O legado de Álvaro Uribe: O reino da impunidade
Por Ernesto Tamara.
Santos recebeu uma situação complicada com ruptura de relações diplomáticas junto à Venezuela, disputa entre o Executivo e o Poder Judiciário, e por ora um parlamento que controla, ainda que nele estejam forças de direita vinculadas ao paramilitarismo e que representam uma nova oligarquia das fortunas adquiridas com o narcotráfico e a aquisição de terra pela força.
Os analistas e os meios de comunicação colombianos insistem em destacar a mudança de política exterior que se aproxima. Mesmo mantendo vínculos estreitos com os Estados Unidos, o novo governo buscaria melhorar as relações diplomáticas e comerciais com seus vizinhos. Contudo, esta análise carece de um elemento central: a atitude dos Estados Unidos e seu papel neste período.
Há mais de 100 anos o líder independentista e poeta cubano, José Martí, explicou em uma conferência econômica internacional em Nova York, que o país que compra, manda. E em contrapartida, aquele que só vende a um país, depende de seu comprador.
Os Estados Unidos é o maior sócio comercial da Colômbia, e não somente em suas exportações legais, mas também, e muito especialmente, da droga. Bilhões de dólares do comércio ilegal unem os dois países que, a julgar por suas ações, tem dado por perdida a guerra contra o narcotráfico e se aliaram aos cartéis mais poderosos que ocupam ou controlam o aparato do Estado colombiano.
Karl Marx adiantou a teoria em sua obra "O 18 de Brumário de Luis Bonaparte", em que a burguesia, em certas condições, cede o poder às forças armadas para que restabeleçam a ordem ou eliminem as ameaças ao sistema, mas depois ela sempre volta a tomar o controle.
A Colômbia parece repetir, sinteticamente, esse esquema. Uribe, praticamente o fundador dos grupos para militares, conseguiu criar a sensação de aumento da segurança, recuperou para o Estado o controle de alguns territórios, e afastou o fantasma da possibilidade de um triunfo da guerrilha de esquerda em um futuro próximo, ainda que isto não tenha acontecido por mérito próprio, mas sim com a ajuda das condições internacionais.
Agora a velha burguesia colombiana quer recuperar o controle direto do Estado, porém nesta ocasião deve contar com uma nova burguesia enriquecida com o narcotráfico e o roubo de terras com as expulsões violentas e os assassinatos.
O novo presidente recebe como herança um país que se acostumou com o reino da impunidade nos crimes cometidos por funcionários do Estado e por grupos que foram dele e cometeram delitos de lesa humanidade, sob o argumento de que defendiam a institucionalidade e a "democracia". Até a mídia da burguesia colombiana tiveram que admitir, ao fazer um balanço dos 8 anos de governo Uribe, que a impunidade para os crimes de Estados, de seus aliados e para os atos de corrupção se instalou no país.
A revista Semana repassou sinteticamente alguns destes eventos, relembrando a profundidade da corrupção no país, ainda que tenha esquecido de mencionar que, segundo a promotoria, se perderam uns 4 bilhões de dólares por ano em pagamentos de comissões, subornos e obras contratadas inconclusas, nunca feitas ou defeituosas.
No entanto, sublinhou que " Se bem que Colômbia nunca tenha conseguido ‘reduzir a corrupção a suas justas proporções’, como promulgou o ex-presidente Julio César Turbay, por décadas existiu um código não escrito segundo o qual os altos funcionárias que fossem atingidos por escândalos de grau maior renunciariam". Essa prática caiu em desuso no governo de Uribe e só em um par de casos extremos os envolvidos tiveram de renunciar para enfrentar a justiça.
Entre as exceções, a revista Semana recorda: "Só uns poucos deram um passo em falso: Fernando Londoño, por suas explosivas declarações contra a Justiça (e não pelas denúncias sobre suas irregularidades em Invercolsa), e María Consuelo Araújo, quando seu pai e seu irmão foram detidos pela parapolítica". Entre os protagonistas de escândalos que seguiram em seus postos e alguns são até hoje apoiados por Uribe, recorda-se o caso do diretor do DAS, Jorge Noguera, obrigado a renunciar pelas revelações de infiltração de informações sobre sindicalistas para os paramilitares.
