"A LUTA DE UM POVO, UM POVO EM LUTA!"

Agência de Notícias Nova Colômbia (em espanhol)

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A violência do Governo Colombiano não soluciona os problemas do Povo, especialmente os problemas dos camponeses.

Pelo contrário, os agrava.


segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Yuri Camargo: Da selva a Havana pelo caminho da paz


Quando cai a noite, o guerrilheiro pendura sua rede ou, em poucos minutos, arma sua caleta, uma espécie de cama rústica coberta por um toldo impermeável e um mosquiteiro para proteger o sono de dois inimigos onipresentes na selva colombiana: a chuva torrencial e os mosquitos.


Por Jesus Adonis Martínez

Jornalista da redação de América do Sul da Prensa Latina.

Logo o acampamento dorme e somente os sentinelas permanecem de pé. Para uma guerrilha com mobilidade o dia é cansativo, com marchas de 10 a 12 quilômetros por esses caminhos estreitos que atravessam a selva amazônica.

Mas também é preciso cuidar-se do verdadeiro inimigo; dos aviões de reconhecimento e dos obuses do Exército que podem fazer "chover" ao menor descuido.

Por isso o silêncio desde cedo; por isso as lanternas que apontam para o solo; por isso os ouvidos atentos aos ruídos no ar e os olhos pendentes do menor lampejo delator...

Antes do amanhecer o batalhão guerrilheiro (50 ou 60 homens) já está de novo em marcha e cada guerrilheiro avança com seus quase 30 quilos de armamento, material de reserva, objetos pessoais e provisões coletivas.

É o que conta o comandante Yuri Camargo, nome de guerra do homem que serviu como chefe da Frente 52 do Bloco Oriental das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia - Exército do Povo (Farc - EP) até sua designação como integrante da delegação da guerrilha aos diálogos de paz com o governo de seu país em Havana.

Camargo - alto, de rosto pálido, bigode ralo, cabelo curto e óculos leves - é dentista de formação. Talvez por isso, não gosta de abrir muito a boca.

Mas no início de dezembro último foi o porta-voz das Farc - EP em sua denúncia da reforma da lei penal militar na Colômbia; contudo, reconhece que a estas alturas seus nervos estão feitos para lidar mais com um bombardeio noturno do que com a ameaça incruenta de câmeras e gravadores.

Sua copiosamente enquanto conversa com a Prensa Latina em um salão do Hotel Palco, em Havana, mas relata sua história com clareza, com a simplicidade do menino camponês que – rememora - sempre viu seus pais trabalharem por um magro pagamento diário, pois "nunca houve a possibilidade de ter alguma propriedade", explica.

"Passaram a vida ganhando diárias, cuidando de fazendas e coisas do tipo", recorda Camargo; e continua explicando: "Eu sou da parte oriental da Colômbia, de uma das regiões mais pobres e abandonadas (Meta, Guaviare, Guainía, Vichada, Vaupés), onde o Estado colombiano nunca fez investimento social e muitos camponeses buscam um pedaço de terra para ganhar a vida".

Conta que no início da década de 1980, a guerrilha apareceu na região onde vivia com sua família.

"Começaram a falar conosco; falavam-nos da situação de pobreza, explicaram-nos as ideias de sua luta e nos disseram que as Farc estavam lutando contra esse estado de coisas e por uma mudança social".

"Fomos compreendendo essas coisas. Isso foi o que nos impulsionou, a mim e dois irmãos meus e alguns vizinhos a lutar por uma mudança, por uma vida melhor", diz Camargo em um tom cada vez mais firme; ele se somou à guerrilha em 1983, quando tinha apenas 13 anos.

Segundo o guerrilheiro, os camponeses colombianos "não tinham praticamente oportunidade de trabalho, educação, assistência médica; não havia modo de ir adiante e ajudar os pais".

A coca era então sua única possibilidade para obter recursos. Nessas regiões a única presença do Estado era precisamente a do Exército, que chegava para reprimir e tomar dos moradores o pouco que tinham".

"Empunhar as armas foi o caminho", assegura.

A história de Yuri Camargo foi a mesma de muitos jovens da Colômbia profunda. Mesmo quando tem um posto na mesa de diálogo de Havana, este combatente de meia idade não duvida em afirmar que ainda hoje perduram as condições sociais que há décadas levaram ao surgimento das Farc.

No momento de sua incorporação à luta, Camargo não contava com uma formação teórico-revolucionária, embora – aponta - seus pais "mantivessem alguma relação com companheiros que naquela época militavam no Partido Comunista" e criticavam o estado de miséria no país.

