"A LUTA DE UM POVO, UM POVO EM LUTA!"

Agência de Notícias Nova Colômbia (em espanhol)

Este material pode ser reproduzido livremente, desde que citada a fonte.

A violência do Governo Colombiano não soluciona os problemas do Povo, especialmente os problemas dos camponeses.

Pelo contrário, os agrava.


sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Aspectos jurídicos do golpe em Honduras

Por Pedro Estevam Serrano - 08/10/2009

Na coluna da semana passada (leia aqui), apresentei as idéias contidas no artigo que o jornal Folha de S.Paulo veiculou na mesma semana, onde procurei defender meu ponto de vista de que a deposição do presidente Manuel Zelaya de Honduras tratou-se de golpe de Estado, contrário à Constituição de Honduras e aos tratados Internacionais que visam proteger o regime democrático no continente. Nada mais fiz do que refletir um ponto de vista defendido por todos os países do continente americano e quase todos da Europa.

Talvez pelo papel exercido pela diplomacia brasileira e pelo governo Lula no episódio, inclusive com o abrigo do presidente eleito na embaixada do Brasil naquele país, o que traz ressentimentos nossos à análise do conflito externo, observei que algumas reações contrárias ao que escrevi, e favoráveis ao golpe, foram destemperadas e em certos casos até deselegantes e desproporcionalmente agressivas.

Também ocorreu que até a publicação do referido artigo tinha a percepção que a defesa do golpe se dava mais por articulistas e pareceristas aparentemente estimulados por suas crenças políticas de direita, diga-se, aliás, legítimas, do que por avaliação mais técnica e isenta dos fatos e de suas consequências jurídicas. Entretanto, foram publicados artigos e chegou ao meu conhecimento parecer de conselheira legal norte-americana que oferece argumentos favoráveis à conduta dos que sucederam Zelaya, estes fundados em posições, aparentemente e em “prima facie”, defensáveis juridicamente e vertidos em linguagem técnica e polida, própria dos debates consistentes no ambiente do Direito, e desprovidos, portanto, do excessivo tempero ideológico que turva a visão objetiva.

Além desses fatos, dois leitores ―Luiz Felipe Lehman e Miguel― me formularam questões e críticas que me pareceram razoáveis em alguma medida, quais sejam, a da necessidade de apresentar um relato mais extenso dos fatos que fundaram a interpretação que adotei, inclusive, a lei que proibiu consultas em Honduras no período pré-eleitoral, e também a necessidade de avaliar se o procedimento sucessório de Zelaya, após sua destituição, foi compatível com o disposto na Constituição do país.

A situação toda me obrigou a repensar o tema, abrir-me à possibilidade de estar eventualmente equivocado, procurar rever e pesquisar mais a fundo os fatos ocorridos, os atos de destituição e os dispositivos constitucionais por eles invocados como fundamento e até rever minha posição, mudando-a se necessário, o que não seria a primeira vez que o faço. A envergadura técnica e ética de alguns que defenderam a legitimidade da deposição seria motivo mais que suficiente para tanto.

Acrescente-se ainda que não teria nenhum desconforto político ou pessoal em ser contrário às pretensões de um governante autoritário, populista e personalista como Zelaya, mas, por outro lado, avalio que o desejo de ver este tipo de políticos fora do poder na América Latina não pode chegar ao ponto de comprometer nossas conquistas democráticas.

Num primeiro momento, para o primeiro artigo, recorri apenas a uma leitura rápida do ato destituidor de Zelaya, uma síntese dos fatos e uma leitura pessoal e integral da Constituição hondurenha (acesse o texto constitucional em espanholaqui) além da leitura do parecer do jurista norte-americano Doug Cassel, ex-presidente do “board” de estudos jurídicos da OEA (Organização dos Estados Americanos) e professor da Escola de Direito de Notre Dame (acesse a íntegra do texto, em inglês, aqui).

