O presidente Chávez e o “Assunto Joaquín Pérez”
Lucia Ruiz
Fonte: Rebelião
Acontecimentos importantes permitem que aflorem princípios nobres e éticos, ou perversas paixões e falências ideológicas. O seqüestro e entrega expressa de Joaquín Pérez Becerra ao Estado terrorista da Colômbia é um desses casos que nos permite avaliar em uma perspectiva adequada a orientação demo-liberal a que vem sendo submetido o processo bolivariano na Venezuela, pela direita endógena na direção do PSUV e do governo central. O “assunto Perez” de uma só vez deixou cair a mascara deixando a descoberto todas as vergonhas e quebras ideológicas. Setores progressistas, democráticos e revolucionários, ficaram atônitos diante da atitude assumida por um governo que se autoproclama “revolucionário”. O grave não é que tenha caído a máscara assim, de uma só vez, o terrível e absurdo é que o presidente Hugo Chávez acredite que as massas e os povos ainda não perceberam a incoerência ética que assumiu em todo este grave assunto.
O “assunto Pérez” marca o ponto de virada do processo democrático e progressista que vinha empurrando o governo de Hugo Chávez nestes últimos 12 anos. Isto não significa que o presidente Hugo Chávez, não seja reconhecido e valorizado na sua justa dimensão pelo papel que tem desempenhado e que pode desempenhar ainda, apesar da crise. E sua liderança, em grande medida, representa o anseio de liberdade para o povo venezuelano. Chávez pode até mesmo ser reeleito como presidente da Venezuela. Mas em se tratando desse assunto, quando se fala de transformações socialistas, não se trata meramente de eleger presidentes, mas realizar de verdade grandes e profundas mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais a favor das massas populares e que afetem radicalmente as estruturas capitalistas de exploração e que suprimam a opressão. E isto não é alcançado por modelos econômicos extrativistas, nem sendo condescendente com as classes capitalistas que enchem os bolsos cavalgando na onda do "Vermelho", nem guardando silêncio subserviente diante da galopante corrupção institucional, nem deixar à boliburgesia fazer o que bem quiser.
Aqui estão algumas das realidades reveladas pelo “assunto Pérez”. De um lado está a posição deplorável e arbitrária assumida por Chávez e seu governo, que pisoteou a Constituição da República Bolivariana da Venezuela, onde se lê no Capítulo III, Dos Direitos Civis, Artigo 44.
A liberdade pessoal é inviolável, portanto:
2. Toda pessoa detida tem direito de se comunicar imediatamente com sua família, advogado ou advogada ou pessoa de sua confiança, e estes e estas, por sua vez, têm o direito de ser informados ou informadas sobre a localização da pessoa detida, a ser notificados ou notificadas imediatamente dos motivos da detenção e que se faça o registro escrito no expediente sobre o estado físico e mental do detido, por si mesmo ou por si mesma, ou com a ajuda de especialistas [...]
“No que diz respeito à detenção de cidadãos estrangeiros(as) deve ser observado também, a notificação consular de acordo com os tratados internacionais sobre a matéria”.
Isso mostra que, na prática, na Venezuela não existe um Estado democrático e social, de Direito e de Justiça, mas o executivo (poder presidencial) impõe seus critérios de acordo com o humor e os interesses particulares dos outras poderes, sem sequer consulta e obedecer as respectivas instâncias e normas processuais a que são obrigados todos os poderes do Estado, e ainda mais se tratando do assunto que analisamos. Além de violar a Constituição venezuelana, o governo do presidente Chávez também viola os estatutos e convenções do direito internacional e diplomático. Como por exemplo, a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados, da Organização das Nações Unidas, da qual a Venezuela é signatária, na qual se afirma que “Nenhum dos Estados Contratantes poderá, por expulsão ou devolução, por nenhum motivo, colocar um refugiado nas fronteiras dos territórios onde sua vida ou sua liberdade possa ser ameaçada”. E neste caso, Joaquín Pérez foi entregue a um Estado terrorista com arrepiantes registros de violação dos direitos humanos, em valas comuns, no uso de motosserras para assassinar populares líderes da oposição, camponeses e políticos que são críticos como este Estado que usa o terror para se perpetuar no poder.
Quiseram justificar a entrega expressa com um twetter e um comunicado assinada pelo ministro Andrés Izarra, em nome do governo venezuelano com um tom tão reacionário que dá nojo. Não só se assume com orgulho a política antiterrorista imperial, mas também se enaltecem os postulados desta. Na suposta defesa da “batata quente” feita pelo presidente Chávez, claramente fica demonstrado até onde se chegou para abraçar esta política antiterrorista gringa, onde o aluno supera o professor: “[...]Desceu em Maiquetía e o capturamos. Assim como entregamos Chávez Abarca a Cuba, entregamos este senhor para a Colômbia”. Sim, assim mesmo, sem o menor constrangimento, burlando o princípio universal da presunção de inocência e sem julgamento sequer, condena-se e iguala-se o jornalista de ANNCOL e lutador popular Joaquín Pérez com um terrorista.
