"A LUTA DE UM POVO, UM POVO EM LUTA!"

Agência de Notícias Nova Colômbia (em espanhol)

Este material pode ser reproduzido livremente, desde que citada a fonte.

A violência do Governo Colombiano não soluciona os problemas do Povo, especialmente os problemas dos camponeses.

Pelo contrário, os agrava.


domingo, 14 de junho de 2015

Resposta do Comandante Iván Márquez ao Procurador Alejandro Ordoñez


La Habana, 10 de junho de 2015



Senhor

ALEJANDRO ORDOÑEZ MALDONADO

Procurador Geral da Nação


Sobre sua carta de 4 de junho, o seguinte:

O marco jurídico para a paz não é o denominado Ato Legislativo 01 de 2012. Para as FARC-EP, alçada em armas desde há décadas em uso do legítimo direito de rebelião consagrado em textos que você deve conhecer, o marco jurídico para a paz é o Acordo Geral para a Terminação do Conflito e a Construção de uma Paz Estável e Duradoura subscrito entre os plenipotenciários de nossa organização e os do governo a 26 de agosto de 2012, frente a terceiros estados que marcaram presença como testemunhas. Aquele instrumento, o primeiro citado, que se pretende nos aplicar, carece de poder vinculante já que não só escapa ao teor da letra do Acordo Geral senão que na agenda recolhida no mesmo nem se prevê nem muito menos se menciona. Insistir em estendê-lo às conversações de paz ou pretender que se recolha como mandato substitutivo de suas conclusões é desconhecer a natureza política, social e militar da confrontação armada interna que supera hoje as seis décadas de existência, e não compreender que o que se busca é a reconciliação nacional estável e duradoura.
Entendemos que você tem uma visão confusa sobre o que vem sucedendo no país e na mesa de Havana. Tem você pretendido ser um diretor de orquestra a distância de todas as partituras, trágicas muitas delas, sem ter esclarecido primeiro seu papel e o da instituição que temporariamente preside, dentro do contexto afastado do conflito que tanta dor tem produzido à história nacional e ao povo da Colômbia em geral.
A razão natural que tem muito a ver com o manejo e a aplicação do sentido comum mostra que uma comissão da verdade busca exatamente o que sua qualificação indica: a verdade. Porém, não sua verdade, senhor Procurador. Nem a verdade que agentes oficiais do Estado ou alguns setores da opinião despótica querem ouvir. Não. A verdade que se busca é a que brote dos lábios das vítimas, por terem sofrido em carne própria a tragédia da guerra, ou por levar a voz de seus parentes caídos ou desaparecidos em razão do conflito; a verdade que se quer conhecer é a que se ouve das tumbas, que falarão quando se retirem suas lápides e se trabalhem cientificamente os restos mortais que elas guardam; a que surja quando se ponha de manifesto a realidade sobre o deslocamento forçado, sobre a usurpação indevida de propriedades, sobre a forma como se atiraram corpos humanos aos rios, aos tanques infestados de crocodilos ou se levaram aos fornos crematórios para não deixar rastro algum, tratando-se de humildes campesinos ou cidadãos arrancados de suas casas para serem exterminados com sevícia. Se trata da verdade que deve brilhar quando se indique quem foram os destroçados com as motosserras usadas como arma de aniquilamento contra supostos inimigos. Não se trata da verdade que invoque uma lei e sim da verdade que invoque a razão, a honesta memória e o desejo de superar o conflito de maneira definitiva, da reparação integral e de garantias de não repetição. Em seu momento, nós outros também cumpriremos nosso compromisso com a verdade como já demonstramos que somos capazes de fazê-lo.