Isso tudo fundado no ponto de vista de que tal inserção num ordenamento de outro país se justifica por conta dos tratados internacionais, subscritos por Honduras, que visam proteger o continente de golpes de Estado. Por óbvio, se constitucional fosse a deposição de Zelaya, de golpe não se trataria. Essa segunda tarefa, contudo, exigiu a consulta crítica ao ponto de vista de juristas locais, hondurenhos, obviamente mais conhecedores do sistema jurídico de seu país e mais próximos dos fatos, haja vista que a distância distorce e esconde muito do ocorrido.

Nesse percurso autocrítico e investigativo, tive um feliz encontro com os textos do professor Ángel Edmundo Orellana Mercado, que me foram indicados por uma amiga. O professor Orellana é catedrático da faculdade de Direito da Universidade Nacional Autonoma de Honduras, tendo concluído seu doutorado na Itália e realizado sua carreira em diversas funções públicas, chegando a exercer a função de juiz da Corte de Recursos do Contencioso Administrativo de Honduras e a de procurador-geral da República, por eleição do Parlamento hondurenho. Em 1999, foi nomeado embaixador de Honduras na ONU. Já em idade madura, resolve ingressar na política, em 2005, elegendo-se deputado pelo Partido Liberal de Honduras. Passa a integrar cargos no governo Zelaya, chegando a ser seu ministro da Defesa. Com a postura assumida por Zelaya de não obediência a ordens judiciais, o professor Orellana renuncia ao cargo de ministro, conflitando com Zelaya e, inadvertidamente, dando origem aos fatos que levaram à crise que ensejou o golpe. Volta a exercer seu mandato de deputado, mas com o desatino da decisão golpista adotada pelo Parlamento —sim a decisão foi do Parlamento e não do Judiciário como pressupõe alguns—renuncia ao mandato por não aceitar a prática golpista como a forma adequada de crítica aos arroubos autoritários de Zelaya.

Um raro caso, a meu ver, de um homem expulso da política por conta de sua integridade ética e pelo momento de insensatez que aquele país atravessa, onde duas partes litigam, uma delas personalista, populista e autoritária, e a outra praticante de um feroz atentado golpista aos valores democráticos que norteiam a vida contemporânea civilizada.

A impressão que me dá, assistindo de longe, é que o professor Orellana retorna à sua cátedra para, a partir dela, emitir seus pontos de vista jurídicos denunciadores do golpe de Estado que assola seu país. Volta ao lugar do jurista para dele oferecer sua contribuição, prestando relevante serviço a seu país.

É com base em seus textos, agora divulgados intensamente pelos setores políticos que o repudiaram em sua renúncia, que formulo minha atual posição em texto extenso, mas creio que necessário ao momento.

A partir do último pleito eleitoral em Honduras, diversos setores sociais e políticos passaram a debater a possibilidade de convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, cujo processo se iniciaria por uma quarta urna eleitoral acostada ao próximo pleito de novembro, que perguntaria ao povo sua opinião sobre a referida convocação no mandato presidencial seguinte.

Como tal poder constituinte originário, obviamente, poderia mudar a Constituição, inclusive em suas clausulas pétreas, os partidos apoiadores da medida julgaram de bom grado o apoio da opinião expressa do eleitorado para oferecer legitimidade à proposta. A legislação eleitoral de Honduras, contudo, impossibilitava a existência de uma quarta urna no pleito, além das três relativas aos pleitos referentes aos mandatos em disputa.

Por isso, os partidos apoiadores da medida, quais sejam o Partido Nacional de Honduras —que posteriormente compôs importante apoio a Roberto Micheletti e ao golpe— e o Unificação Democrática apresentaram projetos de lei ao Parlamento hondurenho buscando mudar a legislação e removendo os entraves à consulta pública. O presidente Zelaya, contudo, ao invés de optar por enviar projeto de lei ao Congresso, opta por realizar consulta pública prévia a este envio, com o fito de fortalecer a possibilidade de sua aprovação.

