OS CORVOS DA DINA
Roberto Ortiz
Fonte: Punto Final
Continua pendente o conhecimento da verdadeira magnitude de muitas atrocidades cometidas pelos agentes da ditadura. Tem contribuído muito a esse conhecimento a investigação do chamado “caso rua Conferência”, de abril de 1976, em que um grupo de dirigentes clandestinos do Partido Comunista, liderados por Mario Zamorano e integrado, entre outros, por Uldaricio Donaire – que com o nome de Rafael Cortez era encarregado de controle e quadros – e o engenheiro Jorge Muñoz, esposo de Gladys Marín, caíram numa armadilha da DINA. Todos foram detidos, incluindo Zamorano, ferido a bala, e desaparecidos. Até o dia de hoje desconhecesse o que lhes aconteceu. Ainda que o achado de uma dezena de corpos nus, desfigurados e amarrados com arames na beira do rio Maipo, poucos dias depois da sua detenção, fosse a resposta.
Pareceu ser o inicio das operações da Brigada Lautaro e do grupo Delfin, que desde o inicio de 1976 tinham a missão de exterminar o Partido Comunista. Poucos dias depois das prisões na rua Conferência foi preso o subsecretário do partido, Victor Días López, escondido numa casa de segurança supostamente segura, com a cobertura de ser parente dos donos da casa. Díaz tinha substituído a Luis Corvalán, detido em outubro de 1973. Muitas detenções nessa primeira leva repressiva obrigaram a construir uma nova direção com Fernando Ortiz Letelier à cabeça, junto de dirigentes como Waldo Pizarro, Horácio Zepeda e Lincoyán Berríos. Novamente, multiplicaram-se as detenções, os desaparecimentos e as invasões de casas que serviam para contatos. Essa segunda direção do PC foi detida ao final de 1976.
O JUIZ MONTIGLIO
Finda a ditadura, a investigação foi assumida por Victor Montiglio, ministro da Corte de Apelações de Santiago, que tomou a responsabilidade pelo caso da rua Conferência, estagnado durante mais de trinta anos. Aproveitando a captura de Jorgelino Vergara Bravo, ex-agente da DINA e da CNI, o juiz Montiglio conseguiu que este quebrasse o pacto de silêncio e abrisse as comportas para a verdade. Vergara é uma testemunha privilegiada. Sendo quase um garoto, começou a trabalhar na casa do coronel Manuel Contreras, chefe da DINA. Conheceu sua família, atuando como garçom que ajudava nos serviços da casa. Passado algum tempo, ingressou na DINA, continuou sendo o “garçonzinho” mas, em algum momento, se transformou em agente de segurança pelas suas condições físicas, o uso de armas e técnicas de defesa pessoal e, principalmente, pela sua lealdade, reforçada pelo costumeiro juramento de silêncio. Foi destinado ao quartel secreto da rua Simón Bolivar número 8000.
Vergara, com memória fotográfica, relembrou perante o juiz Montiglio, a sua estadia no quartel. Forneceu detalhes, nomes, descrição de lugares, datas, reconheceu vitimas em fotografias. A maioria do que ele falou coincidiu com o que já se sabia ou começou a ser reconhecido por outros agentes. Em primeiro lugar pelo comandante do quartel, o ex-coronel Juan Morales Salgado, que se lembrava com carinho de Jorgelino. Assim como o agente Jorge Pinchumán Curiqueo. Depois vieram outros mais. Cada um se preocupava em salvar o próprio pescoço. Abria-se o segredo mais bem guardado pela ditadura: o quartel da DINA de onde nenhum dos prisioneiros saiu com vida. Um campo de extermínio total e absoluto.
Foi um verdadeiro cataclismo. O juiz Montiglio processou a sessenta pessoas, desde o general (r) Manuel Contreras, até simples agentes das forças armadas e da polícia de diversas patentes, incluindo mulheres que ocasionalmente foram torturadoras mas que, habitualmente, ajudavam ou aplicavam drogas letais nos prisioneiros. O juiz Montiglio faleceu, vitima do câncer, em março de 2011. O processo continua aberto. Espera-se que em breve saia a sentença, ainda que não faltem os que sustentam que tudo vai dar em pizza.
O GARÇONZINHO
O livro A dança dos Corvos (Ed. Ceibo,275 pgs.) do jornalista Javier Rebolledo, conta esta história através das palavras de Jorgelino Vergara, o mesmo em que se baseou o documentário O Garçonzinho de Marcela Said e Jean de Certeau. Como adverte Jorge Escalante, autor do prólogo e primeiro jornalista que cobriu notavelmente a informação sobre os acontecimentos do quartel Simón Bolivar e o trabalho do juiz Montiglio: “Nunca antes um ex-agente relatou tão detalhadamente a crueldade compilada nesta obra. O Garçonzinho foi uma testemunha dourada. Segundo ele, nunca matou nem torturou. E neste livro sustenta isso”.
Jorgelino Vergara, o garçonzinho, resolveu falar com Rebolledo. Não somente o que já tinha dito, disse coisas novas, como as alusões ao quartel Loyola e as relações entre Manuel Contreras e o empresário Ricardo Claro, segundo ele, um dos financiadores da DINA. Sempre cauteloso, para não se comprometer, não diz nada do que fez após sua maioridade, já que continuo na CNI até 1985. E mantém o que afirma: nunca torturou nem assassinou ninguém. Quer sair limpo de um relato cujo centro é a violência exterminadora.
