"A LUTA DE UM POVO, UM POVO EM LUTA!"

Agência de Notícias Nova Colômbia (em espanhol)

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A violência do Governo Colombiano não soluciona os problemas do Povo, especialmente os problemas dos camponeses.

Pelo contrário, os agrava.


terça-feira, 26 de agosto de 2014


Por José Antonio Gutiérrez D. Fonte: Rebelión
Certo dia, passando em frente ao local de uma organização de caridade aqui em Dublin, vi um cartaz que dizia “Nossa organização continuará apoiando as vítimas de Israel e da Palestina no atual conflito”.


Compartilho a opinião dos que dizem que toda perda de vida humana é lamentável: porém, equiparar a tragédia dos dois mil civis palestinos massacrados com um ou dois civis israelenses mortos numa guerra assimétrica declarara por Israel sem nenhum apoio no direito internacional me parece um abuso indignante. Equiparar as vítimas de uma nação desarraigada, bloqueada, despojada, empobrecida, com um par de cidadãos respaldados por um dos Exércitos mais modernos do mundo e cujas famílias se beneficiarão de todo o apoio psicológico, econômico e social do Estado de Israel me parece francamente obsceno. Não só é desonesto, como também estúpido e, no entanto, constitui a narrativa com a qual os EUA justificam os crimes de lesa-humanidade de seu alfil no Oriente Médio. Porque, quando se trata de um conflito onde as partes são tão desiguais, tratar de equipará-las no discurso é um recurso para dar maior preponderância às minorias poderosas.
Uma situação parecida é a maneira como se está abordando o tema das vítimas que começa a ser discutido nas negociações de Havana. A delegação de vítimas que chegou a Havana [1], “muito plural, que representava vários fatos vitimizantes, várias regiões, vários estratos sociais e vítimas de vários vitimários”, nas palavras do representante da ONU em Colômbia, Fabrizio Hochschuild [2], reflete esse desequilíbrio. Representando a todas as vítimas por igual, se perde toda noção de representatividade no conflito colombiano, no qual a imensa maioria das vítimas são pobres e foram vitimizadas por agentes estatais ou paraestatais. Se continua, assim, invisibilizando a imensa maioria das vítimas dessa violência massiva que os pobres sofreram, fundamentalmente no campo, por parte do Estado com o propósito de massacrar a rebelião. Com o discurso dos “vitimários” se deixam de lado as responsabilidades políticas e históricas, assim como a escala das violências respectivas. Se nos dirá que é muito difícil manter o equilíbrio nestes casos: porém aí está a raiz do problema, e é que tal equilíbrio entre vitimários e violências não existe. No intento de criá-lo artificialmente, se desfigura a realidade. Ainda o mesmo termo “vítima” é utilizado de maneira bastante elástica na narrativa oficial. A partir da mídia se reitera que todos somos vítimas, ainda que, claro, alguns somos mais vítimas que outros. O Estado é uma vítima, na opinião de Álvaro Uribe, quem diz isto sem ruborizar-se, parodiando a Turbay Ayala quando dizia que ele era o único prisioneiro político em Colômbia. O tema de vítimas dá para tudo e, ainda que sei que se trata de um tema espinhoso e sensível, creio necessário discutir em torno a alguns problemas que obscurecem a real natureza do debate.