Assim, Zelaya e o Conselho de Ministros promulgam o Decreto PCM-005-2009, perguntando ao povo, em essência, se concordava com a colocação de uma quarta urna nas eleições gerais de novembro que contivesse uma questão sobre eventual desejo popular para que no próximo mandato presidencial fosse convocada uma Assembléia Nacional Constituinte.

Tal decreto foi objeto de impugnação do Ministério Público hondurenho perante o Juizado de Contencioso-Administrativo, que concedeu sentença incidental —em nosso sistema equivale à medida liminar— suspendendo os efeitos do decreto, sem ainda apreciar o mérito de sua legalidade. Face à decisão judicial, o Conselho de Ministros e o presidente optam por revogar o decreto, não aguardando pela decisão final.

Na sequência, promulgam outro decreto, o de número PCM-019-2009, que determinava a realização de uma enquete, com a mesma questão formulada na proposta de consulta prevista no decreto revogado, e não uma consulta, com base em outra lei, qual seja a de “iniciativa cidadã” aprovada pelo Legislativo no início do mandato de Zelaya.

Ante tal conduta do Executivo, o Ministério Público propõe medida correlata aos nossos “embargos de declaração” em relação à sentença incidental, obtendo decisão que invalidava qualquer ato Executivo futuro que tivesse por finalidade a oitiva da população em qualquer caráter. Nesse meio tempo, é aprovada lei no Parlamento que proíbe a realização de consultas, mas essa já se demonstrava inaplicável à espécie.

A decisão do Juízo, segundo o professor Orellana, foi equivocada face ao sistema processual hondurenho. Não nos cabe realizar este debate, próprio do direito interno daquele país e desnecessário à avaliação dos fatos no plano constitucional. Adequada ou não, ordem judicial é para ser cumprida e a isso se recusou o presidente Zelaya, levando ao pedido de exoneração do cargo de ministro da Defesa do professor Orellana, conduta que, além de sua vontade, precipitou os fatos que ensejaram o golpe.

Neste sentido, não temos dúvida que o presidente cometeu evidente ilícito ao tentar desobedecer, às abertas, ordem judicial. Ocorre que apenas este fato, o cometimento aparente de uma ilicitude, não é suficiente para dispensar sua apuração pelo devido processo legal para fins de sua destituição ou a observação das normas constitucionais para sua válida detenção, o que não ocorreu.

1 — O ato de destituição do presidente

O presidente da República foi destituído em 28 de junho do ano corrente, por decreto do Legislativo, sob número 141/2009, por quorum não sabido de parlamentares, cujo conteúdo dispositivo é o seguinte:

Artículo 1. El Congreso Nacional en aplicación de los artículos 1, 2, 3, 4, 5, 40, numeral 4, 205, numeral 20, y 218, numeral 3, 242, 321, 322 y 323 de la Constitución de la República acuerda:

1) Improbar la conducta del Presidente de la República, ciudadano JOSE MANUEL ZELAYA ROSALES, por las reiteradas violaciones a la Constitución de la República y las leyes y la inobservancia de las resoluciones y sentencias de los órganos jurisdiccionales; y,

2) Separar al ciudadano JOSE MANUEL ZELAYA ROSALES, del cargo de Presidente Constitucional de la República de Honduras.

ARTICULO 2. Promover constitucionalmente al ciudadano ROBERTO MICHELETTI BAIN, actual Presidente del Congreso Nacional, al cargo de Presidente Constitucional de la República, por el tiempo que falte para terminara el período constitucional y que culmina el 27 de enero del año 2010.

ARTICULO 3. El presente decreto entrará en vigencia a partir de su aprobación de los dos tercios de votos de los miembros que conforman el Congreso Nacional y en consecuencia es de ejecución inmediata.

Segundo a ordem constitucional de Honduras, tal decreto é um amontoado de inconstitucionalidades, existentes em todos seus dispositivos, como bem observa o professor Orellana em seus pareceres.

