da Coreia, e o país está cercado, pelo menos na sua fronteira a sul. Por isso a China não é a ameaça. Os EUA são a ameaça à segurança da China. E estamos numa situação de Guerra Fria. Devo mencionar, porque é importante para a UE, que, no limite, os EUA, no que toca à sua postura financeira, bancária, militar e petrolífera, também estão a ameaçar a UE. Estão por trás da destabilização do sistema bancário europeu.

ODiário.Info: E a colocação de mais tropas em torno da China vai trazer mais tensão à região.

MC: Quanto a isso não tenho dúvidas, porque os EUA estão aumentando a sua presença militar no Pacífico, no oceano Índico e estão tentando ter o apoio das Filipinas e de outros países no Sudeste Asiático, como o Japão, a Coreia, Singapura, a Malásia (que durante muitos anos esteve reticente a juntar-se a esta aliança). Portanto, Washington está formando uma extensão da Otan na região da Ásia-Pacífico, direcionada contra a China. Não há dúvidas quanto a isto. E não se vence uma guerra contra a China. É um país com uma população de 1,4 bilhões de pessoas, com um número significativo de forças, tanto convencionais como estratégicas. Por isso, com este confronto entre a Otan e os EUA, de um lado, e a China, do outro, estamos num cenário de terceira guerra mundial. E toda a gente vai perder esta guerra. Qualquer pessoa com um entendimento mínimo de planejamento militar sabe que este tipo de confronto entre superpotências – incluindo o Irã, que é uma potência regional no Médio Oriente, com uma população de 80 milhões de pessoas – poderá levar-nos a uma guerra nuclear. E digo isto porque os EUA e os seus aliados implementaram as chamadas armas nucleares tácticas – mudaram o nome das bombas e dizem que são inofensivas para os civis, o que é uma grande mentira.

ODiário.Info: Mentira porquê?

MC: Está escrito em todos os documentos que a B61-11 [arma nuclear convencional] não faz mal às pessoas e planeiam usá-la. Tenho examinado estes planos de guerra nos últimos oito anos, e posso garantir que estão prontos a ser usados e podem ser acionados sem uma ordem do presidente dos EUA. Olhe para o que eles designam “Nuclear Posture Review” de 2001, um relatório fulcral que integra as armas nucleares no arsenal convencional, sublinhando a distinção entre os diferentes tipos de armas e apresentando a noção daquilo que chamam “caixa de ferramentas”. E a caixa de ferramentas é uma coleção de armas variadas, que o comandante na região ou no terreno pode escolher, onde estão estas B61-11, que são consideradas armas convencionais. Se quiser posso fazer uma analogia, é a mesma coisa que dizer que fumar é bom para a saúde. As armas nucleares não são boas para a saúde, mudaram o rótulo e chamaram–lhes bombas humanitárias, mas têm uma capacidade destruidora seis vezes superior à de Hiroxima.

ODiário.Info: Mas a maior parte das pessoas não parece consciente da gravidade do cenário…

MC: A ironia é que a terceira guerra mundial pode começar e ninguém estará sequer a par, porque não vai estar nas primeiras páginas. Na verdade, a guerra já começou no Irã. Têm forças especiais no terreno, instigaram todo este tipo de mecanismos para desestabilizar a economia iraniana através do congelamento de bens. Há uma guerra da moeda em curso – isto faz parte da agenda militar. Desestabilizando-se a moeda de um país desestabiliza-se a sua economia, bloqueiam-se as exportações de petróleo, e isto antecede a implementação de uma agenda militar. Se eles puderem evitar uma aventura militar contra o Irã e ocupar o país através de outros meios, fá-lo-ão. É isso que estão a tentar neste momento. Querem a mudança de regime, o colapso das petrolíferas, apropriar-se dos recursos do país, e têm capacidade para fazer isto tudo sem uma intervenção militar, embora alguma possa vir a ser necessária. Mas o Irã é considerado uma das maiores potências militares da região e basta olharmos para as análises da sua força aérea, a sua capacidade em mísseis, as suas forças convencionais que ultrapassam um milhão de homens (entre ativo e reserva), o que permite que de um dia para o outro consiga mobilizar cerca de metade, ou até mais. Tendo em conta estes números, os EUA e os seus aliados não conseguem vencer uma guerra convencional contra o Irã, daí a razão pela qual estão a tentar fazer a guerra com outros meios, e um desses meios é o pretexto das armas nucleares.

ODiário.Info: Acha que o Ocidente pode lançar um ataque preventivo contra o Irão mesmo sem provas?

MC: Claro que sim! Olhe para a história dos pretextos para lançar guerras. Olhe para trás, para todas as guerras que os EUA começaram, a partir do século XIX. O que fazem sistematicamente é criar aquilo que chamamos incidente provocado para começar a guerra. Um incidente que lhes permite justificar o início de um conflito por motivos humanitários. Isto é muito óbvio. Em Pearl Harbor, por exemplo, sabe-se que foi uma provocação, porque os EUA sabiam que iam ser atacados e deixaram que tal acontecesse. O mesmo se passou com o incidente no golfo de Tonkin, que levou à guerra do Vietnã. E agora são vários os pretextos que emergem contra o Irã: as alegadas armas nucleares são um, outro é o alegado papel nos atentados 11 de Setembro, pois desde o primeiro dia que acusam o país de apoiar os ataques, a afirmação mais absurda que podem fazer, pois não existem quaisquer provas. Mas os media agarram nestas coisas e dizem “sim, claro”.

ODiário.Info: Pode explicar às pessoas de uma forma simples a relação entre guerra contra o terrorismo e batalha pelo petróleo?

MC: A guerra contra o terrorismo é uma farsa, é uma forma de demonizar os muçulmanos e é também a criação, através de operações em segredo dos serviços secretos, de brigadas islâmicas, controladas pelos EUA. Sabemos disso! Estas forças, ligadas à Al-Qaeda, são uma criação da CIA de 1979. Por isso a guerra contra o terrorismo é apenas um pretexto e uma justificação para lançar uma guerra de conquista. É uma tentativa de convencer as pessoas de que os muçulmanos são uma ameaça e de que estão a protegê-las e para isso têm de invadir países perigosos, como o Irã, o Iraque, a Síria e a Coreia do Norte, que perdeu 25% da sua população durante a Guerra da Coreia, mas, no entanto, continua a ser tida como uma ameaça para Washington. É absurdo! Os americanos são um pouco como a inquisição espanhola. Aliás, piores! O que mais me choca é que os EUA conseguem virar a realidade ao contrário, sabendo que são mentiras e mesmo assim acreditando nelas. A guerra contra o terrorismo é uma mentira enorme, mas todas as pessoas acreditam e o mesmo se passava com a inquisição espanhola – ninguém a questionava. As pessoas conformam-se com consensos e quem assume a posição de que isto não passa de um conjunto de mentiras é considerado alguém em quem não se pode confiar e provavelmente perderá o emprego. Por isso esta guerra é contra a verdade, muito mais séria que a agenda militar. Contra a consciência das pessoas – parece que ninguém está autorizado a pensar. E depois vêm dizer-nos “Ah, mas as armas nucleares são seguras para os civis”. E as pessoas acreditam.