Que entendemos por vítima?
Um dos primeiros problemas é a falta de definição em torno a que nos referimos com vítimas: vítimas de violações ao direito internacional humanitário ou as violações de direitos humanos? Há uma tendência a confundir de maneira deliberada o DIH com os DDHH, tendência que tem ido paralelamente com uma tentativa de “privatizar’ os DDHH e ignorar que é responsabilidade suprema do Estado garanti-los em função de sua legitimidade ante a sociedade. Inclusive, os DDHH se converteram num exercício de relações públicas, ao mesmo tempo que em arma de guerra: os escritórios de DDHH do Exército estão ligados a Operações Psicológicas. DIH e DDHH não são a mesma coisa e sua confusão não ajuda a esclarecer o que está em jogo. Uma são as infrações dos atores em conflito no contexto da confrontação armada. [3] As violações aos direitos humanos são aquelas perpetradas pelo Estado ou por sua inação, por agentes do Estado ou por pessoas aliadas a ele [ex.: paramilitares], que vão diretamente contra as disposições estipuladas na Declaração Universal dos Direitos Humanos. O particularmente grave deste último tipo de violações é que não somente vitimizam a pessoa, como também degradam as noções mais essenciais que se tem do ser humano na modernidade, assim como também degradam o conceito de cidadão em que se fundamenta o Estado Moderno, que, ainda que se possa argumentar que é uma ficção, representa uma obrigação para os que exercem o poder na atual sociedade. As violações aos direitos humanos, insistimos, são feitas pelo Estado e, ao decretar setores da sociedade como não-cidadãos, passo prévio a negar-lhes sua condição humana, abre as portas ao direito à rebelião consagrado no preâmbulo da Declaração dos Direitos Humanos. Nesta perspectiva, o surgimento dos movimentos guerrilheiros se vê numa luz completamente diferente.
Outro problema é a perspectiva temporal curta em que se assenta todo o debate em torno às vítimas. Se dá por assentado que o conflito armado que hoje se vive em Colômbia iniciou com o surgimento dos movimentos guerrilheiros FARC-EP e ELN entre 1964-1966. Ao máximo, como se faz no informe “Basta Ya” [Já Basta] do Centro Nacional de Memória História, se começa com a Frente Nacional em 1958. O problema com esta história “curta” é que não dá conta do momento em que o cenário para a atual violência foi assentado desde a década dos ’30, surgindo uma violência nítida, com uma continuidade até o presente desde 1946. Quando os guerrilheiros em Havana se declararam vítimas do conflito, despertaram iradas reações por parte dos gurus do estabelecimento e de seus obsequentes propagandistas na mídia. No entanto, se adotamos a história longa e uma compreensão cabal dos DDHH, poderemos compreender como os campesinos perseguidos no período conhecido como A Violência [1946-1958] se alçaram em armas, em rebelião, contra um Estado que, quando os massacrava e violava, observava impávido como as milícias privadas dos terra-tenentes faziam-no. Tudo isto tem logicamente que ver com o problema da memória e da verdade histórica, que também são temas que terão que ser abordados no marco das negociações.
O outro problema é que a mesma definição de vítimas também deixa de lado alguns elementos mais complicados para assegurar a natureza desta guerra degradada, difusa, às vezes difícil de definir: que passa com os exilados? Que passa com os presos políticos e de guerra vítimas de atrozes torturas e de privações de água, medicamentos, alimentos, produtos de higiene, etc? Uma pessoa que foi vitimizada por agentes do Estado ou paramilitares perde sua condição de vítima se se rebela e toma as armas? Que passa com as vítimas da limpeza social, esses ninguéns, os chamados descartáveis, que vivendo nas margens da sociedade não têm organizações que os representem? Que passa com os que foram vítimas de um modelo de desenvolvimento imposto a sangue e fogo pelas multinacionais? Por que não são as multinacionais, de fato, consideradas como um ator do conflito armado, apesar de sua aberta cumplicidade com agentes do Estado e com bandos paramilitares? É a natureza uma vítima do conflito, independentemente de sua centralidade para sustentar a humanidade como uma entidade viável? Que passa com as pessoas que, sem ter sofrido da violência física diretamente, sofrem da violência estrutural, da exclusão, da marginalização e da violência da sociedade imposta mediante a guerra, como é o caso das crianças famintas em La Guajira e em toda a Colômbia? São perguntas nada fáceis e que algumas organizações estão se atrevendo a expor.


