Mujica defende reforma do Estado no Uruguai
Publicado originalmente no La República, de Montevidéu.
O presidente do Uruguai, José Mujica, voltou a insistir na necessidade de reformas para poder alcançar um Estado “vigoroso, forte e puro músculo”, entre outras coisas, como forma de garantir a necessária distribuição da riqueza no país. No programa “Fala o Presidente”, transmitido pela emissora M24, o mandatário disse que não será fácil implantar o “sentido de pertencimento” entre os funcionários públicos que deverão compreender que “a honra de trabalhar no Estado reside no fato deste trabalho estar ligado à sorte geral de toda a nação”.
Na parte central do programa, Mujica voltou a se referir à necessária transformação do Estado. Ele disse que, quando fala destes temas, “algumas pessoas se sentem ofendidas ou agredidas. O problema não é de caráter pessoal e muito menos é com os funcionários públicos, que não são outra coisa do que a conseqüência de uma hipertrofia muito maior e mais genérica, que anda de mãos dadas com nossa própria história, com a nossa própria construção nacional”.
“Há gente que sonha com leis, que acredita que as mudanças em uma sociedade necessitam de uma avalanche de leis; e não é que as leis não tenham importância, para além da que têm, e ai dos homens se não existirem garantias de direito que em alguma medida nos regrem, nos regulem, nos ordenem, nos imponham limites.”
Neste contexto, Mujica anunciou que o Conselho de Ministros iniciou a discussão de “mudanças fundamentais” que, no fundo, modificam a forma de encarar filosoficamente a função pública.
“Há mais de 500 grupos econômicos neste mundo que superam amplamente o PIB de estados como o Uruguai e tantos outros. Ninguém vota nestes grupos, eles não têm hino ainda que possam ter bandeira, não ocupam um assento nas Nações Unidos, mas têm poder”, disse Mujica.
“Qual é o futuro de governos como os nossos? Teremos que nos ocupar pura e exclusivamente de atapetar o ingresso de grandes investimentos que venham de fora, às vezes tratando-os melhor do que os que estão aqui? E como vamos enfrentar esse fenomenal poder nas sombras, que é real e que pesa mais que qualquer Estado?”, perguntou.
“Somente tendo estados vigorosos e fortes, somente tendo estados puro músculo, que coloquem limites, cuidem do terreno, estabeleçam as regras e garantam que a imensa multiplicidade de pequenas realizações e de pequenas empresas, que são em última instância as que terminam distribuindo a riqueza, as que compartilham, que geram uma imensidão de postos de trabalho, ainda que não sejam as que manuseiem as maiores quantidades de valores, estejam amparadas, possam subsistir, possam existir; e a única garantia é que existam estados fortes, vigorosos, que não renunciem a sua prerrogativa, mas que não sejam um peso para a nação, mas exatamente o contrário, que sejam um incentivo para a nação”.
Mujica disse ainda que “é por isso que inevitavelmente devem existir estados fortes que obriguem a convivência mediada e equilibrada, e que não pode haver esse tipo de convivência se a sociedade não reparte sua riqueza. E não alcançamos isso multiplicando os pães e enchendo os vasos porque a prática está demonstrando que o excesso por si só não garante nada”. Ele assinalou que, nos últimos anos, vimos países onde a economia cresceu e, ao mesmo tempo, a pobreza também cresceu”.
Para o presidente, “é preciso se dar conta de que para ter um estado forte e com músculos, é preciso ter um Estado que esteja a léguas de ser um Estado burocrático. É um compromisso de caráter central. Entenderemos esse compromisso? Poderemos colocá-lo acima de visões setoriais? Nós todos colocaremos a celeste (camisa da seleção uruguaia)? Este é o grande desafio que tempos pela frente”, sustentou.
Mujica defende que “a grande missão do Estado é servir, empurrar, ser um burro de arranque para a esperança de toda a nação. Não estados que sugam, mas sim estados que impulsionam, que ajudam, que multiplicam a energia criadora do povo”. “Se não temos um pensamento orientador, a realidade nos levará para qualquer parte, sofreremos a história, construindo apenas uma historieta”, acrescentou.
Por esta razão, iniciou-se esta discussão no Conselho de Ministros, “que paradoxalmente, pelos trilhos em que anda, nos leva a elaborar algumas novas leis, mas que, muito mais do que isso, teremos que devastar um conjunto de leis que se transformaram em travas e não em garantias”. “É preciso multiplicar as garantias e não as travas. Mas a realidade mais profunda é iniciar um processo que significa uma longa luta para mudar a nós mesmos. Não temos que atribuir a ninguém as dificuldades que nós mesmos temos que vencer, pois são nossas. Temos que assumir, temos que ter sentido de responsabilidade, não devemos suavizar, mas isso não significa nos odiar, nem nos desprezar, nem nos antagonizar, mas sim significa a tentativa de superarmos a nós mesmos”, enfatizou.
“É preciso ter em mente que não será simples e que a primeira discussão deverá ser feita com os trabalhadores. E que, se os trabalhadores não entendem, é impossível caminhar. E que não se convence ninguém a força. Por isso esse processo será muito árduo e ele está apenas no início, mas toda a abertura que estamos praticando é para que algumas questões centrais se transformem em um acervo da nação e não em um acervo meramente partidário”.
Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: Carta Maior