Em vez da sua renúncia, Uribe concedeu-lhe a função de cônsul na cidade italiana de Milão. Tempos depois, voltou ao país, pensando que a impunidade abarcava tudo, para depor diante da Promotoria e da Procuradoria. Hoje está detido, acusado pelo assassinato de sindicalistas e outras pessoas em colaboração aos grupos paramilitares.
O então chefe da computação de DAS, Rafael García, foi detido por sua responsabilidade nas intervenções aos telefones de políticos, juízes, jornalistas e ministros da Corte de Justiça, e em suas declarações ao juiz reconheceu que o DAS conspirou com paramilitares para infiltrar combatentes na Venezuela e atentar contra a vida do presidente Hugo Chávez. Nestes dias, Fernando Tabares, ex-diretor de Inteligência do DAS, assegurou que a espionagem sobre políticos, juízes e defensores dos direitos humanos e a confecção de dossiês e a infiltração de informação falsa para desprestigiar opositores, realizadas por esse organismo, eram de conhecimento da Presidência, tendo sido ordenadas por Bernardo Moreno, secretário-geral da Presidência e homem de confiança de Uribe.
Moreno ainda é envolvido no caso denominado "Yidisgate", quando com a mudança de voto no último instante da deputada Yidis Medina, aprovou-se a primeira reeleição de Uribe.
Além de Moreno, na compra de voto -admitida por Yidas Medina, que foi processada pelo caso- está envolvido o ex-ministro e atual embaixador da Colômbia em Roma, Sabas Pretelt, que foi chamado a juízo, e seu ex-colega de gabinete, o ministro de Proteção Social, Diego Palacio, que seria convocado em breve pelo juiz atuante.
Contudo, as atividades ilegais do DAS começaram há muitos anos, inclusive antes do governo de Uribe. Somente nestes últimos 8 anos elas serviram especialmente ao presidente em seus objetivos de política interior e exterior.
A revista Semana recorda que "tampouco assumiu sua responsabilidade política o ministro da Agricultura, Andrés Fernández, pelo escândalo de AgroIngreso Seguro, no qual se revelou que vários dos beneficiários do programa eram rainhas da beleza e políticos que haviam apoiado a reeleição, e que haviam fracionado projetos com o fim de não superar os tetos legais que existiam para os subsídios".
Na lista não deve faltar o atual ministro do Interior, Valencia Cossio, em virtude das graves acusações da Promotoria contra seu irmão Guillermo por uma suposta relação com narcotraficantes.
Além do mais, os filhos do presidente enfrentaram uma investigação judicial quando se soube que poderia ter usado seus conhecimentos a respeito dos planos de construção do governo para comprar propriedades desvalorizadas e revendê-las quando o Estado estudava construir nessa zona, obtendo assim lucros de vários milhões de dólares.
Uribe segue contando com o respaldo popular, segundo as enquetes, apesar de não ter conseguido abater o desemprego, nem baixar significativamente a pobreza como havia anunciado em suas duas campanhas eleitorais. O desemprego, que o prognóstico do governo estimava ter em 8,6% neste ano, se encontra em 12%. "No país não se criou um só emprego formal desde 2006", disse o professor de Economia da Universidad de los Andes, Alejandro Gaviria, em uma nota publicada pela revista Semana.
Outra das propostas de Uribe, em 2004, era reduzir a pobreza de 45% da população para 33%, mas o mesmo governo reconhece hoje que não conseguiu baixar um único ponto. A indigência cuja queda era prevista para 12%, manteve-se em 17%.
Reino do paramilitar
No mês de julho, completaram-se cinco anos do lançamento da chamada "Lei de justiça e paz", que desmantelou os grupos paramilitares integrados na autodenominada Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC). O estudo está demonstrando que muitos desses grupos ressurgiram com outros nomes e que não se cumpriram os objetivos de conhecer a verdade por trás dos crimes, processar os responsáveis por eles e reparar às vítimas.