ODiário.Info: Será Israel capaz de atacar Irã sem o apoio dos EUA?

MC: Não. Eles podem enviar as suas forças, por exemplo para o Líbano, mas o seu sistema está integrado no dos EUA e, como o Irã tem mísseis, têm de estar coordenados com Washington. É uma impossibilidade em termos militares. Em 2008, o sistema de defesa aérea de Israel foi integrado no dos EUA. Estamos a falar de estruturas de comando integradas. Quer dizer, Israel pode lançar uma pequena guerra contra o Hezbollah ou até contra a Síria, mas contra o Irã terá de ser com a intervenção do Pentágono. Embora tendo uma fatia significativa de militares, Israel tem uma população de 7 milhões de pessoas e não tem capacidade para lançar uma grande ofensiva contra o Irã.

*Por Sara Sanz Pinto é jornalista.

Fonte: ODiário.info

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

A "crise do capitalismo global" – Crise de quem? Quem lucra?

Por James Petras*

Desde o Financial Times até à extrema-esquerda, toneladas de tinta têm sido gastas a escrever acerca de alguma variante da "Crise do capitalismo global". Se bem que os autores divirjam quanto às causas, consequências e curas, de acordo com as suas luzes ideológicas, há um acordo comum em que "as crises" ameaçam acabar o sistema capitalista tal como o conhecemos. 

Não há dúvida de que, entre 2008 e 2009, o sistema capitalista na Europa e nos Estados Unidos sofreu um choque severo que abalou os fundamentos do seu sistema financeiro e ameaçou levar à bancarrota seus "sectores principais".

Contudo, argumentarei que as "crises do capitalismo" foram transformadas em "crises do trabalho". O capital financeiro, o principal detonador do crash e da crise, recuperou-se, a classe capitalista como um todo foi fortalecida e, acima de tudo, ela utilizou as condições políticas, sociais e ideológicas criadas em resultado das "crises" para mais uma vez consolidar sua dominação e exploração sobre o resto da sociedade. 

Por outras palavras, a "crise do capital" foi convertida numa vantagem estratégica para promover os interesses mais fundamentais do capital: a expansão de lucros, a consolidação do domínio capitalista, a maior concentração da propriedade, o aprofundamento de desigualdades entre capital e trabalho e a criação de enormes reservas de trabalho para promover o aumento dos seus lucros. 

Além disso, a noção de um crise global homogénea do capitalismo passa por alto as profundas diferenças em desempenho e condições entre países, classes e grupos etários. 

A tese da crise global: O argumento económico e social 

Os advogados da crise global argumentam que começando em 2007 e continuando até o presente, o sistema capitalista mundial entrou em colapso e a recuperação é uma miragem. Eles mencionam a estagnação e a recessão contínua na América do Norte e na Eurozona. Eles apresentam dados do PIB que variam entre o crescimento negativo e o zero.
A sua argumentação é apoiada por dados que mencionam dois dígitos de desemprego em ambas as regiões. Frequentemente corrigem os dados oficiais que minimizam a percentagem desempregada através da exclusão de trabalhadores desempregados em tempo parcial e a longo prazo. O argumento da "crise" é fortalecido com a citação dos milhões de proprietários de casas que foram despejados pelos bancos, pelo aumento agudo da pobreza e da penúria que acompanha perdas de emprego, reduções de salário e a eliminação ou redução de serviços sociais. A "crise" também é associada ao aumento maciço de bancarrotas, principal de pequenos e médios negócios e bancos regionais. 

A crise global: A perda de legitimidade 

Críticos, especialmente na imprensa financeira, escrevem acerca de uma "crise de legitimidade do capitalismo" citando inquéritos que mostram maiorias substanciais a questionarem a justiça do sistema capitalista, as vastas e crescentes desigualdades e as regras manipuladas pelas quais bancos exploram a sua dimensão ("demasiado grande para falir") a fim de atacar o Tesouro a expensas de programas sociais. 

Em suma, os advogados da tese de uma "Crise global do capitalismo" apresentam uma argumentação convincente, demonstrando os efeitos profundos e generalizados do sistema capitalista sobre a vida da grande maioria da humanidade. 

O problema é que uma "crise da humanidade" (mais especificamente dos trabalhadores assalariados) não é o mesmo que uma crise do sistema capitalista. De facto, como argumentaremos adiante, a adversidade social crescente, o declínio do rendimento e do emprego tem sido um factor importante que facilitou a recuperação rápida e maciça das margens de lucro da maior parte das corporações de grande dimensão. 

Além disso, a tese de uma crise "global" do capitalismo combina economias, países, classes e grupos etários díspares com desempenhos agudamente divergentes em diferentes momentos históricos. 

Crise global ou desenvolvimento irregular e desigual? 

É absolutamente louco argumentar a existência de uma "crise global" quando várias das maiores economias na economia mundial não sofreram uma grande baixa de actividade e outras recuperaram-se e expandiram-se rapidamente. A China e a Índia não sofreram sequer uma recessão. Mesmo durante os piores anos do declínio europeu-estado-unidense, os gigantes asiáticos cresceram a uma média de cerca de 8%. As economias da América Latina, especialmente os maiores exportadores agro-minerais (Brasil, Argentina, Chile) com mercados diversificados, especialmente na Ásia, detiveram-se brevemente (em 2009) antes de assumirem crescimento moderado a rápido (entre 3% e 7%) entre 2010 e 2012. 

Ao agregar dados económicos da eurozona como um todo os advogados da crise global ignoraram as enormes disparidades de desempenho dentro da zona. Enquanto a Europa do Sul afunda-se numa depressão profunda e constante, por qualquer medida, desde 2008 até o futuro previsível, as exportações alemãs em 2011 estabeleceram um recorde de um milhão de milhões (trillion) de euros; seu excedente comercial atingiu 158 mil milhões de euros, depois de excedentes de 155 mil milhões de euros em 2010. (BBC News, Feb. 8 2012). 

Enquanto o desemprego agregado da eurozona atinge os 10,4%, as diferenças internas desafiam qualquer noção de uma "crise geral". O desemprego na Holanda é 4,9%, na Áustria 4,1% e na Alemanha 5,5% com reclamações do patronato de escassez de trabalho qualificado em sectores chave para o crescimento.
Por outro lado, no explorado Sul da Europa o desemprego caminha para níveis de depressão, Grécia 21%, Espanha 22,9%, Irlanda 14,5% e Portugal 13,6% (FT 1/19/12, p.7). Por outras palavras, "a crise" não afecta adversamente algumas economias, que de facto lucram com a sua dominação de mercado e fortaleza tecno-financeira em relação a economias dependentes, devedoras e atrasadas.
Falar de uma "crise global" obscurece as relações fundamentais dominantes e exploradoras que facilitam a "recuperação" e o crescimento das economias de elite sobre e contra os seus competidores e estados clientes. Além disso os teóricos da crise global erradamente amalgamam economias financeiras-especulativas cavalgadas pela crise (EUA, Inglaterra) com economias produtivas exportadoras (Alemanha, China). 

