Sobre os 90 anos do Partido Comunista Brasileiro, por Miguel Urbano Rodrigues
Recordei lutas, recordei camaradas que contribuíram para me tornar comunista. Todos hoje mortos: Luiz Carlos Prestes, Gregório Bezerra, Luís Maranhão, Mario Schemberg, Dias Gomes, Jorge Amado, Fernando Santana, João Saldanha, Giocondo Dias, Caio Prado, Mário Lago e muitos outros. O renascimento do PCB foi lento, difícil. É ainda um pequeno partido num país de 200 milhões de habitantes. Mas a actual linha revolucionária, traçada por uma direcção marxista-leninista e sustentada por quadros de grande qualidade, proporcionou-lhe em poucos anos um grande prestígio. Raras vezes um partido comunista se recuperou após uma crise profunda que, no desenvolvimento de uma estratégia e uma táctica incompatíveis com princípios e valores do marxismo-leninismo, implique na prática a renuncia ao objectivo principal: a tomada do poder rumo à construção do socialismo. A desagregação da URSS e a restauração do capitalismo na Rússia contribuíram decisivamente para que a social democratização de muitos partidos comunistas e em alguns casos para o seu desaparecimento ou transformação em partidos da burguesia neoliberal. Nesse panorama sombrio, o Partido Comunista Brasileiro emerge como excepção que reconforta. À beira do abismo, após mais de uma década de vida letárgica, renasceu em 1992, reconstruiu-se como organização marxista-leninista e retomou a sua vocação de partido revolucionário e internacionalista. Essa realidade ficou transparente nas jornadas que assinalaram as comemorações no Rio de Janeiro do 90º aniversário da sua fundação. Num breve artigo como este não é possível proceder a uma balanço mesmo superficial dessas comemorações e do seu significado. A dificuldade é maior porque o Seminário «PCB 90 Anos de Lutas», pelo objectivo, estilo, originalidade e nível ideológico de muitas intervenções foi diferente de tudo o que se podia esperar de uma iniciativa com tais características. Durante três dias, no salão do Sindicato dos Professores do Rio, alguns dos oradores não se limitaram nas suas comunicações a evocar fases da história do Partido. Foram mais longe, inovaram ao romper tabus na reflexão sobre acontecimentos polémicos, na abordagem pública de temas ocultos por um manto de silêncio. Representantes de três gerações, identificados com essa aspiração, iluminaram páginas de uma história épica e dolorosa, mal conhecida, contribuindo assim para a sua desejada concretização. Alguns derrubaram barreiras com coragem e desassombro. Ivan Pinheiro, o secretário-geral, apontou o caminho ao afirmar que se «acertamos muito (…) também já erramos muito.» Na mesa em que Anita Prestes e ele falaram sobre «O reformismo e a tentativa de liquidação do PCB», a filha de Luiz Carlos Prestes, hoje historiadora prestigiada, orientou o discurso sobretudo para o prolongado choque do seu pai com a maioria do Comité Central que defendia um desenvolvimento capitalista autónomo e democrático do Brasil, estratégia que acorrentou o partido a uma aliança tácita com sectores da burguesia nacional supostamente antiimperialitas. Mauro Iasi, Edmilson Costa e José Paulo Neto foram brilhantes na descida às raízes da política que distanciou o PCB da sua vocação revolucionária. Com estilos diferentes, valorizaram a resistência das bases e de muitos dirigentes à estratégia reformista da conciliação, resistência que, finalmente, tornou possível o renascimento do Partido que, na fidelidade aos princípios, reafirma hoje com firmeza, olhos num futuro sem data, que a meta da Revolução Brasileira – a que lhe imprime o carácter - é a construção do socialismo. A HISTÓRIA ESQUECIDA Foi com emoção que acompanhei esses debates e intervim no Seminário internacional que se seguiu ao dedicado aos temas nacionais. Vivi em São Paulo, exilado, de l957 até à Revolução portuguesa e, como militante do PCB, tive a oportunidade de participar modestamente das lutas do povo brasileiro. Por decisão do ministro da Justiça um livro meu foi apreendido. Detiveram-me algumas vezes e fui submetido a prolongado interrogatório por um inspector da famigerada Operação Bandeirantes, a criminosa organização militar- terrorista da ditadura. Vivi como internacionalista as crises que então atingiram o PCB. Elas são evocadas num lúcido artigo dos camaradas Ricardo Costa, Milton Pinheiro e Muniz Ferreira, publicado na edição especial de «Imprensa Popular», órgão do Partido e no seu sítio na internet (www.pcb,org,br) Esse trabalho, abarcando sobretudo as décadas de 50 e 60, é uma página de história. Os autores, membros do actual Comité Central, despojam de secretismos as sucessivas e complexas disputas internas surgidas no PCB a partir do relatório secreto de Krutchov ao XX Congresso do PCUS. Todas envolveram a definição da estratégia e da táctica correctas a adoptar para a construção da alternativa socialista. Da primeira crise surgiu o PC do B, uma dissidência que, empolgada pelas teses maoistas da «guerra prolongada», iniciou uma guerrilha heróica mas romântica nas selvas do Pará, destruída pelo exército em autêntica chacina. Posteriormente aderiu ao «marxismo albanês» de Enver Hoxha e, finda a ditadura, optou pela via institucional, integrou a coligação que elegeu Lula e actualmente apoia a política de Dilma Roussef em cujo governo participa. Após o Acto Institucional nº5, em 1968, a ditadura assumiu facetas de fascismo castrense e a repressão abateu-se sobre as forças progressistas numa onda de barbárie. O PCB foi golpeado por novas cisões inseparáveis da sua política de conciliação. A mais importante foi liderada por Carlos Marighela, o fundador da Acção Libertadora