E se trata também, senhor Procurador, da verdade saída do militar ou do oficial de polícia quando faça seus relatos e indique de quem ou como recebeu a ordem; como e os que instruíram a aniquilação por morte violenta de milhares de militantes da União Patriótica, e de homens e mulheres assassinados por pensar diferente ou por defender o direito do outro; e como sobreveio a política sangrenta e covarde dos falsos positivos; do funcionário do Estado que olhou para o outro lado para permitir a realização do delito; do financista especulador e lavador de dinheiro; a do empresário, pecuarista, terra-tenente que desrespeitou ao Estado fazendo justiça por suas próprias mãos; a da direção política nacional e dos partidos que utilizaram os cartéis da droga para financiar-se e ter acesso ao poder, ou que deu tapinhas nas costas do paramilitar para estimulá-lo e assim alcançar suas danificadas aspirações e incumbências.
A Corte que você cita com tanto entusiasmo, senhor Procurador, moralmente deixou de existir. O jus puniendi como poder do Estado legítimo chegou ao fundo do desprestígio. A hidra da corrupção tomou os corredores do Palácio de Justiça. Supomos que você está atento às notícias. Se chegou a afirmar que o que ali acontece é pior que o ocorrido no dia em que as chamas converteram em cinzas honoráveis magistrados e cidadãos inocentes. Então, não nos pretenda vender a ideia, senhor Procurador, de que temos que acolher-nos a um sistema de justiça elaborada por doutrinadores estrangeiros que nunca imaginaram que seria acomodada a tesouradas e remendos numa espécie de alfaiataria jurídica para vestir grosseiramente processos políticos de paz; e que, diga-se de passagem, teria que ser desenvolvida ainda mediante leis estatutárias que passariam ao conhecimento da Corte antes referida. Corte que, como já se advertiu, deixou de lado sua legitimidade. Ninguém é alheio ao fato de que hoje vários de seus integrantes abandonaram a majestade que deveria ter sua investidura por preferir as falsas delícias do delito.
Priorização”, “ponderação”, “seleção”, “sistematização”, “máximos responsáveis” e “macro processos”. Após sessenta anos de conflito interno, inventar-se semelhante procedimento para pôr a mão nuns poucos e encarcerá-los ao final da contenda? Senhor Procurador, você, que se diz ser conhecedor da Palavra divina, se atreve a “atirar a primeira pedra?”. “Bombas, senhor Presidente! Bombas!”, tem sido seu clamor. Você é uma das partes atuantes do conflito; há tempos deixou de ser civil não comprometido, senhor Procurador. Como é que não se deu conta?
Indiquei acima que você não esclareceu seu papel e o da instituição que passageiramente preside dentro do contexto afastado do conflito que tanta dor tem produzido à história nacional e ao povo da Colômbia em geral. E isso é assim. Nunca a Procuradoria, em desenvolvimento de sua suposta obrigação de zelar pela defesa da sociedade, se perguntou ou investigou por que a força pública jamais enfrentou no campo de batalha as forças paramilitares. Isto durante mais de trinta anos. Foram metralhados civis inocentes sem que sua instituição houvesse tomado iniciativas nem medida alguma.
Tampouco se preocupou a instituição que hoje você preside, nem você mesmo, pela sorte dos caídos ou assassinados nos campos da Colômbia mais além do atuar paramilitar, nem têm sido de seu interesse os protocolos próprios do DIH que devem ser aplicados de maneira imperativa para estabelecer a identificação de cadáveres para em seguida devolvê-los a seus seres queridos. Quando se preocupou você pelos direitos da viúva, do filho, do irmão ou da mãe de um guerrilheiro? Quando se lhe despertou a curiosidade por averiguar por que só os filhos dos pobres numa sociedade claramente estratificada são os que se convertem em bucha de canhão enquanto seus iguais, os seus, senhor Procurador, jamais souberam portar um fuzil? Por que não defende aos menos favorecidos? Por que se prefere que seja o sangue destes o que se derrame? Porque, se se trata de fazer justiça, defenda você o princípio de igualdade, ainda para ser aplicado a sua própria pessoa e a sua própria classe.