O segundo problema com a tese de uma "crise global" é que ela ignora profundas diferenças internas entre grupos etários. Em vários países europeus a juventude desempregada (16-25) chega a estar entre 30 e 50% (Espanha 48,7%, Grécia 47,2%, Eslováquia 35,6%, Itália 31%, Portugal 30,8% e Irlanda 29%) ao passo que na Alemanha, Áustria e Holanda o desemprego juvenil vai dos 7,8% para a Alemanha, 8,2% para a Áustria e 8,6% para a Holanda (Financial Times 2/1/12, p2).
Estas diferenças fundamentam a razão porque não há um "movimento juvenil global" de "indignados" e "ocupantes". Diferenças de cinco vezes entre juventude desempregada não são propícias à solidariedade "internacional". A concentração dos números do alto desemprego juvenil explica o desenvolvimento desigual dos protestos de rua em massa centrados especialmente no Sul da Europa. Também explica porque o movimento "anti-globalização" no Norte euro-americano é em grande medida um fórum sem vida que atrai explicações académicas pomposas sobre a "crise capitalista global" e a impotência dos "Fóruns Sociais" que são incapazes de atrair milhões de jovens desempregados do Sul da Europa. Eles são mais atraídos para a acção directa.
Teóricos globalistas ignoram o modo específico pelo qual a massa de jovens trabalhadores desempregados é explorada nos seus países dependentes cavalgados pela dívida. Eles ignoram o modo específico pelo qual são dominados e reprimidos por partidos capitalistas de centro-esquerda e de direita. O contraste é mais evidente no Inverno de 2012. Trabalhadores gregos são pressionados a aceitar um corte de 20% nos salários mínimos ao passo que trabalhadores da Alemanha estão a exigir um aumento de 6%. 

Se a "crise" do capitalismo se manifesta em regiões específicas, ela igualmente afecta diferentes sectores etários/raciais das classes assalariadas. As taxas de desemprego da juventude aos trabalhadores mais velhos variam enormemente. Na Itália a proporção é 3,5/1, na Grécia 2,5/1, em Portugal 2,3/1, na Espanha 2,1/1 e na Bélgica 2,9/1. Na Alemanha é 1,5/1 (FT 2/1/12). Por outras palavras, devido aos níveis de desemprego mais altos entre os jovens eles têm maior propensão para a acção directa "contra o sistema", ao passo que trabalhadores mais velhos com níveis de emprego mais altos (e benefícios de desemprego) têm mostrado uma maior propensão para confiar na urna eleitoral e comprometer-se em greves limitadas sobre questões relacionadas com o emprego e o pagamento. A vasta concentração do desemprego entre jovens trabalhadores significa que eles constituem o "núcleo disponível" para a acção constante; mas também significa que só podem alcançar limitada unidade de acção com a classe trabalhadora mais velha que experimenta desemprego de um algarismo. 

Contudo, também é verdadeiro que a grande massa da juventude desempregada proporciona uma arma formidável, nas mãos dos patrões, para ameaçar substituir trabalhadores empregados mais velhos. Hoje, os capitalistas recorrem constantemente à utilização dos desempregados para reduzir salários e benefícios e intensificar a exploração (baptizada como "aumento de produtividade") para aumentar margens de lucro. Longe de serem simplesmente um indicador da "crise capitalista", os altos níveis de desemprego têm servido juntamente com outros factores para aumentar a taxa de lucro, acumular rendimento, ampliar desigualdades de rendimento as quais aumentam o consumo de bens de luxo para a classe capitalista: as vendas de automóveis e relógios de luxo estão florescentes. 

Crise de classe: A contra-tese 

Contrariando os teóricos da "crise capitalista global", emergiu uma quantidade substancial de dados que refuta suas suposições. Um estudo recente informa "Lucros corporativos estado-unidenses estão mais altos em proporção do produto interno bruto do que em qualquer momento desde 1950" (FT 1/30/12). Os saldos de caixa de companhias dos EUA nunca foram maiores, graças à exploração intensificada dos trabalhadores e a um sistema de salários multi-estratificado no qual novos contratados trabalham por uma fracção do que os trabalhadores mais velhos recebiam (graças a acordos assinados por líderes sindicais capachos). 

Os ideólogos da "crise do capitalismo" ignoraram os relatórios financeiros das principais corporações estado-unidenses. Segundo o relatório de 2011 da General Motors destinado aos seus accionistas, eles celebraram o maior lucro de sempre, revelando um lucro de US$7,6 mil milhões, o que ultrapassa o recorde anterior de US$6,7 mil milhões em 1997. Uma grande parte destes lucros resulta do congelamento dos seus fundos de pensão subfinanciados e da extracção de maior produtividade do menor número de trabalhadores – por outras palavras, da intensificação da exploração – e do corte pela metade dos salários horários dos novos contratados. (Earthlink News 2/16/12) 

Além disso, a importância agravada da exploração imperialista é evidente pois a proporção de lucros das corporações estado-unidenses que é extraída além-mar mantém-se em ascensão a expensas do crescimento do rendimento dos empregados. Em 2011, a economia dos EUA cresceu em 1,7%, mas a mediana dos salários caiu em 2,7%. Segundo a imprensa financeira, "as margens de lucro das S&P 500 saltaram de 6% para 9% do PIB nos últimos três anos. A última vez que foi alcançada tal proporção foi há três gerações. Em linha gerais um terço, a fatia estrangeira destes lucros, mais do que duplicou desde 2000" (FT 2/13/12 P9. Se isto é uma "crise capitalista", então quem é que precisa de um boom capitalista? 

Inquéritos a corporações de topo revelam que companhias estado-unidenses possuem US$1,73 milhão de milhões em cash, "os frutos do recorde de altas margens de lucro" (FT 1/30/12 p.6). Estas margens de lucro recorde resultam de despedimentos em massa os quais levaram à intensificação da exploração dos restantes trabalhadores. Taxas de juro federais desprezíveis e acesso fácil ao crédito também permitem aos capitalistas explorarem amplos diferenciais entre a contracção de empréstimos e a concessão dos mesmos e o investimento. Impostos mais baixos e cortes em programas sociais resultam numa crescente acumulação de cash das corporações.
Dentro da estrutura corporativa, o rendimento vai para o topo onde executivos seniores pagam a si próprios bónus enormes. Dentre as principais corporações S&P 500 a proporção de rendimento que vai para dividendos de accionistas é a mais baixa desde 1900 (FT 1/30/12, p.6). 

Uma crise capitalista real afectaria adversamente margens de lucro, ganhos brutos e a acumulação de cash. Lucros ascendentes estão a ser amontoados porque quando capitalistas se aproveitam da exploração intensa o consumo das massas estagna. 

Os teóricos da crise confundem o que é claramente a degradação do trabalho, a degradação das condições de vida e de trabalho e mesmo a estagnação da economia, com uma "crise" do capital: quando a classe capitalista aumenta suas margens de lucros, arrecada milhões de milhões, ela não está em crise.
O ponto-chave é que a "crise do trabalho" é um grande estímulo para a recuperação de lucros capitalistas. Não podemos generalizar de uma para a outra. Não há dúvida de que houve um momento de crise capitalista (2008-2009) mas graças à maciça transferência de riqueza, sem precedentes no estado capitalista, do tesouro público para a classe capitalista – bancos da Wall Street em primeiro lugar – o sector corporativo recuperou, ao passo que os trabalhadores e o resto da economia permaneceu em crise, foi à bancarrota e ficou sem trabalho. 

