Islã e liberdade de expressão
Escrito por Frei Betto
Quarta, 26 de Setembro de 2012
“Inocência dos muçulmanos” é o título do filme usamericano dirigido
por um tal Sam Bacile, que difama o profeta Maomé e ofende todos
aqueles que professam a fé muçulmana.
Quem é Sam Bacile? Não se sabe. O diretor do filme, talvez temendo
represálias, se escondeu sob o anonimato. Há suspeitas de que ele e o
produtor Nakoula Basseley Nakoula, cristão copta que vive na
Califórnia, sejam a mesma pessoa.
As cenas do filme vão da grosseria à pornografia. Num dos trechos diz
uma velha: “Tenho 120 anos. Nunca conheci um assassino criminoso como
Maomé. Mata homens, captura mulheres e crianças. Rouba caravanas.
Vendi meninos como escravos depois que ele e seus homens abusaram
deles”.
Conhece um cristão que gostaria de ouvir algo parecido a respeito de
Jesus Cristo? Ou um judeu, a respeito de Moisés ou Davi?
Tão logo o filme foi divulgado pela internet, uma onda de protestos se
levantou nos países muçulmanos. O embaixador dos EUA na Líbia foi
assassinado. Representações ocidentais foram depredadas e incendiadas
no Egito, na Tunísia, na Indonésia, no Irã, no Iêmen e em Bangladesh.
O filme de Sam Bacile é, sim, uma grave ofensa a todos que creem em
Maomé como portador de revelações divinas. Hillary Clinton, secretária
de Estado dos EUA, classificou o filme como “repugnante e condenável”,
mas acrescentou que os EUA devem respeitar a liberdade de expressão...
Suponhamos que se jogasse na internet um filme mostrando Monica
Lewinsky fazendo sexo oral com Bill Clinton. Como reagiria Hillary?
Liberdade de expressão?
E se o filme mostrasse Obama sendo sodomizado por Bin Laden ou a
Estátua da Liberdade transando com Abraham Lincoln, qual seria a
reação do governo e do povo dos EUA? Respeitar a liberdade de
expressão?
Por que a família real britânica não segue a mesma lógica de Hillary
Clinton e suspende o processo judicial contra a Closer, revista
francesa que publicou fotos da princesa Kate Middleton fazendo topless
numa praia particular? Não há que respeitar a liberdade de expressão?
Toda liberdade tem limites: o respeito à dignidade e aos direitos
alheios. Ninguém é livre para furar filas, sonegar impostos, ofender a
progenitora de quem quer que seja. Certas atitudes negativas podem até
ser legais, como produzir filmes pornográficos, mas são indecentes e
injustas. Como reagiriam os cariocas se, ao acordar, vissem o Cristo
do Corcovado com o rosto encoberto pela máscara do diabo? Liberdade de
expressão?
Desde a queda das torres gêmeas, em 2001, os EUA incutem em sua
população profundo preconceito aos muçulmanos. Esse caldo de cultura
favorece produções cinematográficas como a de Sam Bacile.
Em vez de enviar fuzileiros para guardar as representações
diplomáticas estadunidenses no exterior, a Casa Branca deveria pedir
solenemente desculpas aos muçulmanos e retirar o filme de circulação.
A liberdade deve, necessariamente, ser contextualizada. Pode-se ir à
praia de fio dental ou de sunga. Não ao trabalho ou à igreja. Hoje,
posso criticar os deuses do Olimpo grego e a promiscuidade
sadomasoquista em que viviam. Mas com certeza seria gravíssimo se eu o
fizesse em Atenas quatro séculos antes de Cristo.
A Constituição Brasileira é primorosa quando trata da liberdade de
expressão. Reza em seu artigo 5º, Inciso IV: “É livre a manifestação
de pensamento, sendo vedado o anonimato”.
Por que Sam Bacile se esconde sob anonimato? Porque sabe ter cometido
uma grave ofensa e não deseja arcar com as consequências.
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Barros, de “O
amor fecunda o Universo – ecologia e espiritualidade” (Agir), entre
outros livros.
Website: http://www.freibetto.org . Twitter: @freibetto.