O artigo 205, usado como fundamento da competência para destituir o presidente, estipula a prerrogativa do Poder Legislativo em reprovar a conduta administrativa dos demais Poderes de Estado. Tal reprovação refere-se à conduta do órgão, e não a de seu titular. Logo, não há competência para reprovar condutas do chefe do Executivo. Com efeito, a competência estabelecida pelo dispositivo é a de desaprovar condutas administrativas e não de qualificar penalmente violações ao ordenamento jurídico.

O artigo 1 do decreto legislativo de destituição claramente extravasa o objeto de avaliar a simples gestão administrativa do Poder Executivo, atribuindo a prática de delitos a seu chefe eleito, de forma genérica, sem identificação de atos e fatos que sustentam tais imputações, sem individualização de conduta e sem qualquer direito de defesa quanto aos fatos genericamente imputados.

De forma evidente, o Legislativo se arrogou em função própria do Judiciário, usurpando sua função, quando avaliou como ilícitos atos que imputou ao presidente, condenando-o a ser substituído na chefia do Poder, pondo-se em confronto com a competência atribuída à jurisdição pelos artigos 303, primeiro parágrafo, e 304 da Constituição Hondurenha.

Como bem destaca o professor Orellana: “El Congreso Nacional se arrogó, en consecuencia, facultades privativas del Poder Judicial, al calificar de ilícitos los supuestos actos del Presidente y al declararlo culpable de haberlos cometido. Es decir, usurpó funciones que la Constitución atribuye a otro Poder del Estado”.

A Constituição hondurenha não faz qualquer previsão de competência ao Legislativo para aplicar sanções que impliquem destituição do mandato do presidente. Não faz previsão do “impeachment”. Articulistas e pareceristas favoráveis ao golpe argumentam que o dispositivo constitucional hondurenho autorizaria o Legislativo a “interpretar” a Constituição Hondurenha, e que tal dispositivo autorizaria o Legislativo a entender que sua prerrogativa de censurar a gestão administrativa poderia ser estendida em sua interpretação à situação de julgar e depor o presidente da República.

Por óbvio, tal dispositivo se refere ao condão do Legislativo de interpretar a Constituição quando produz leis, não o autoriza a realizar julgamentos e aplicar sanções não previstas expressamente.

O que observamos neste ponto dos pareceres favoráveis ao golpe, com todo o respeito que merecem seus argumentos, é a ocorrência de um erro primário em termos de interpretação de sistemas jurídicos de Constituição rígida como o hondurenho, qual seja, o da interpretação literal e isolada de dispositivos.

Como é mais que sabido pela totalidade de nossa doutrina, quase um truísmo jurídico, a interpretação literal de artigos do Direito Positivo quase sempre leva a erros, há que se entender o texto à luz de seu contexto, que no caso do direito constitucional é o sistema constitucional como um todo, em especial, seus princípios fundamentais.

Que tal equívoco seja cometido por blogueiros leigos é compreensível, mas quando se trata de consultora jurídica de membro do Congresso norte-americano é de causar certo espanto pela evidência do equívoco técnico na interpretação.

A aplicação das sanções pelo Legislativo face a delitos de natureza política, como ocorre no caso da Constituição brasileira, por exemplo, é atividade chamada pelos doutrinadores como “atípica”, estranha à função primária daquele Poder na divisão de funções estatais na República. Como exceção à divisão primária de funções entre os Poderes —pela qual cabe ao Legislativo legislar e não julgar— deve contar com previsão de competência expressa na Constituição para poder ocorrer.

Obviamente, a competência do Legislativo de interpretar a Constituição, norma implícita inclusive na Constituição brasileira, não lhe permite interpretar dispositivos de forma extensiva de molde a invadir competência destinada pela Constituição a outro Poder. Tal entender atenta contra a idéia de divisão de funções que é inerente ao Estado Democrático de Direito. Só os impérios absolutistas ou regimes autoritários como o comunismo ou o fascismo admitem centralização de funções diversas num mesmo Poder, por conta de sua vontade autônoma e não pela heteronomia expressa da Constituição.