Da crise à recuperação de lucros: 2008/9 a 2012 

A chave para a "recuperação" de lucros corporativos tem pouco a ver com o ciclo de negócios e tudo com a tomada de poder em grande escala da Wall Street e a pilhagem do Tesouro dos EUA. Entre 2009-2012 centenas de antigos executivos da Wall Street, administradores e conselheiros de investimento apoderaram-se de todas as principais posições decisiva no Departamento do Tesouro e canalizaram milhões de milhões de dólares para os cofres das principais financeiras e corporações. Eles intervieram em corporações financeiramente perturbadas, como a General Motors, impondo grandes cortes salariais e demissões de milhares de trabalhadores. 

Os homens da Wall Street no Tesouro elaboraram a doutrina do "Demasiado grande para falir" a fim de justificar a transferência maciça de riqueza. A totalidade do edifício especulativo construído em parte por um aumento de 234 vezes no volume de transacções cambiais entre 1977-2010 foi restaurado (FT 1/10/12, p.7). A nova doutrina argumentou que a primeira e principal prioridade do estado é devolver a lucratividade ao sistema financeiro a qualquer custo para a sociedade, os cidadãos, os contribuintes e os trabalhadores.
O "Demasiado grande para falir" é um repúdio completo dos mais básicos princípios do sistema capitalista de "mercado livre": a ideia de que aqueles capitalistas que perdem arquem as consequências; que cada investidor ou presidente de empresa é responsável pela sua acção. Os capitalistas financeiros já não precisam justificar sua actividade em termos de qualquer contribuição para o crescimento da economia ou da "utilidade social".
De acordo com os que agora dominam a Wall Street deve ser salva porque é a Wall Street, mesmo se o resto da economia e o povo afundarem (FT 1/20/12, p.11). Os salvamentos e financiamentos do estado são complementados por centenas de milhares de milhões em concessões fiscais, levando a défices fiscais sem precedentes e ao crescimento de desigualdades sociais maciças. O pagamento de um presidente de empresa (CEO) como um múltiplo do trabalhador médio passou de 24 para 1 em 1965 para 325:1 em 2010 (FT 1/9/12, p.5). 

A classe dominante exibe a sua riqueza e poder com a ajuda conivente da Casa Branca e do Tesouro. Face à hostilidade popular à pilhagem do Tesouro pela Wall Street, Obama chegou ao fingimento de pedir ao Tesouro para impor um teto aos bónus de muitos milhões de dólares que os presidentes de bancos salvos concediam-se a si próprios. Os homens da Wall Street no Tesouro recusaram-se a impor a ordem executiva, os CEOs obtiveram milhares de milhões em bónus em 2011. O presidente Obama continuou, pensando que enganava o público estado-unidense com o seu gesto falso, enquanto arrecadava milhões de fundos de campanha junto à Wall Street! 

A razão porque o Tesouro foi capturado pela Wall Street é que nas décadas de 1990 e 2000 os bancos se tornaram uma força dominante nas economias ocidentais. Sua fatia do PIB subiu drasticamente (de 2% na década de 1950 para 8% em 2010" (FT 1/10/12, p.7). 

Hoje é "procedimento operacional normal" para o presidente nomear homens da Wall Street para todas as posições económicas chave e é "normal" para estes mesmos responsáveis prosseguirem políticas que maximizam lucros da Wall Street e eliminam qualquer risco de fracasso, não importa quão aventurosos e corruptos sejam os seus praticantes. 

A porta giratória: Da Wall Street para o Tesouro e retorno 

A relação entre a Wall Street e o Tesouro tornou-se efectivamente uma "porta giratória": da Wall Street para o Departamento do Tesouro para a Wall Street. Banqueiros privados assumem compromissos no Tesouro (ou são recrutados) para assegurar que todos os recursos e políticas que a Wall Street são concedidas com o máximo esforço, com o mínimo obstáculo de cidadãos, trabalhadores ou contribuintes. Os homens da Wall Street no Tesouro dão a mais alta prioridade à sobrevivência, recuperação e expansão dos lucros da Wall Street. Eles bloqueiam quaisquer regulamentações ou restrições a bónus ou a repetições das fraudes do passado. 

Os homens da Wall Street "ganham reputação" no Tesouro e então retornam ao sector privado em posições mais altas, como conselheiros sénior e sócios. Uma nomeação no Tesouro é uma escada para subir na hierarquia da Wall Street. O Tesouro é um posto de abastecimento para a Limusine da Wall Street: o ex homens da Wall Street enchem o tanque, verificam o óleo e então salvam para o assento da frente e correm para um emprego lucrativo, deixando o posto de abastecimento (público) pagar a conta. 

Aproximadamente 774 executivos saíram do Tesouro entre Janeiro de 2009 e Agosto de 2011 (FT 2/6/12, p. 7). Todos eles proporcionaram "serviços" lucrativos para os seus futuros patrões da Wall Street, descobrindo uma grande maneira de re-entrar nas finanças privadas numa posição lucrativa mais alta.

Uma notícia no Financial Times Fev. 6, 2012 (p. 7) adequadamente intitulada "Manhattan Transfer" proporcionava ilustrações típicas da "porta giratória" Tesouro-Wall Street. 

Ron Bloom passou de banqueiro júnior no Lazard para o Tesouro, ajudando a engendrar um salvamento de um milhão de milhões de dólares da Wall Street e retornou ao Lazard como conselheiro sénior. Jake Siewert foi da Wall Street tornando-se ajudante principal do secretário do Tesouro Tim Geithner e então graduado na Goldman Sachs, tendo servido para solapar qualquer tecto nos bónus da Wall Street. 

Michael Mundaca, o mais sénior responsável fiscal no regime Obama veio da Street e então passou par um posto altamente lucrativo na Ernst and Young, uma firma corporativa de contabilidade, tendo ajudado a reduzir impostos corporativos durante o seu período no "gabinete público". 

Eric Solomon, um responsável fiscal sénior na infame isenção de impostos corporativos da administração Bush, fez a mesma comutação. Jeffrey Goldstein que Obama encarregou da regulação financeira e teve êxito em solapar exigências populares, retornou ao seu patrão anterior, Hellman and Friedman, com a adequada promoção pelos serviços prestados. 

Stuart Levey que dirigiu as sanções da AIPAC contra políticas do Irão a partir da chamada "agência anti-terrorista" do Tesouro foi contratado como advogado geral pelo HSBC para defendê-lo de investigações de lavagem de dinheiro (FT 2/6/12, p. 7). Neste caso Levey passou da promoção dos objectivos de guerra de Israel para a defesa de um banco internacional acusados de lavar milhares de milhões do cartel mexicano. Levey, a propósito gastou tanto tempo a insistir na agenda iraniana de Israel que ignorou totalmente a lavagem de dinheiro dos carteis mexicanos da droga com operações transfronteiriças durante quase uma década. 