"Depois de ingressar na guerrilha, a pessoa começa a receber educação e vai despertando desse sono em que o atraso a mantém submetida", diz Camargo, que em seguida faz notar que boa parte do povo colombiano é "como se estivesse anestesiado, fundamentalmente pelos meios de comunicação".

"Eu, logicamente, comecei como guerrilheiro de base, desempenhando pequenas tarefas; posteriormente, de acordo com os estudos e a capacidade adquirida, a pessoa ascende e assume cargos políticos ou militares".

Camargo evoca sua instrução inicial em odontologia em um consultório de campanha, seus primeiros passos na prática dessa especialidade nos acampamentos guerrilheiros e seu posterior ingresso na Universidade Nacional, na qual - assinala – se matriculou "como uma pessoa comum, com meu nome e documentação reais".

"No meu regresso à guerrilha, já graduado, comecei a organizar unidades de atendimento e recebi no Bloco Oriental um grupo de companheiros para instruí-los. Atualmente, temos um grande número de odontólogos, muitos inicialmente formados por mim", afirma.

Posto hipoteticamente diante daquela famosa disjuntiva do Che Guevara, quando – segundo se lê em suas Passagens da guerra revolucionária - o mítico guerrilheiro cubano-argentino teve que escolher (em plena escapada e sob o fogo cerrado do inimigo) entre a mochila de equipamentos médicos e remédios e uma caixa de balas, Yuri Camargo tem dúvidas.

Compreende o simbolismo da escolha e os apuros daquele instante em que o Che decidiu levar a caixa de munições; mas pero decide responder – talvez salomonicamente - que tanto a perícia e os apetrechos militares como a capacidade e a consagração médica são imprescindíveis para manter uma guerra irregular contra um exército convencional.

Desde sua dupla condição de comandante e dentista, Camargo explica que o sistema sanitário das Farc - EP está baseado na mobilidade, uma característica imprescindível nas condições da luta guerrilheira.

"Usamos equipamentos odontológicos portáteis, materiais que podem ser transportados por seis ou sete pessoas; além disso, aproveitamos todos os recursos que a natureza nos oferece".

Não obstante, esclarece que a guerrilha possui mecanismos para a aquisição de equipamentos e medicamentos que provêm do exterior.

No que se refere à medicina geral, indica que as Farc contam com companheiros médicos, clínicos gerais, anestesistas, ortopedistas..., que desenvolvem seu trabalho em todas as áreas em conflito.

"Temos hospitais móveis; desenvolvemos campanhas cirúrgicas durante as quais são atendidos casos de cirugia ambulatorial em diferentes zonas, e, claro, também existem lugares preparados para operações mais complexas", resume Camargo.

O guerrilheiro – já muito mais à vontade diante do gravador - se estende em sua explicação e indica que as Farc levam a cabo ações cívico-militares, mediante as quais oferecem atendimento médico a moradores de regiões recônditas e igualmente a companheiros perseguidos pelo governo, que não podem aceder aos serviços sanitários das cidades.

Por outro lado, Camargo assevera que a guerrilha possui estatutos que "obrigam a respeitar a integridade física e moral" dos adversários, sejam feridos em combate ou prisioneiros.

É igualmente um dever prestar atenção médica aos efetivos inimigos, de acordo com nossas possibilidades, afirma.

Assim o representante na mesa de paz de Havana responde às declarações de membros do Exército, que meses atrás acusaram as Farc - EP de não ser reciproca no atendimento de saúde que as forças regulares dão aos guerrilheiros feridos ou prisioneiros.

Quase no final da entrevista, Camargo - médico e líder militar como seus camaradas Mauricio Jaramillo, chefe do Blocoe José Maria Córdoba, e Timoleón Jiménez, comandante em chefe das Farc, se mostra esperançoso no caminho que está sendo seguido pelas conversações de paz, as quais serão reiniciadas nesta segunda-feira (14).

"Precisamente, estamos trabalhando agora com o governo para definir que políticas devem ser aplicadas nessas regiões durante muitos anos abandonadas à própria sorte", diz.

Camargo só ensombrece o rosto quando se recorda a recente ampliação dos foros militares porque essa "blindagem pode ser sinônimo de "mais impunidade, desaparecimentos, massacres...", sublinha.

Terminada a conversação, o combatente relaxa e toma um café forte, à moda cubana. Diz que já está quase acostumado a bebê-lo assim.

O mesmo ocorre com a cama macia em que dorme toda noite e os confortos da roupa lavada e passada e os serviços de arrumação do quarto de hotel... com tudo.

Yuri Camargo nasceu com outro nome em uma casa de camponeses pobres e desde os 13 anos dorme em sua cama rústica de guerrilheiro nas selvas colombianas.

(Com apoio de Portal Vermelho)