O Garçonzinho não falou nem por remorso nem por sentido de justiça. O fez por vingança, já que seus ex-companheiros queriam culpá-lo pelo assassinato de Víctor Díaz e falou porque sabia que não seria imputado como menor de idade.
A dança dos Corvos, converteu-se em um livro de grande circulação. Ocupa o primeiro lugar em vendas. Coisa interessante que já se sustenta é que os assuntos sobre direitos humanos são coisa do passado. O autor, Javier Rebolledo, é um profissional jovem com experiência em jornalismo investigativo formado juntamente de Jorge Escalante e Marcela Said. Seu livro é, sem duvida, uma obra de destaque. Terrível e avassaladora, não somente pelo que narra mas também pelas reflexões que provoca. Como, por exemplo, a passividade dos vizinhos do quartel Simón Bolivar, que conviviam diariamente com o dia-a-dia dos setenta funcionários da Brigada Lautaro e do Grupo Delfin. Percebiam como agentes de segurança circulavam, inclusive com armas à mostra, às vezes ouviam os gritos desesperados das suas vitimas. Entretanto, demoraram mais de vinte anos em denunciar.
EXTERMINAR O PC
Se o propósito de Pinochet era acabar como o Partido Comunista, eliminando a sua direção, está claro que fracassou. Pouco tempo depois da detença de Fernando Ortiz já funcionava uma direção substituta encarregada a Jorge Texier e se mantinha a coordenação dos regionais de Santiago. Em meados de 1977, começou a atuar uma direção definitiva com Nicasio Martinez à cabeça, integrada por Crifé Cid, Guillermo Teillier e Juvenal Ayala. O funcionamento compartimentado, a revisão a fundo das medidas de segurança e a coragem dos dirigentes e militantes prisioneiros, permitiu encaixotar o golpe repressivo. Ainda que fossem morrendo em pouco tempo, nessa situação infernal em que não havia nenhuma esperança de sobrevida, resistiram. O fato de não terem ocorrido buscas em residências de quem os conhecia, nem a queda de outros dirigentes e militantes demonstra isso. No final de 1976 foi assassinado Víctor Díaz, asfixiado com uma sacola de plástico. Seu corpo, como os dos demais, foi envolvido por um plástico e, em seguida, enfiado num saco de batatas. Amarrado a um trilho de aço de ferrovia, para que não flutuasse, foi levado de helicóptero até alto mar de onde foi jogado.
Pelos meses que Víctor Díaz permaneceu prisioneiro, fazem pensar que se transformou em refém que convinha mantê-lo vivo. Pensou-se possivelmente numa troca ou em que, como refém, era uma garantia contra possíveis atentados contra Pinochet ou os integrantes da Junta de Governo. Mas, ao mesmo tempo, era uma testemunha que não podia permanecer viva. Víctor Díaz foi torturado em diversas ocasiões, o que sugere que as acusações de que colaborara com seus algozes foram simplesmente manobras de desinformação. O garçonzinho, e não somente ele, acredita que Díaz não colaborou. É razoável: se o tivesse feito, a Junta de Governo poderia tê-lo mostrado à mídia ou o teria exibido na TV
Além disso, o seguimento aos comunistas já ocorria desde o golpe de estado. Ou até de antes. Guillermo Teillier, detido em 1974, relembrava que ficou impressionado com a abundante e precisa informação sobre o Partido Comunista que os órgãos de inteligência possuíam. Desde então e até 1976, haviam ocorrido detenções e casos claros de colaboração, como o de Manuel Estay Reyno e René Basoa.
O Garçonzinho não é uma personagem confiável. Salvo quando suas palavras são confirmadas por outras confissões e antecedentes consignados no processo. Jorgelino Vergara sabe muito e cala-se, para não se expor ao perigo e para mostrar seu próprio jogo, um jogo perigoso.
Entretanto, ficam pendentes questões importantes. Uma delas é a dificuldade para entender a coexistência entre o terror, entre o mal puro, brutal, sem atenuantes nem justificativas, para com a vida pelos torturadores, dos criminosos, que foram verdadeiras bestas ferozes, dos homens e mulheres capazes de esquartejar um ser humano ainda vivo e, que ao mesmo tempo, são bons pais, preocupados com seus vizinhos, corteses, honrados e fiéis devotos.
Como foi visto muitas vezes entre os criminosos de guerra ou entre os piores assassinos, a banalidade do mal se transforma numa realidade que não deveria ser entendida, nunca, como uma fatalidade. Sempre haverá lugar e esperança para os heróis e também para os santos, em um sentido amplo como houve (e há) muitos, desconhecidos ou ignorados. Também para as pessoas comuns, comprometidas com a felicidade e a liberdade humanas, com a liberdade e a compreensão das debilidades e renuncias que não fecham o caminho para a esperança.
Outro elemento é o comportamento institucional das Forças Armadas que calam-se, sem se perturbar diante das atrocidades cometidas por integrantes das suas fileiras. Talvez imaginem que o seu prestígio não se altera por continuar a manter o mito dos soldados respeitosos do adversário, valentes que nunca torturariam ou assassinariam mulheres grávidas ou matariam prisioneiros indefesos a pauladas.
Publicado em “Punto Final”, edição Nº 764, 17 de agosto de 2012
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