Lew Alexander, conselheiro sénior de Geithner na concepção do salvamento de mil milhões de dólares, é agora responsável sénior no Nomura, o banco japonês. Lee Sachs passou do Tesouro para o Bank Alliance (sua própria "plataforma de concessão de empréstimos"). James Millstein foi do Lazard para o Tesouro, salvou a seguradora AIG dirigida abusivamente por Greenberg e então estabeleceu a sua própria firma privada de investimento tomando consigo um conjunto de responsáveis do Tesouro bem conectados. 

A "porta giratória" Goldman Sachs-Tesouro continua ainda hoje. Além do passado e actual chefes do Tesouro, Paulson e Geithner, Mark Patterson, antigo sócio da Goldman, foi recentemente nomeado "chefe de equipe" de Geithner. Tim Bowler, antigo administrador director foi nomeado por Obama para chefe da divisão de mercados de capital. 

Deveria ser perfeitamente claro que eleições, partidos e os mil milhões de dólares de campanhas eleitorais têm pouco a ver com "democracia" e mais a ver com a selecção dos presidente e dos legisladores que nomearão homens não eleitos da Wall Street para tomarem todas as decisões económicas estratégicas para 99% dos americanos. Os resultados da porta giratória Wall Street-Tesouro são claros e proporcionam-nos uma estrutura para entender porque a "crise do lucro" desvaneceu-se e a crise do trabalho aprofundou-se. 

Os "alcances políticos" da porta giratória 

O conluio Wall Street-Tesouro (CWST) tem desempenhado um trabalho hercúleo e audacioso para o capital financeiro e corporativo. Face à condenação universal da Wall Street pela vasta maioria do público pelas suas fraudes, bancarrotas, perdas de empregos e arrestos hipotecários, o CWST apoiou publicamente os trapaceiros com um salvamento de um milhão de milhões de dólares. Um movimento ousado face a isto, como se maiorias e eleições contassem para alguma coisa. Igualmente importante é que o CWTS lançou ao lixo toda a ideologia do "livre mercado" que justificava lucros dos capitalistas com base nos seus "riscos", pela imposição do novo dogma do "demasiado grande para falir" pelo qual o tesouro do estado garante lucros mesmo quando capitalistas enfrentam a bancarrota, desde que sejam firmas de milhares de milhões de dólares.
O CWST também jogou no lixo o principio capitalista da "responsabilidade fiscal" em favor de centenas de milhares de milhões de dólares de isenções fiscais para a classe dominante corporativo-financeira, provocando défices orçamentais recordes em tempo de paz e tendo então a audácia de culpar os programas sociais apoiados pelas maiorias populares. (Será de admirar que estes ex-responsáveis do Tesouro obtenham ofertas tão lucrativas no sector privado quando abandonam o gabinete público?) 

Em terceiro lugar, o Tesouro e o Banco Central (Federal Reserve) proporcionam empréstimos a juro próximo de zero que garantem grandes lucros a instituições financeiras privadas as quais tomam emprestado a juro baixo do Fed e concedem empréstimos a juro alto (incluindo o Governo!) especialmente na compra de governos além mar e títulos corporativos. Eles recebem em qualquer lugar de quatro a dez vezes as taxas de juro que pagam.
Por outras palavras, os contribuintes proporcionam um monstruoso subsídio à especulação da Wall Street. Com a condição acrescentada de que hoje estas actividades especulativas são agora assegurados pelo governo federal, sob a doutrina do "Demasiado grande para falir". 

Sob a ideologia da "recuperação da competitividade", a equipe económica de Obama (desde o Tesouro até o Federal Reserve, o Departamento do Comércio e o do Trabalho) encorajaram o patronato a empenhar-se no mais agressivo despedimento acelerado (shedding) de trabalhadores da história moderna. A produtividade e a lucratividade aumentadas não são o resultado de " inovação" como proclamam Obama, Geithner e Bernache; são produto de uma política de estado quanto ao trabalho que aprofunda a desigualdade pela manutenção de salários baixos e margens de lucro em ascensão. Menos trabalhadores a produzirem menos mercadorias. Crédito barato e salvamentos para os bancos de milhares de milhões de dólares e nenhum refinanciamento para casas e firmas de pequena e média dimensão que levam a bancarrotas, absorções (buyouts) e nomeadamente "consolidação", maior concentração de propriedade. Em resultado o mercado de massa estagna mas os lucros corporativos e dos bancos alcançam níveis recorde. Segundo peritos financeiros, sob a "nova ordem" do CWST "os banqueiros são uma classe protegida que desfruta de bónus sem relação com o desempenho, enquanto confia no contribuinte para socializar suas perdas" (FT 1/9/12, p.5). 

Em contraste, o trabalho, sob a equipe económica de Obama, enfrenta a maior insegurança e a mais ameaçadora situação da história recente: "o que é inquestionavelmente novo é a ferocidade com que os negócios nos EUA sangra o trabalho agora que o pagamento dos executivos e os esquemas de incentivo estão ligados a objectivos de desempenho a curto prazo" (FT 1/9/2012, p. 5). 

Consequências económicas de políticas de estado 

Por causa da captura pela Wall Street das posições estratégicas no governo quanto à política económica, podemos entender o paradoxo de margens de lucro recordes em meio à estagnação económica. Podemos compreender porque a crise capitalista, pelo menos a curto prazo, foi substituída por uma profunda crise do trabalho.
Dentro da matriz de poder da Wall Street-Departamento do Tesouro, retornaram todas as velhas e corruptas práticas de exploração que levaram ao crash de 2008-2009: bónus multi-bilionários para banqueiros de investimento que conduziram a economia ao crash; bancos "a apanharem rapidamente milhares de milhões de dólares de produtos hipotecários empacotados que recordam a dívida fatiada e jogada aos dados que alguns (sic) culpam pela crise financeira" (FT 2/8/12, p.1). A diferença hoje é que estes instrumentos especulativos são agora apoiados pelo contribuinte (Tesouro). A supremacia da estrutura financeira da economia estado-unidense anterior à crise está em vigor em próspera ... "só" a força de trabalho dos EUA afundou no maior desemprego, declínio de padrões de vida, insegurança generalizada e profundo descontentamento. 

Conclusão: O processo contra o capitalismo e pelo socialismo 

A crise profunda de 2008-2009 provocou um jorro de questionamentos do sistema capitalista, mesmo entre muitos dos seus mais ardentes advogados a crítica abunda (FT 1/8/12 a 1/30/12). "Reforma, regulamentação e redistribuição" eram o cardápio de colunistas financeiros. Mas a classe dominante na economia e no governo não lhe presta atenção. Os trabalhadores são controlados por líderes sindicais capachos e falta-lhe um instrumento político. Os pseudo populistas de direita abraçam uma agenda pró capitalista ainda mais virulenta, clamando pela eliminação total de programas sociais e impostos corporativos.
Dentro do estado, verificou-se uma grande transformação que efectivamente esmagou qualquer ligação entre capitalismo e estado previdência, entre a tomada de decisões pelo governo e o eleitorado. A democracia foi reatada por um estado corporativo, fundamentado na porta giratória entre o Tesouro e a Wall Street, a qual canaliza riqueza pública para cofres dos financeiros privados. A brecha entre o bem-estar da sociedade e as operações da arquitectura financeira é definitiva. 