A incompetência do Legislativo para destituir o presidente da República de seu mandato é atestada pelo professor Orellana: “La Constitución no contiene norma alguna por la cual se autorice la remoción o destitución del Presidente, los Diputados o los Magistrados. Por tanto, ningún titular de un Poder del Estado puede ser separado de su cargo antes de que finalice el período para el que fue electo”.

Ademais, consoante já expusemos em nosso artigo anterior, a aplicação de sanções no regime constitucional hondurenho —e, diga-se, em qualquer regime constitucional democrático do mundo— prevê requisitos para sua incidência válida. Em síntese, a presunção de inocência, o direito a ampla defesa e o devido processo legal, consoante dispõem os artigos 82, 89 e outros da Constituição.

Absolutamente incompatível com a Constituição hondurenha, com os Tratados Internacionais de Defesa dos direitos Humanos e do regime democrático a ausência de direito de defesa e do devido processo legal na decisão de destituição de Zelaya. Mais do que qualquer outra questão, este é o elemento que caracteriza profundamente o golpe de Estado hondurenho como tal.

2 — O procedimento inválido de substituição do presidente

Consoante nos ensina Orellana, a Constituição hondurenha estabelece em seu artigo 242 duas hipóteses de substituição do presidente da República: sua ausência temporária e a definitiva. A substituição temporária do presidente da República hondurenha se dá em função de viagens ao exterior, licenças autorizadas pelo Parlamento e por conta de suspensão do exercício em consequência de ordem judicial.

A suspensão por ordem judicial se dá em consequência da incidência do artigo 41, qual seja, perda temporária de seus direitos políticos de cidadão, nas hipóteses de ordens provisórias de detenção, como já havíamos apontado e como nos ensina Orellana: “La suspensión se produce cuando el juez competente decrete auto de prisión al Presidente por delito que merezca pena mayor, porque en este caso está previsto en la Constitución que se suspende la calidad de ciudadano (Art. 41), status que lleva consigo el reconocimiento de los derechos políticos, entre los cuales se encuentran los de elegir y ser electo, y ejercer cargos públicos (Art. 37). La suspensión es temporal, porque la definición de su situación solamente se obtendrá hasta que se dicte la sentencia respectiva, en la que podría declararse su inocencia, lo que importa el retorno al ejercicio del cargo”.

As ausências absolutas correspondem a todas as hipóteses que impossibilitem o exercício legítimo da Presidência da República pelo eleito, em síntese, nos casos de morte do titular, da renúncia ao mandato e da inabilitação permanente por ordem judicial definitiva, ou seja, com trânsito em julgado.

O que se verifica é que a substituição do presidente eleito pelo designado pelo Congresso Nacional foi absolutamente conflitante com o sistema de substituição presidencial previsto na Carta daquele país. Nenhuma das hipóteses de substituição temporária ocorreu de fato, nem mesmo no tocante à que deriva da ordem judicial de prisão preventiva do presidente, pois ele nem sequer foi levado à presença judicial, requisito essencial para sua consumação válida.

Nesse sentido, a lição de Orellana: “No podía alegarse ausencia temporal porque ninguna de las hipótesis constitucionales se produjo. Incluso, la que se deriva del auto de prisión, porque el Presidente ni siquiera fue llevado a la presencia judicial. Tampoco se puede alegar ausencia absoluta, porque el Presidente no había renunciado, no había muerto ni fue inhabilitado judicialmente”.

O que se observa é que o Congresso Nacional hondurenho, sem ter competência para tanto, substituiu a força o presidente da República, sem observação, inclusive dos direitos do acusado a ampla defesa, a presunção de sua inocência e o devido processo legal.