A vítima despolitizada e passiva
Há uma tendência a despolitizar o conceito de vítimas, tendência na qual caíram alguns setores tradicionalmente vinculados à esquerda. Se pode afirmar que “não permitiremos que enfrentem as vítimas”, como se todos fossem a mesma coisa, porém esse nunca foi o problema de fundo. Esta maneira indiferenciada de abordar a problemática das vítimas reforça um discurso desmobilizador e apolítico que tem calado fundo em setores dos defensores de DDHH [Quanta falta faz o doutor Eduardo Umaña!]. Denunciar os “manejos políticos” ante o tema das vítimas é um sem sentido, precisamente, porque as vítimas estão inscritas num conflito essencialmente político.
O problema de fundo é que o debate em torno das vítimas [quem, como e em que sentido é uma vítima] é um debate que nos enfrenta com a natureza mesma do conflito social e armado em Colômbia, com essa violência que permeia diferencialmente ao conjunto da sociedade, violência que é, antes de tudo e por sobre todas as coisas, uma violência de caráter político. Explorar o problema das vítimas desde uma perspectiva asséptica, acrítica, como se fosse uma categoria que engloba a todos por igual é insustentável. Não se pode dar o debate das vítimas deixando de lado aspectos chaves de contexto nem da intencionalidade dos que perpetraram os atos de violência. Nem todas as violências são iguais. Este é um princípio chave do projeto “Nunca Mais”, no qual participaram as mais importantes organizações de DDHH do país, o qual expressa sem ambiguidades:
Desde há vários anos [...] nos vimos submetidas a extremas pressões, por parte de forças sociais, nacionais e internacionais, para que nossas denúncias e ações humanitárias se situem em ‘posições neutras’, que não aumentem as censuras sobre nenhuma das partes em conflito, e para que nosso trabalho se oriente por parâmetros de ‘equilíbrio’ que leve a estigmatizar ‘por igual’ e a ‘equiparar’ as diversas violências que afetam a sociedade colombiana. Se nos apresentou como princípio reitor que deve orientar nosso trabalho o de ‘Condenar toda violência, venha de onde vier’. Muitas vezes nos perguntamos se tal tipo de neutralidade é eticamente sustentável.
Cremos que nenhum tipo de discernimento ético pode dispensar-nos [...] de ter em conta [...] os móveis e estratégias globais que comprometem aos diversos atores enfrentados. Imperativos éticos [...] nos levam a censurar com maior força aos que se servem da violência repressiva para defender violências estruturais e injustiças institucionais que favorecem a camadas privilegiadas da sociedade, enquanto vitimizam, exterminam ou destroçam as camadas sociais mais pobres e vulneráveis, submetidas a séculos de despojo e injustiça.
[...] Não é possível ser neutro quando se é consciente de que um polo da violência é muito mais daninho para o conjunto da sociedade, ou acumula em si mesmo maiores perversidades, ou representa a oclusão institucional dos caminhos que poderiam conduzir a uma sociedade mais justa, ou acumula em seu haver maior violência contra os fracos. [4]
Que pena, e digo isto com todo o respeito do mundo: não é o mesmo o caso de Bojayá, onde o cilindro-bomba –lançado, ademais, de maneira irresponsável- foi desviado porém não houve a intenção explícita de assassinar pessoas, com os incontáveis massacres do paramilitarismo que foram feitos com intenção e traição. Por censurável que seja, não é o mesmo o sequestro de um parapolítico corrupto que o desaparecimento de um campesino que organizou sua comunidade para tratar coletivamente de superar os efeitos mais urgentes da pobreza. Jamais poderei estar de acordo com os que tratem de equiparar situações tão complexas e diferentes, equiparação que serve para encobrir a natureza politicamente motivada da violência que golpeia a Colômbia.