A atividade da Wall Street não tem utilidade social; seus praticantes enriquecem-se sem actividade que os redima. O capitalismo demonstrou conclusivamente que prospera através da degradação de dezenas de milhões de trabalhadores e rejeita as súplicas infindáveis por reforma e regulamentação. O capitalismo real existente não pode ser arreado para elevar padrões de vida ou assegurar emprego livre do medo de despedimentos em grande escala, súbitos e brutais. O capitalismo, como experimentamos ao longo da última década e no futuro previsível, está em oposição polar à igualdade social, à tomada de decisões democráticas e ao bem-estar colectivo. 

Lucros capitalistas recordes são ampliados pela pilhagem do tesouro público, negando pensões e prolongando "trabalho até que você morra", levando famílias à bancarrota com exorbitantes custos corporativos de medicina e educação. 

Mais do que nunca na história recente, maiorias recordes rejeitam o domínio por e para os banqueiros e a classe dominante corporativa (FT 2/6/12, p. 6). Desigualdades entre os 1% do topo e a base dos 99% atingiram proporções recordes. Presidentes de empresas ganham 325 vezes mais do que um trabalhador médio (FT 1/9/12, p.5). Desde que o estado tornou-se um "fundamento" da economia dos predadores da Wall Street, e desde que a "reforma" e regulamentação fracassaram tristemente, é tempo de considerar uma transformação sistémica fundamental que abra caminho a uma revolução política a qual forçosamente expulsará as elites financeiras e corporativas não eleitas que dirigem o estado para os seus próprios exclusivos interesses.
A totalidade do processo político, incluindo eleições, está profundamente corrompida: cada nível de gabinete tem o seu próprio preço inflacionado. A actual disputa presidencial custará US$2 a US$3 mil milhões de dólares para determinar qual dos servidores da Wall Street presidirá sobre a porta giratória. 

O socialismo já não é a palavra assustadora do passado. O socialismo envolve a reorganização em grande escala da economia, a transferência de milhões de milhões dos cofres das classes predadoras de nenhuma utilidade social para o bem-estar público. Esta mudança pode financiar uma economia produtiva e inovadora baseada no trabalho e no lazer, no estudo e no desporto.

O socialismo substitui o terror diário da demissão pela segurança que traz confiança, segurança e respeito ao lugar de trabalho. A democracia no lugar de trabalho está no cerne da visão de socialismo do século XXI. Começamos por nacionalizar os bancos e eliminar a Wall Street. As instituições financeiras são redesenhadas para criar emprego produtivo, servir o bem-estar social e preservar o ambiente. O socialismo começaria a transição, de uma economia capitalista dirigida por predadores e trapaceiros e um estado sob o seu comando, rumo a uma economia de propriedade pública sob controle democrático.

[*] O seu livro mais recente é The Arab Revolt and the Imperialist Counter Attack, Clarity Press, 2012, 2ª edição. 

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Com apoio do PCB

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

“O povo boliviano vive a maior revolução social”, afirma García Linera

Além de ser o vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera é um dos mais importantes intelectuais de esquerda, latino-americano, no continente. Ainda que sua profissão inicial seja o de matemático (estudou na Universidade Nacional Autônoma do México), formou-se como sociólogo na prisão e na prática.

A entrevista é de Luis Hernández Navarro e publicada pelo jornal mexicano La Jornada, 08-02-2012. A tradução é do Cepat.

Ele teorizou a experiência boliviana de transformação como ninguém fez, ou seja, com originalidade, profundidade e desenvoltura. E a experiência boliviana atualmente é uma referência obrigatória e cada vez mais ascendente no movimento popular latino-americano. García Linera conhece e domina com profundidade o marxismo clássico, mas está muito longe de ser doutrinário. Seu pensamento é muito influenciado pela obra de Pierre Bourdieu.

Na entrevista para La Jornada, o vice-presidente assinala que o fato fundamental que se vive no atual processo, em curso, de transformação política é que os indígenas, maioria demográfica, são hoje ministros e ministras, deputados, senadores, diretores de empresas públicas, redatores de constituições, juízes máximos da justiça, governadores; presidente. Este fato, desde a sua fundação, significa a maior revolução social e igualitária que aconteceu na Bolívia.

García Linera caracteriza o modelo econômico de seu país como pós-neoliberal e de transição pós-capitalista. Um modelo que recuperou o controle dos recursos naturais, que estavam nas mãos de estrangeiros, para colocá-los nas mãos do Estado, dirigido pelo movimento indígena.

Eis a entrevista.

Faz seis anos que vocês governam a Bolívia. Houve, realmente, avanços na descolonização do Estado?

Na Bolívia, o fato fundamental que vivemos é que aquelas pessoas, a maioria da população de antes e de agora, os indígenas, a quem a brutalidade da invasão e os sedimentos centenários da dominação estabeleceram no próprio sentido de classes dominantes e classes dominadas que estavam predestinados a serem camponeses, trabalhadores de postos inferiores, artesãos informais, porteiros ou garçons, hoje são ministros e ministras, deputados, senadores, diretores de empresas públicas, redatores de constituições, juízes máximos da justiça, governadores; presidente.

A descolonização é um processo de desmontagem das estruturas institucionais, sociais, culturais e simbólicas que subsumem a ação cotidiana dos povos aos interesses, às hierarquias e às narrativas impostas por poderes territoriais externos. A colonialidade é uma relação de dominação territorial que se impõe à força e com o tempo se ‘naturaliza’, inscrevendo a dominação nos comportamentos ‘normais’, nas rotinas diárias, nas percepções de mundo dos próprios povos dominados. Por conseguinte, desmontar essa maquinaria da dominação requer muito tempo. Em especial, o tempo que é necessário para modificar a dominação convertida em sentido comum, no hábito cultural das pessoas.

As formas organizativas comunais, agrárias e sindicais do movimento indígena contemporâneo, com suas formas de deliberação em assembleias, de giro tradicional de cargos, em alguns casos, de controle comum dos meios de produção, são atualmente os centros de decisão na política e em boa parte da economia na Bolívia.

Nos dias atuais, para influir nos pressupostos do Estado e para saber a agenda governamental não adianta andar de braços dados com altos funcionários do Fundo Monetário, do Banco Interamericano de Desenvolvimento e com as embaixadas estadunidenses ou europeias. Hoje, os circuitos do poder estatal passam pelos debates e decisões das assembleias indígenas, operárias e de bairros.

Os sujeitos da política e a institucionalização real do poder moveu-se para o âmbito do pobre e do indígena. Os anteriormente chamados ‘cenários de conflito’, como sindicatos e comunidades, hoje são os espaços do poder fático do Estado. E os antes condenados para a subalternidade silenciosa, atualmente são os sujeitos decisórios da trama política.

O fato da abertura do horizonte de possibilidade histórica dos indígenas, de poderem ser agricultores, operários, pedreiros, empregadas, mas também chanceleres, senadores, ministras ou juízes supremos, é a maior revolução social e igualitária que ocorreu na Bolívia desde sua fundação. ‘Índios no poder’, é a frase seca e depreciativa com que as deslocadas senhoras classes dominantes anunciam a hecatombe desses seis anos.