Em direito, este tipo de situação, de um Poder Político que consegue se sobrepor à ordem constitucional vigente é descrita por vários nomes, quais sejam “revolução”, fundação de um novo sistema jurídico, poder constituinte originário etc. Todos usados numa tentativa de descrever o que, a nosso ver e segundo as lições de Genaro Carrió, não é possível descrever nos limites de significação da linguagem jurídica, essencialmente uma linguagem que descreve relações de imputação, competências, e não relações de fato. Em política, a tarefa descritiva é mais fácil, basta usarmos um conceito: golpe de Estado!

3 — A ordem de detenção e expatriação do presidente Zelaya

Os defensores do golpe em Honduras têm alegado que a detenção e expatriação do presidente Zelaya por integrantes das Forças Armadas de Honduras se deu por ordem judicial de detenção ou captura, tipo de ordem judicial com natureza jurídica análoga às nossas ordens de prisão temporária ou preventiva. Tal ordem daria sustentação de legitimidade à detenção do presidente e à sua retirada forçada do território nacional.

Referida ordem não encontra o mínimo respaldo face ao disposto na Constituição hondurenha. O primeiro dispositivo ferido é o do artigo 293 da Carta, que prevê que a execução de tais ordens cabe à Polícia Nacional e não às Forças Armadas. Além desse dispositivo, o artigo 99, parágrafo segundo da Constituição, determina que as ordens de detenção ou prisão devem ser cumpridas no horário entre as 6 da manhã e às 6 da tarde, sendo vedadas prisões fora deste horário. A Constituição brasileira, inclusive, tem dispositivo semelhante.

Conforme nos relata Orellana, este tipo de ilicitude na execução tem gerado a nulidade, reconhecível de ofício, de diversas ordens de prisão conta traficantes, homicidas etc. O presidente da República eleito de Honduras não mereceu o mesmo trato que a jurisdição local oferece a tais meliantes. Conforme é público, a expatriação de Zelaya se deu à noite, antes das 6 da manhã, pegando-o ainda de pijamas. No Brasil, também é corrente o reconhecimento de invalidade das ordens judiciais por abusos em sua execução. Veja-se a súmula do STF sobre o uso indevido de algemas, por exemplo.

Por fim, como pá de cal sobre qualquer argumentação que tente oferecer legitimidade a essa malfadada ordem judicial, o artigo 102 da Constituição hondurenha veda a expatriação de qualquer cidadão hondurenho. Note-se que se trata de um direito inerente à nacionalidade, não à condição de presidente da República e, por si só, resultante de evidente nulidade —em verdade, a rigor técnico, inexistência, no sentido jurídico da expressão, da ordem judicial concedida.

A alegação de que ordem foi concedida por um juiz competente não é suficiente para lhe emprestar legitimidade, pois o juiz só é competente para ordenar conduta prevista entre suas atribuições legais. Nenhum juiz é competente para emitir ordem imediata e evidentemente tão contrária à Constituição. As ordens de detenção devem ser emitidas para apresentação do detido ao juiz e não para sua expatriação.

Aliás, já defendemos o ponto de vista de que a contrariedade ao artigo 102 na ordem judicial de detenção e expatriação de Zelaya não implica apenas na inobservância deste dispositivo. Abuso maior ocorre pela evidente desnaturação jurídica da ordem face a seu sentido no devido processo legal hondurenho.

À semelhança do Brasil, as ordens temporárias de detenção no sistema hondurenho são modos não de punição do réu, pois ainda não está formado o juízo final de sua condenação, mas sim forma de proteção ao processo ou de garantia da eficácia da decisão final. O direito a defesa, elemento fundante do devido processo legal, é realizado posteriormente à concessão da ordem.

Ora, no caso em análise, a expatriação de Zelaya como consequência da ordem inviabiliza fisicamente o exercício pleno de seu direito de defesa, desnaturando também o caráter provisório que a medida deveria se revestir.