Há um ditado libio que diz que quando o bolso fica vazio os erros são cada vez maiores. Fazendo uma interpolação para o governo venezuelano de Hugo Chávez, encontramos que, quando a sacola que continha os valores éticos, revolucionários, humanistas, democráticos, progressistas, foi esvaziada, os erros aparecem aos montes e cada vez com maior capacidade autodestrutiva. Neste ponto de inflexão, como estamos estupefatos, recusamo-nos a compreender e aceitar a realidade que a sacola está vazia e em ruínas. O que temos certeza é que as massas populares e revolucionárias não abdicarão da luta pela liberdade. Do trem da revolução devem descer aqueles que simplesmente se fingiram de revolucionários. Este processo bolivariano e revolucionário – com ou sem Chávez – continuará, e nada nem ninguém pode detê-lo em seu caminho para o socialismo.
Em toda esta série de erros éticos que o “assunto Pérez” deixa a descoberto, destacamos algumas pérolas. Não se pode disser qual foi a pior, se o silêncio sepulcral de uma semana de um loquaz governo ou da censura imposta pelo presidente Chávez – ele, pessoalmente em programa de TV, assume a responsabilidade neste assunto – aos meios de comunicação como a Telesur, Venezolana de Televisão, YVKE Televisión, entre outros. Note-se que, com poucas exceções individuais, criticou-se a posição do governo venezuelano, como foi o caso de Vladimir Acosta. A questão que surge é: porque, se estava agindo corretamente e apegado aos valores bolivarianos e revolucionários, amordaçou a mídia? Do que ele tem medo, da voz do povo e as massas? Se assim for, que horror! Por que os jornalistas que trabalham nestes meios não se opuseram? Onde estão os Vladimir Danchev venezuelanos?
Falha que se repete não vem sozinha, a sacola está vazia. Imediatamente vieram outros erros podem ser classificados entre patéticos, como a nota escrita “em pleno desenvolvimento” pela atuante “seção venezuelana deste elefante branco, conhecido como a Rede de ‘Intelectuais em Defesa da Humanidade’ [ Heinz Dieterich ]". Comunicado que “exorta a não usar a revolução de forma pouco solidária nem submetê-la a riscos desnecessários”, isto não é outra coisa do que chamar ao silêncio reverencial, a não fazer a critica. Que tipo de intelectuais são aqueles que clamam para não confrontar os erros através da crítica, com a desculpa de evitar riscos desnecessários. Vocês são justamente como intelectuais – e se são revolucionários – os primeiros a criticar os abusos cometidos pelo governo venezuelano aos valores éticos neste caso e também alertar sobre a gravidade e os perigos para o processo revolucionário de tal desmessura antiética. O mundo de ponta cabeça!
Há um fracasso consumado que, além de aberrante e infame, é a importância dada pela mídia oficial a um artigo intitulado “Sobre Joaquín Pérez Becerra” e que é assinado por um certo Ivan Maíza. A importância dada a este escrito pelos editores de Telesur e Venezolana de Televisión por meio de editoriais e por vários dias, mostra que o artigo não é mais do que uma diretiva do Palácio de Miraflores e da imposição que mostrou a posição do governo de Hugo Chávez no “assunto Joaquín Pérez”, para ver como tudo resultaria. O que esse artigo diz, palavras mais palavras menos, é o que tem sido dito tanto por Nicolas Maduro, como por Hugo Chávez em suas declarações. Esta primeira vaga o governo Chávez fecha com chave de ouro: gás lacrimogêneo contra as massas e organizações que protestaram. As organizações e massas populares que se mobilizaram em frente ao Ministério das Relações Internacionais e da Assembléia Popular para exigir explicações pelo sequestro e entrega expressa do jornalista e lutador popular Joaquín Pérez ao Estado terrorista da Colômbia, encontraram as portas fechadas e bloqueadas pela polícia, foram ignoradas pela mídia oficial e o que é mais lamentável: foram dispersos com o uso de gás lacrimogêneo, como se pudesse acabar com a raiva de um povo aguerrido com bombas de gás. Diante de uma sacola vazia e arruinada, este fato pode assinalar o que as massas que se mobilizam para exigir seus direitos e o aprofundamento das reformas econômicas, sociais e políticas na Venezuela, podem esperar no futuro imediato.
O ponto de inflexão foi determinado pelo presidente Chávez, quando aparece no Teatro Teresa Carreño com o saco vazio no ombro pensando que o povo não percebeu que o rei está nu. A defesa do indefensável, não é apenas patética, mas deplorável em todos os sentidos. Lembramos que falhas que se repetem não chegam sozinhas e que estas tendem a ser cada vez maiores.