Como caracterizar o modelo econômico posto em prática? É uma expressão do socialismo no século XXI? É uma modalidade do pós-neoliberalismo?

Basicamente pós-neoliberal e de transição pós-capitalista. Recuperou-se o controle dos recursos naturais que estava nas mãos estrangeiras, para colocá-los nas mãos do Estado, que é dirigido pelo movimento indígena (gás, petróleo, parte dos minerais, água, energia elétrica); enquanto outros recursos, como o imposto sobre a terra, o latifúndio e as florestas, passaram para o controle de comunidades e povos indígena-camponeses.

O Estado é, no momento atual, o principal gerador de riqueza do país, e essa riqueza não é valorizada como capital; ela é redistribuída na sociedade por meio de bônus, rendas e benefícios sociais diretos para a população, além do congelamento das tarifas dos serviços básicos, dos combustíveis e a subvenção da produção agrária. Pretende-se priorizar a riqueza como valor de uso, acima do valor de troca. Nesse sentido, o Estado não se comporta como capitalista coletivo, próprio do capitalismo de Estado, senão como um redistribuidor de riquezas coletivas entre as classes trabalhadoras e um potencializador das capacidades materiais, técnicas e associativas dos modos de produção camponeses, comunitários e artesanais urbanos. Nesta expansão do comunitário agrário e urbano depositamos nossa esperança de transitar pelo pós-capitalismo, sabendo que essa também é uma obra universal e não somente de um país.

A partir da Bolívia, como se vê o processo de integração regional? Que papel desempenham os Estados Unidos e a Espanha? Que espaço tem China, Rússia e Irã?

O continente latino-americano atravessa um ciclo histórico excepcional. Grande parte dos governos é de caráter revolucionário e progressista. Os governos neoliberais tendem a mostrarem-se retrógados. E, ao mesmo tempo, a economia latino-americana desdobra iniciativas internas que a permite enfrentar de maneira vigorosa os efeitos da crise mundial. Em particular, os mercados regionais e a vinculação com a Ásia definiu uma arquitetura econômica continental de um novo tipo. É necessário apostar no aprofundamento desta articulação regional e, se possível, projetarmos uma espécie de Estado regional de estado e nações. Comportarmo-nos como Estado regional no âmbito do uso e negociação planetária das grandes riquezas estratégicas que possuímos (petróleo, minerais, lítio, água, agricultura, biodiversidade, indústria semielaborada, força de trabalho jovem e qualificada...) e, internamente, respeitar a soberania estatal e as identidades nacionais regionais que o continente possui. Só assim poderemos ter voz e força própria no curso das dinâmicas de mundialização da vida social.

Existe um papel ativo de Washington para sabotar a transformação boliviana em curso?

O governo estadunidense nunca aceitou que as nações latino-americanas possam definir seu destino porque sempre considerou que formamos parte da área de influência política para sua seguridade territorial, e somos o seu centro de provisão em riquezas naturais e sociais. Qualquer dissidência neste enfoque colonial coloca a nação insurgente na mira de ataque. A soberania dos povos é o inimigo número um da política estadunidense.

Isso aconteceu com a Bolívia nesses seis anos. Nós não temos nada contra o governo estadunidense, nem contra o seu povo. No entanto, não aceitamos que nada, absolutamente que ninguém de fora nos venha dizer o que temos que fazer, dizer ou pensar. E quando como governo de movimentos sociais começamos a assentar as bases materiais da soberania estatal ao nacionalizar o gás; quando rompemos com a vergonhosa influencia das embaixadas nas decisões ministeriais; quando definimos uma política de coesão nacional enfrentando abertamente as tendências separatistas latentes nas oligarquias regionais, a embaixada dos Estados Unidos não apenas apoiou financeiramente as forças conservadores, como as organizou e dirigiu politicamente, numa brutal ingerência em assuntos internos. Isso nos obrigou a expulsar o embaixador e depois a agência antidrogas desse país (DEA).

Desde então, os mecanismos de conspiração tornaram-se mais sofisticados: usam organizações não governamentais, infiltram-se por intermédio de terceiros nos agrupamentos indígenas, dividem e projetam lideranças paralelas no campo popular, como recentemente ficou demonstrado mediante o fluxo de chamadas da própria embaixada de alguns dirigentes indígenas da marcha do Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure (TIPNIS), no ano passado.

De qualquer maneira, nós buscamos respeitosas relações diplomáticas, mas também estamos atentos para repelir as intervenções estrangeiras de ‘alta’ ou ‘baixa’ intensidade.

Alguns setores da esquerda aponta que o bloco conservador conseguiu rearticular-se e tomar a ofensiva, enquanto o movimento social que levou o MAS ao poder foi absorvido pela política institucional. É correta esta consideração?

Hoje, o bloco conservador de oligarquias estrangeirizantes não tem um projeto alternativo de sociedade capaz de articular uma vontade geral de poder. O horizonte da atual política boliviana está marcado por um tripé virtuoso: o pluralismo da nação (povos e nações indígenas no mando do Estado); a autonomia (desconcentração territorial do poder) e a economia plural (coexistência articulada pelo Estado dos diversos modos de produção).

Temporalmente derrotado o projeto neoliberal de economia e sociedade da direita, nesse momento o que caracteriza a política boliviana é a emergência de ‘tensões criativas’ no interior do mesmo bloco nacional-popular no poder. Passado os grandes momentos de ascensão das massas, quando se construiu o ideário universal das grandes transformações, o movimento social vive em alguns casos um processo de retrocesso corporativo. Tendem a prevalecer, às vezes, interesses locais acima dos interesses nacionais, ou as organizações se enroscam em rivalidades internas pelo controle de cargos públicos. Porém, também emergem novas temáticas não previstas sobre como conduzir o processo revolucionário. É o caso do tema da defesa dos direitos da mãe terra, tensionados com a exigência também popular de industrializar os recursos naturais.

Como se pode notar, tratam-se de contradições no meio do povo, tensões que submetem ao debate coletivo o modo de levar adiante as mudanças revolucionárias. E isso é saudável, é democrático e é o ponto de apoio na renovação vivificante da ação dos movimentos sociais. Embora também se tratem de contradições que podem ser usadas pelo imperialismo e pelas forças de direita entocadas, que de modo ventríloquo e travestido projetam seus interesses, ao longo prazo, por meio de alguns sujeitos populares e de discursos aparentemente altermundistas e ecologistas.

Em setembro do ano passado, a marcha dos povos indígenas em defesa do TIPNIS e contra a construção de uma estrada foi reprimida pela polícia. O fato foi apresentado para a opinião pública como a perda de apoio indígena ao governo de Evo Morales. Foi afirmado que o governo boliviano obstinou-se em construir a estrada porque recebeu apoio econômico da empresa petroleira brasileira OAS. Isso está correto?