Álvaro Uribe, desde quando era governador de Antioquia, facilitou a criação dos grupos de segurança privada que se transformaram nas AUC. Em sua capital, Medellín, o narcotraficante Pablo Escobar, fundador do Cartel de Medellín, estabeleceu seu império, e segundo documentos desclassificados pelos Estados Unidos, Uribe manteve certos laços com o então poderoso chefe mafioso. O primo do notável presidente, o ex-senador Manuel Uribe, foi processado por sua vinculação com os paramilitares.
No recente balanço dos cinco anos da Lei de justiça e paz, apresentado pela VerdadAbierta.com, sustenta-se que "o Processo de Justiça e Paz foi a maneira como o governo de Uribe quis atar todos os cabos soltos que deixou em sua negociação de submissão da justiça com os chefes paramilitares. E, claro, devido à falta de clareza política nessa negociação, o processo judicial teve de lidar com vários obstáculos. Talvez o pior, já que nem todos os postulados eram paramilitares, alguns criminosos de lesa humanidade não foram julgados, deixando assim o conflito em andamento e colocando em risco as vítimas e investigadores".
O documento sustenta que "o paramilitarismo é gêmeo do narcotráfico, quase desde o começo, são irmãos das ambições de boa parte da classe política tradicional e da guerra suja empreendida por alguns militares e policiais e foi primo dos empresários que viram a oportunidade da fazer capital facilmente sobre a miséria dos campesinos".
O informe destaca que até agora os pouco mais de três mil paramilitares, que se beneficiaram da lei e prestam declarações livres perante a justiça (a pena máxima por todos os seus crimes só pode chegar a oito anos), confessaram 1.309 massacres e 42.785 homicídios, enquanto o número de desaparecidos supera os 40 mil. Com base em evidências, a justiça exumou 2.719 valas comuns e encontrou 3.299 cadáveres. Também com base em evidências, soube-se que os grupos paramilitares utilizaram do esquartejamento a cremação de suas vítimas, em um estilo copiado dos fornos nazistas.
Independente da monstruosidade do revelado em algumas das audiências, existe o temor de que grande parte da verdade seguirá enterrada, em especial depois da polêmica decisão do presidente Uribe de extraditar os chefes paramilitares para os Estados Unidos quando começaram a denunciar seus vínculos com políticos. Depois da extradição, os chefes paramilitares se negaram a seguir colaborando com o esclarecimento dos fatos. O informe da VerdadAbierta.com mostra que as versões livres dos paramilitares "perderam espontaneidade e desenvolveram um tráfico subterrâneo de pressões e dinheiro para que os desmobilizados apontem uns (às vezes inocentes) e omitam de mencionar outros (quase sempre culpados)".
Outro dos aspectos em que a lei fracassou é na reparação às vítimas. O Estado não contribui - diz que não dispõe de recursos - e em poucos caos em que se iniciou um processo nesse sentido, manipulou-se o objetivo, terras e dinheiro para mãos de parentes dos políticos encarregados na distribuição dos recursos.
Além do mais, os campesinos donos de cinco milhões de hectares de terra que perderam no conflito não podem mais recuperá-las, salvo em poucos casos. De acordo com o informe, "o testa de ferro anulou o processo, e as ameaças e assassinatos de líderes campesinos, como Rogelio Martínez, em Sucre ou Ana Isabel Gómez Pérez em Córdoba, que se animaram a reclamar do que é sujo, colocaram-nos em um beco sem saída. E não há política de governo que enfrente este problema de maneira integral".
Até agora nos quase 300 casos em que identificaram delitos, somente foi registrado uma sentença completa. As vítimas têm o temor de que o processo se estenda e se cumpra os oito anos de pena máxima sem condenação e reparação, com o agravante de um paramilitarismo renovado. A população colombiana vai descobrir o que faz o novo presidente neste sentido e se alenta a continuidade das investigações sobre os vínculos dos políticos com os paramilitares - freados no último ano por pressões do presidente Uribe - e implementa ações para a reparação das vítimas.
Fonte: Adital