Nacional-ALN, um revolucionário comunista que contou com o apoio de Cuba e teve morte trágica. A linha hesitante do Partidão - assim era conhecido - na definição de uma estratégia de confronto claro com a burguesia contribuiu para a proliferação de mini- partidos e organizações que preconizavam sob múltiplas formas a luta armada. A maioria optou pela guerrilha urbana. Na luta contra o terrorismo de estado alastrou a confusão numa juventude generosa, disponível para a luta, mas despreparada ideologicamente. Foi a época dos sequestros de embaixadores estrangeiros, de aventuras como a do capitão Lamarca, um revolucionário ingénuo, voluntarista. Cada organização, cada grupo, cada partido pretendia ser detentor da estratégia adequada para derrotar a ditadura e levar adiante a Revolução Brasileira. Todos invocavam o marxismo, mas com frequência os textos em que condensavam a sua opção revolucionária eram uma caldeirada de teses de Mao, de Trotsky, do Che, com tempero de disparates extraídos do livrinho irresponsável de Regis Debray, editado clandestinamente no Brasil. Nesses anos trágicos, o PCB resistiu aos apelos do aventureirismo guerrilheiro. As divergências na direcção não impediram o consenso no tocante a uma questão fundamental: a prioridade da luta de massas no combate à ditadura, com recusa de qualquer modalidade de guerrilha. Mas essa opção não se traduziu numa estratégia e numa táctica revolucionárias. A crise que se instalou no campo socialista no final dos anos 80 e culminou com a reimplantação do capitalismo na Rússia aprofundou a tendência capituladora e liquidacionista de influentes membros do Comité Central. A maioria desse Comité Central, impondo uma linha reformista, levou o PCB à beira da extinção. A exigência da reconstrução revolucionária principiou quando a maioria do CC aboliu o centralismo democrático, e mudou o nome do Partido, criando uma organização social-democrata, o Partido Popular Socialista, que hoje tem um perfil de centro-direita. Mas não conseguiu acabar com o PCB que não deixou de existir um dia sequer, ao contrário do que na Europa foi afirmado inclusive por intelectuais marxistas. A LENTA RECONSTRUÇÃO Há dias, ao escutar as intervenções de camaradas da nova geração sobre problemas do mundo contemporâneo, foi para os pioneiros da reconstrução do Partido, iniciada em 1992 que voou o meu pensamento. Recordei lutas, recordei camaradas que contribuíram para me tornar comunista. Todos hoje mortos: Luiz Carlos Prestes, Gregório Bezerra, Luis Maranhao, Mario Schemberg, Dias Gomes, Jorge Amado, Fernando Santana, João Saldanha, Giocondo Dias, Caio Prado, Mario Lago e muitos outros. O renascimento do PCB foi lento, dificil. É ainda um pequeno partido num país de 200 milhões de habitantes. Não tem deputados no Congresso e nas Assembleias dos Estados, nem representantes (quem sabe?) municipais. São transparentes as suas insuficiências. Mas a actual linha revolucionária, traçada por uma direcção marxista-leninista e sustentada por quadros de grande qualidade, proporcionou-lhe em poucos anos um grande prestígio. Enquanto pelo mundo outros partidos comunistas se social-democratizaram, ele volta a desempenhar um papel de crescente importância nas lutas do povo brasileiro e no cenário internacional em todas as frentes onde o combate ao imperialismo estadounidense se tornou exigência revolucionária. Esse apreço transpareceu nas saudações fraternas que pelo seu aniversário recebeu de personalidades como Óscar Niemeyer, Isztvan Meszaros e James Petras, e nas intervenções dos representantes dos Partidos Comunistas que participaram no Seminário Internacional que se seguiu ao nacional, nomeadamente os da Grécia, da Venezuela e do México. Cito esses três precisamente porque se destacam pela firmeza ideológica no combate ao reformismo e ao oportunismo. «SOMOS E SEREMOS COMUNISTAS» Os actos comemorativos do aniversário do PCB ocuparam quase uma semana. No Seminário Nacional, além das já citadas, houve intervenções de nível elevado pelo rigor da abordagem histórica e riqueza conceptual. Entre elas as de Virginia Fontes, Marcos del Royo e Eduardo Serra. No Seminário Internacional participaram delegados dos partidos comunistas da Argentina, do México, da Grécia, da Venezuela, de Cuba, do Uruguai e do Colombiano e do Peruano, o secretário-geral do Partido Comunista Sírio e um representante da Frente Popular da Palestina. Como convidados intervieram também o argentino Atílio Borón, a libanesa Leila Gahnen, os embaixadores de Cuba e da Síria no Brasil e o autor deste artigo. Mesas especiais foram dedicadas à Revolução Cubana, ao povo colombiano, vítima de um regime neo-fascista, e à condenação das guerras imperialistas no Médio Oriente. Foi emocionante a visita de brasileiros e estrangeiros, numa jornada de camaradagem, ao lugar onde, a 25 de Março de 1922, foi fundado na cidade de Niterói o Partido Comunista Brasileiro. Nenhum dos presentes havia ainda nascido, mas a corrente da fraternidade formou-se instantaneamente na evocação do punhado de revolucionários – eram apenas nove - que numa casa hoje desaparecida se reuniu para desafiar o futuro. O encerramento da semana de comemorações teve por cenário a sala do plenário da Câmara Municipal de Niteroi. Ali se reuniu o actual Comité Central com a presença dos convidados estrangeiros e de velhos militantes e elementos da juventude do Partido. Ali abracei a camarada Zuleide Faria de Melo, ex- presidente do Partido. As estrofes da Internacional soaram no anfiteatro de uma instituição da burguesia enquanto se bradava em coro uníssono: «Fomos, somos e Seremos Comunistas!» Vila Nova de Gaia, Abril de 2012