A população indígena na Bolívia, como na Guatemala, é majoritária em relação ao resto dos habitantes. São 62% os bolivianos indígenas. As principais nações indígenas são a aymara e a quéchua, com cerca de seis milhões de pessoas localizadas principalmente no altiplano, nos vales nas áreas de yungas e também em terras baixas. Outras nações indígenas são os guaranis, moxeños, yuracares, chiman, ayoreos e outras 29 que habitam a Amazônia, a Chiquitania e o Chaco, em terras baixas. A população total destas nações em terras baixas é estimada em 250 mil e 300 mil habitantes, no seu total.

O conflito sobre o TIPNIS envolveu alguns povos indígenas das terras baixas, mas se manteve o apoio dos indígenas das terras altas e vales, que são 95% da população indígena da Bolívia. E dos indígenas mobilizados, a maior parte eram dirigentes de outras áreas que não precisamente do TIPNIS, mas que contam com um apoio sistemático de organismos não governamentais ambientalistas, vários deles financiadas pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), além do respaldo das principais redes de comunicação televisiva privada, de propriedade de velhos militantes da oligarquia separatista, e com ampla influência na construção da opinião pública da classe média. Esses dias chegou a La Paz outra marcha de indígenas das terras baixas e com maior presença de indígenas do TIPNIS, que demandam a construção da estrada para o parque, argumentando que não é possível que os deixem à margem dos direitos à saúde, educação e transporte, que atualmente só podem acessar depois de dias de caminhada.

O problema é complexo. Estão mesclados temas próprios do debate revolucionário, como o do difícil equilíbrio entre o respeito à mãe terra e a necessidade urgente de ligar o país após séculos de desarticulação isolacionista das regiões. Está, também, o debate entre a relação orgânica e a liderança dos povos indígenas das terras altas, no Estado de pluralidade nacional, diferente da relação ainda ambígua com o Estado plurinacional por parte dos povos indígenas das terras baixas.

Porém, também é por meio da estratégia da oligarquia regional de Santa Cruz para impedir essa estrada, que desvincularia a atividade econômica de toda a Amazônia de seu controle empresarial. É o interesse estadunidense de resguardar a Amazônia como seu reservatório de água e biodiversidade, e de promover divisões entre as lideranças indígenas para criar condições para a expulsão dos indígenas do poder estatal. É o interesse de algumas ONGs acostumadas a fazer grandes negócios privados com os parques.

Em todo caso, em meio a essa trama de interesses, como governo temos que ter a capacidade de resolver democraticamente as tensões internas, e de desvelar e neutralizar os interesses contrarrevolucionários que muitas vezes se vestem de roupagem pseudorrevolucionário.

Por que construir essa estrada apesar da oposição de uma parte da população? Por três motivos. O primeiro, para garantir à população indígena do parque o acesso aos direitos e garantias constitucionais: água potável para que as crianças não morram de infecções estomacais. Escolas com professores que ensinem em seu idioma, preservando sua cultura e enriquecendo-a com outras culturas. Acesso a mercados para levar seus produtos sem ter que demorar uma semana em balsas para vender seu arroz ou comprar sal dez vezes mais caro que em qualquer armazém do bairro.

O segundo motivo é que a estrada permitirá ligar pela primeira vez a Amazônia, que é uma terceira parte do território boliviano, com o resto das regiões dos vales e altiplano. A Bolívia mantém isolada a terceira parte de sua territorialidade, o que permitiu que a soberania do Estado fosse substituída pelo poderio do fazendeiro, do madeireiro ou do narcotraficante.

E o terceiro motivo é o caráter geopolítico. As tendências separatistas da oligarquia, que estiveram a ponto de dividir Bolívia, em 2008, foram contidas porque foram derrotadas politicamente durante o golpe de Estado de setembro desse ano, e porque parte de sua base material, a agroindústria, foi ocupada pelo Estado. No entanto, há um último pilar econômico que mantém em pé as forças retrógadas de tendências separatistas: o controle da economia amazônica, que para chegar ao resto do país, obrigatoriamente, tem que passar pelo processamento e financiamento de empresas sob o controle de uma fração oligárquica assentada em Santa Cruz. Uma estrada que ligue diretamente a Amazônia com os vales e o altiplano reconfiguraria radicalmente a estrutura de poder econômico regional, derrubando a base material final dos separatistas e dando lugar a um novo eixo geoeconômico no Estado. O paradoxo de tudo isto é que a história coloca alguns esquerdistas como os melhores e mais loquazes defensores dos interesses mais conservadores e reacionários que existe nesse país.

Dizem que a Bolívia segue sendo uma abastecedora de matérias-primas no mercado internacional e que o modelo de desenvolvimento na prática (que alguns analistas qualificam como extrativistas) não questiona este papel. Isso é correto? Trata-se de uma fase transitória de acumulação que é acompanhada de uma redistribuição de renda?

Nem o extrativismo, nem o não extrativismo e nem o industrialismo são uma vacina contra a injustiça, a exploração e a desigualdade. Em si mesmos, não são nem modos de produzir, nem modos de administrar a riqueza. São sistemas técnicos de processar a natureza mediante o trabalho. E dependendo de como se usam esses sistemas técnicos, de como se administra a riqueza assim produzida, poderá haver regimes econômicos com maior ou menor justiça, com exploração ou sem exploração do trabalho.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

AS FARC ANUNCIAM ADIAMENTO DE LIBERTAÇÕES

Através de comunicado divulgado nas redes sociais em 01 de fevereiro de 2012, o secretariado da organização guerrilheira manifesta o adiamento das libertações.

DECLARAÇÃO PÚBLICA

Senhoras:

Lucía Topolanski, Jody Williams, Elena Poniatowska, Alice Williams, Mirta Baravalle, Isabel Allende, Rigoberta Menchú, Socorro Gómez, Elsie Mongue, Ángela Jeira y Piedad Córdoba, nossas cordiais saudações;

A região que tinhamos escolhido para a libertação dos prisioneiros de guerra Luis Alfonso Beltrán, César Augusto Laso, Carlos José Duarte, Jorge Trujillo, Jorge Humberto Romero e José Libardo Forero, todos membros das forças armadas do Estado capturados em combate, foi militarizada injustificadamente pelo governo da Colômbia, o que nos obriga a adiar a sua realização.

Militares patriótas
tinham nós alertado das intenções do governo Santos de procurar a qualquer custo um resgate militar, sem se importar com a possibilidade de um resultado trágico, como ocorreu no passado 26 de novembro. Essa atitude corresponde à recente determinação governamental de impedir a participação internacional humanitária na anunciada libertação.

Queremos libertá-los vivos, mas parece que o governo prefere entregá-los em catafalcos às suas famílias.

Distintas senhoras, saibam que, apesar destas circunstâncias, a nossa determinação unilateral, surgida da soberania política das FARC e de um profundo sentido de humanidade, ainda está de pé. Assim que a insanidade que tomou conta do Palácio de Nariño se acalme, faremos uma nova tentativa para que as senhoras possam receber aqueles que serão liberados.

Secretariado do Estado Maior Central das FARC-EP
Montanhas da Colômbia, 1 de fevereiro, 2012

DECLARACIÓN PÚBLICA

Señoras

Saludo cordial.

Secretariado del Estado Mayor Central de las FARC-EP

Montañas de Colombia febrero 1 de 2012