Uma opção ética, popular e libertária ante o tema de vítimas
Se há uma coisa na qual estou de acordo com os uribistas é que nem todas as vítimas são iguais: isto é tão certo em Colômbia como o é na Palestina. Creio que afirmar o contrário é uma estupidez que não tem nada a ver nem com o ato humano da empatia nem da reconciliação. Qualquer pessoa que tenha visto a televisão colombiana se dá conta disto que os uribistas insistem até o cansaço: algumas “vítimas” –as menos e as que tenham uma posição econômica privilegiada- recebem atenção em horários nobres, enquanto outras são vilipendiadas, ignoradas ou desprezadas com a terrível sentença “por algo terá sido’. O tema das vítimas reproduz a exclusão e marginalização de uma sociedade polarizada em classes que mais bem parecem castas. Isto o expressa muito melhor um artigo do mordaz Camilo de los Milagros:
Durante décadas se construiu uma narrativa da confrontação em Colômbia à medida das elites: maus muito maus contra bons impecáveis. Certas vítimas gozam desde então de um protagonismo claramente interessado em desprestigiar ao mau de ofício, ao demônio causador de todas as desgraças do país. Porém, que tão nocivo tem sido esse demônio? Por que, em lugar de um ou dois depoimentos lancinantes e sensacionalistas, não se avalia em conjunto a catástrofe humanitária onde ambos os bandos cometeram atrocidades? Por que não se esclarecem as responsabilidades completas?
[...] As comparações são odiosas, porém necessárias. Nenhuma comparação tão odiosa como esta de pôr mortos nos dois extremos da balança. Com horror se constata que 70% dos crimes cometidos no marco do conflito armado são atribuídos ao Estado ou seus agentes paralelos, enquanto nem sequer 20% correspondem aos grupos subversivos. É uma desproporção aterradora que não se corresponde para nada com a narrativa oficial. As cifras correspondem a medições das Nações Unidas, aos dados do CINEP e inclusive da Comissão de Memória Histórica, que o próprio governo nacional financia. Não é retórica estúpida, não é cumplicidade com o terrorismo, não é uma tentativa de desviar a atenção sobre os crimes da insurgência. É a constatação de como, usando um magnífico encantamento televisivo, um dos bandos vai sair limpo. O que mais dor tem causado. [5]
Ante o debate das vítimas, alguém tampouco pode ser neutro. Se tenho que estar com alguém, estou com aqueles que foram vítimas dos que quiseram manter uma das sociedades mais desiguais do planeta a sangue e fogo. Estou ao lado daqueles que se opuseram aos que trataram de aniquilar –até a semente- visões alternativas de sociedade. Estou com os que foram vítimas dos que se enriqueceram despojando aos que menos têm. Estou do lado dos que resistiram aos desígnios dos que, a fim de conservar seus nefastos privilégios, seriam capazes de fazer arder a toda Colômbia. Estou do lado dos que não se lhes permitiu nem sequer chorar a seus mortos por medo ao castigo de um Estado que celebra o espetáculo edificante do sangue jorrando de cabeças decapitadas. Estou do lado dos que não se lhes permitiu sequer dizer que são vítimas, porque as vítimas do Estado, supostamente, não existem. Estou do lado dos que nunca tiveram nem a televisão nem a imprensa para cobrir suas desgraças, ainda que me chovam raios e centelhas. Como se vê, o tema de vítimas é mais outro campo de batalha nesta confrontação fundamentalmente política.
Tradução de Joaquim Lisboa Neto
NOTAS:
[3] Isto sem abordar as inadequações do DIH para regular conflitos irregulares ou fundamentados na luta de guerrilha.
[4] Colombia Nunca Más , Capítulo V, Tomo I, 2000, pp.99-100.
(*) José Antonio Gutiérrez D. é militante libertário, residente na Irlanda, onde participa nos movimentos de solidariedade com América Latina e Colômbia, colaborador da revista CEPA [Colômbia] e El Ciudadano [Chile], assim como do sítio web internacional www.anarkismo.net. Autor de “Problemas e Possibilidades do Anarquismo” [em português, Faisca ed. 2011] e coordenador do livro “Orígenes Libertarios del Primero de Mayo em América Latina” [Quimantú ed. 2010].