Senhor Procurador: O “olho por olho, dente por dente” é uma prática bárbara e um anacronismo perverso em épocas de paz e reconciliação. Você, senhor Procurador, usa uma linguagem de guilhotina moral para sentenciar sem primeiro pensar que por trás de muitos moralistas há bancarrota, falta de formação, desconhecimento da verdade, confusão e muito de encenação. O convidamos a que deponha a falsa armadura com a qual tem querido marcar presença na vida pública. Mire-se primeiro a chibata no próprio olho. Em seu momento, com certeza, terá você que comparecer na Comissão para o Esclarecimento da Verdade, da Convivência e da não Repetição. Lá queremos ouvi-lo a fim de que conte ao país por que seus silêncios em momentos em que deveria se pronunciar; por que permitiu a escalada da confrontação armada como solução ao conflito interno; por que não estendeu a mão ao pobre, à vítima do outro lado, ao desprotegido defensor dos direitos humanos; às vítimas da política neoliberal, aos milhões de seres humanos aos quais se vulnerou seus direitos econômicos, sociais e culturais, às famílias de dezenas de milhares de desaparecidos. Falar desde um púlpito emprestado é fácil. Sair ao campo para confrontar a verdade é outro cantar.
Não creia que não lhe agradecemos o envio de sua carta. Nos brindou com ela a oportunidade de manifestar-lhe de maneira assertiva nosso pensamento, critérios e decisões já tomadas. E nos permitiu o espaço para convocá-lo, como com efeito o fazemos com estas linhas, a formar um só corpo com quem, sim, temos combatido e sofrido as iniquidades de uma guerra desigual sem dar um passo atrás e compreendemos que chegou o momento de pensar em que há que reconstruir o tecido social fazendo da dignidade da pessoa humana em Colômbia o centro de atenção coletiva. Porém sem esquecer algo que consideramos da essência da futura paz, pensando nas vítimas, sua reparação, o perdão e o nunca mais. Se trata da Assembleia Nacional Constituinte, senhor Procurador. Não se insista em que se daria com ela um salto ao vazio. Muito pelo contrário. Deixar a futura sorte em mãos dos poderes constituídos como o pretende a aberração do Ato Legislativo 01 de 2012 e a sentença C-579 de 2013, sim, é o verdadeiro salto ao vazio. Sempre o poder constituído seguinte ao de hoje e de amanhã se sentirá mais audaz, mais arguto, mais justo, mais capaz, e terminará destruindo a obra que se pretende construir de maneira concludente. Procurador: Só se chega à construção do cadeado definitivo, à construção da norma pétrea garantidora da segurança jurídica futura acorrendo ao poder criador; poder que constitui, isto é, poder que erige, forma e constrói. À fonte de toda fonte. Ademais, se conseguiria reconstruir desde esse cenário de maneira inteligente e democrática o jus puniendi, hoje desaparecido; adiantar a revisão do reordenamento territorial, recompor os órgãos de controle, adequar as normas de participação cidadã, incluir o Estatuto da Oposição, definir de uma vez por todas a necessidade de elaborar uma política estável, revisar tantas instituições golpeadas pelos vícios, pelos dinheiros sujos e pela corrupção rampante.
Espero que não tenha se incomodado com nossa opinião e posição já tomada. É pelo que temos lutado: justiça social com igualdade, bem-estar para todos, qualidade de vida ao alcance do povo, justiça na posse da terra, justiça nos campos e nas zonas urbanas, educação e trabalho digno com remuneração à altura das mínimas necessidades.
Se chegamos a conquistar um lugar em igualdade de condições com nossos contraditores de sempre na Mesa de Havana para revisar as enfermidades da pátria e buscar uma paz estável e duradoura, senhor Procurador, é porque temos sido rebeldes desejando o melhor para o povo da Colômbia. Não vamos deixar de lado, não vamos abandonar esta histórica oportunidade.


Com nossa consideração.

Iván Márquez

Chefe da Delegação de Paz das FARC-EP

-- 
Equipe ANNCOL - Brasil