Lá, Chávez Frías, no meio de suas bravatas, lançou odiosas e infames acusações e comparações entre um lutador popular, revolucionário e bolivariano que tem mostrado seu valor por muitos anos como é o caso de Joaquin Pérez, com um terrorista do porte de Chávez Abarca. O show foi sem graça continuou, no meio da defesa pelo sequestro e entrega expressa fingiu não saber o nome do jornalista Joaquín Pérez nem de onde vinha, “como se chama esse Senhor?” De onde é que ele vinha?, perguntou, coisa que repetiu em 01 de maio. Com isto queria dar a impressão, e ressaltar, que o assunto era uma mera trivialidade. E se assim for, porquê Chávez foi forçado a se referir ao “assunto Pérez” em dois eventos importantes? Pior ainda, alimentando mais a fogueira – em constante contradição com o que dizia – raivosamente disse: “Comigo ninguém faz chantagem, nem a extrema direita nem a extrema esquerda”. “Todo mundo sabia que estava vindo, até a CIA. São movimentos infiltrados” . “Criaram uma armadilha para ele, mas para apunhalar a mim”. Reflexionem ao invés de acusar a Chávez, eu respeito a sua crítica, mas ele não sabe é como aquele que não vê".
Em 01 de maio, mais uma vez foi obrigado a abordar o problema, e disse: ”Eu não estou dizendo que ele é um terrorista, eu espero que o governo da Colômbia respeite seus direitos humanos e seu direito à defesa” – no dia anterior tinha condenado Joaquín e comparado-o com um terrorista. E acrescentou: “Aquele que quiser me criticar, que me critique. Os que me criticam não sabem de muitas coisas”. E ao condenar a queima dos bonecos de Maduro e Izarra arrematou indignado: Em alguma ocasião, tive que convocar estas pessoas, que hoje queimam bonecos, porque estavam reunindo-se com a guerrilha colombiana e fazendo planos de instalar, na Venezuela, bases da guerrilha colombiana pelas nossas costas (...) uma desculpa do imperialismo para agredir a revolução e o povo da Venezuela”.
Como podemos ver, não há explicação para o acontecido. Nenhuma alusão à gravidade ética e política da atitude submissa de um governo que se diz revolucionário. Em nenhum momento, explica por quê o governo bolivariano cedeu ao empenho de um Estado terrorista como o da Colômbia, com a simples chamada de um personagem tão sinistro como Juan Manuel Santos. Encontramos somente a sempre eterna tentativa de silenciar as autoridades. Comigo ninguém faz chantagem!, diz Chávez. Eu não posso ser criticado! Eu assumo a responsabilidade, foi uma ordem minha, bufa ele. Com este modo de proceder, Chávez abre um péssimo precedente, e com “sou quem manda, imponho minha autoridade e assumo a responsabilidade”, neste caso sem que nada aconteça, já não há mais nada para dizer nem investigar, mesmo se tenham sido violadas as normas jurídicas nacionais e internacionais. Eu sou o Senhor e ponto. Que se calem todos os críticos! E os abjetos ministros sentados na primeira fila para aplaudir até estourar e tomar notas obedientemente, pois isso sim é mostrado pelas câmeras.
Existe algo tão importante que possa e permita, com esta vergonhosa entrega expressa, enlamear os princípios e valores éticos do processo bolivariano e o anseio de mudança e de liberdade do povo venezuelano? Se assim for, então o dever do presidente Chávez é que entendamos e saibamos as muitas coisas que não sabemos. Ou estas palavras são uma desculpa perfeita para não assumir a crítica e a autocrítica responsavelmente e com toda a responsabilidade que lhe corresponde dada sua condição de presidente e de líder da revolução bolivariana. Ou o senhor está isento disso? O presidente Chávez está consciente do grave e profundo dano que acertou no processo revolucionário bolivariano venezuelano e às luta de libertação da América Latina e do mundo com o deplorável sequestro e entrega Express do jornalista Joaquín Pérez?
O presidente Chávez ainda tem a grande oportunidade de ressarcir o desacertado erro cometido contra Joaquim Pereira, todos estamos esperando impacientemente. O 'caso Pérez’ é de grande importância e transcendência histórica para além das fronteiras físicas e geográficas, não só porque ele é jornalista, um lutador popular e um revolucionário, mas por que esse grave assunto deixa a descoberto para onde é que se quer conduzir a revolução bolivariana. Para costurar novamente o delicado tecido social, político, cultural, da machucada e surrada sacola dos valores éticos, é urgentemente necessários cuidá-la, protegê-la, enchê-la de confiança, solidariedade, fraternidade, democracia, participação popular, de massas, de socialismo, de verdadeiras e profundas reformas sociais, econômicas e políticas, de mudanças estruturais profundas em favor dos pobres e das massas venezuelanas. Esta sim é uma desculpa autentica e perfeita para defender a revolução bolivariana e as lutas de libertação dos povos do mundo. O outro, o cômodo, a corrupção, a burocracia abjeta e as razões de Estado não são mais do que o combustível para uma invasão da burguesia das mentes populares e do imperialismo.
Presidente Hugo Chávez, o senhor tem uma oportunidade histórica, não a desperdice! Se você montar no tobogã burguês que te dá o lubrificado ponto de inflexão, será uma viagem à capitulação aplaudida até arrebentar pelas palmas da direita endógena, por ministros e burocratas e abjetos e pela reação mundial. Presidente Chávez: ao povo revolucionário e às massas ninguém as pode deter em seu caminho para o socialismo, portanto a palavra está com você!