A ordem judicial provisória, ao admitir a expatriação, transmutou-se em ordem definitiva de expulsão do território nacional sem qualquer observância do direito de defesa e da presunção de inocência do acusado. Nosso ver neste aspecto é mais incisivo que no entender de Orellana. Uma ordem de prisão formalmente posta como provisória, mas que determina ou aceita execução material de caráter definitivo contra o réu, como é o caso da expatriação sem qualquer direito de defesa, não apenas é nula. Seu patamar de incompatibilidade com a ordem constitucional é tamanha que, a nosso ver, inexiste como norma jurídica. Não cumpre os requisitos mínimos de pertinência ao sistema jurídico, pois implica realização de providência não apenas não prevista, mas expressamente vedada pela Constituição e traz consequência definitiva ao que deveria ser provisório. Extingue definitivamente o devido processo legal, presume culpabilidade do réu, impossibilita fisicamente seu pleno exercício da defesa.

Os defensores do golpe reconhecem a ilegitimidade da expatriação, mas pretendem tratá-la como um tema menor. Micheletti, o líder do governo golpista, diz que foi “um erro” a expatriação em suas declarações. Tanto que alcunham a conduta como mera “ilegalidade”. Ora, trata-se de inobservância de dispositivos constitucionais. Quando isso ocorre em Direito, o nome adequado é “inconstitucionalidade”.

É de estarrecer, com o perdão da expressão, que haja profissionais do Direito que admitam a validade ou mesmo a existência jurídica de tal procedimento. Se vingar esse entendimento nas Américas, bastará um juiz e meia dúzia de gorilas fardados para acabarmos com a democracia e os direitos fundamentais da pessoa humana.

O caso de Honduras é intrincado, mas interessantíssimo do ponto de vista jurídico e da teoria geral do Estado. Pela primeira vez, ao menos na história recente que conhecemos, um golpe de Estado tenta se travestir da linguagem do Direito para se legitimar de forma tão incisiva. E faz isso pela figura do decreto legislativo e pela aparência de legitimidade que o exercício da jurisdição empresta aos homens. E com essa roupagem, os mais tacanhos atos de violência são praticados.

Mas nós profissionais do Direito, operários da lei e do Estado Democrático, temos de tomar cuidado para não servimos de lastro à violência e ao autoritarismo. Nenhum modo autoritário de tomada do poder é eficaz se assume claramente sua condição de vilipêndio. Cabe a nós desvendar o abuso quando se apresente na conduta, e não legitimar o discurso justificador dos golpes e medidas anti-democráticas. Assim o fez a comunidade internacional no caso de Honduras.

Não foram apenas “bolivarianos”, petistas, esquerdistas ou o que quer que seja que condenaram o golpe. A maioria dos países do mundo democrático e civilizado condena expressamente o golpe, qualificando-o como tal

4 — O artigo 239 da Constituição de Honduras

Os defensores do golpe têm alardeado na imprensa que a destituição de Zelaya fundou-se em aplicação do artigo 239 da Constituição Hondurenha, que contém o seguinte dispositivo:

“Artículo 239. El ciudadano que haya desempeñado la titularidad del Poder Ejecutivo no podrá ser presidente o designado.

El que quebrante esta disposición o proponga su reforma, así como aquellos que lo apoyen directa o indirectamente, cesarán de inmediato en el desempeño de sus respectivos cargos, y quedarán inhabilitados por diez años para el ejercicio de toda función pública”.

De início, pelo que observa do Decreto Legislativo de destituição do presidente Zelaya e ao contrário do que afirmam articulistas favoráveis ao golpe, tal dispositivo não foi invocado como fundamento da decisão do Congresso hondurenho que determinou a deposição do presidente. Os que apóiam o golpe, posteriormente ao decreto e pela mídia, passaram a usar do argumento.

Obviamente não foi usado como fundamento pelos congressistas na deposição do presidente porque esses avaliaram à época que Zelaya não infringiu tal dispositivo. Mas como tal tema tem sido ventilado na mídia, desde o artigo que publicamos aqui na coluna, na semana passada, resolvemos demonstrar sua não incidência válida no caso em apreço.

Primeiro, porque Zelaya não pretendeu sua continuidade ou reeleição como afirmam os defensores do golpe, ao tentar enquadrá-lo no dispositivo. Isso pode ser verificado pelo fato de que a enquete que foi tida como fundamento para sua deposição seria realizada em termos futuros, se o povo desejava ser consultado quanto à convocação vindoura de uma Assembléia Constituinte. Que se argumente que a Constituinte tem poderes de alteração das cláusulas pétreas da Carta, dentre as quais a que proíbe reeleição, o procedimento previsto na enquete jamais possibilitaria a Zelaya se reeleger, pois tal Constituinte seria convocada já no transcurso do próximo mandato presidencial. Logo, impossível materialmente de implicar sua reeleição.

De qualquer forma, o que nos parece mais relevante é que se Zelaya cometeu tal delito não é relevante para análise do caráter golpista do ocorrido em Honduras, porque tal dispositivo sequer foi invocado como razão da deposição pelo Parlamento no artigo 1 do decreto legislativo que consuma o golpe.

Com efeito, a incidência ou não do tipo penal referido à conduta de Zelaya só poderia se dar pelo devido processo legal, com garantia de seu amplo direito de defesa e sua presunção de inocência, o que não ocorreu em momento algum de sua deposição, detenção e expatriação.

O argumento usado por alguns defensores do golpe —a defesa do golpe em parecer jurídico que li favorável à deposição sequer toca no dispositivo, mais invocado por articulistas— de que a expressão “cessarão de imediato” contida no dispositivo autorizaria a dispensa do devido processo legal e do direito de defesa não se sustenta. Em verdade, com todo o respeito necessário ao debate jurídico civilizado, cremos que há um erro evidente na interpretação formulada, que trata dispositivo em sua acepção literal e isolada do contexto conformado pelo sistema constitucional hondurenho.

Como bem observa Orellana e como já afirmamos na coluna anterior, os artigos 82, 89, 90 a 94, e outros da Constituição hondurenha, bem como o sistema processual penal daquele país, determinam que a aplicação de sanções, como a prevista no artigo 239, só devem ser feita com a observância do direito a ampla defesa do acusado, de sua presunção de inocência e do devido processo legal. Os articulistas que defendem a aplicação imediata do dispositivo ao caso de Zelaya, a nosso ver, cometem o equívoco da interpretação isolada e literal do dispositivo e acabam por admitir um procedimento penal próprio dos tempos medievais ou de Estados profundamente autoritários como os comunistas, os nazistas e os fascistas falangistas ou islâmicos, como bem afirma Orellana.

Obviamente, tais articulistas o fazem de forma inadvertida. De modo algum postulo que todos os articulistas defensores do golpe se avizinhem em suas crenças de tais formas autoritárias de Estado, embora uns poucos revelem na virulência dos ataques pessoais tal predileção autoritária.

A questão de se a constituinte é o melhor remédio para as evidentes mazelas da Constituição hondurenha ou se é forma de manutenção personalista de dirigentes populistas no poder é um tema que cabe ao povo hondurenho responder, não a nós. O que nos toca, como cidadãos do globo e do continente americano, é velar para que golpes de Estado não ocorram e que os tratados internacionais preservadores do regime democrático e dos direitos fundamentais da pessoa humana sejam observados por todos seus signatários.

Esperamos ter respondido a contento as dúvidas de nossos leitores e manifestamos nosso total respeito pelas posições divergentes e vertidas em termos objetivos e polidos. As críticas feitas à nossa interpretação do sistema constitucional hondurenho, que expusemos em textos anteriores, estimularam-nos a voltar ao tema em investigação mais aprofundada, alterando nossa concepção de alguns fatos ocorridos, mas reforçando nossa crença de que o corrido em Honduras tem nome: golpe de Estado!