Por: Francisco Herreros
Fonte: Diario Red Digital
Manuel Olate, militante comunista acusado de ligações com as FARC, é libertado
Através de uma sentença cuja contundência não deixa o menor espaço para uma eventual apelação do Ministério Público e que, certamente, deixará jurisprudência sobre a matéria, o Ministro da Corte Suprema, Sergio Muñoz, mandou para o lixo da história, de onde, a rigor, nunca devia ter saído, a atroz armação contra Manuel Olate, o Partido Comunista e a causa Mapuche, ensaiado por Sebastián Piñera, Alberto Espina e outros políticos de menor porte, assim como pelos jornais La Tercera e El Mercúrio, que durante dois anos condenaram sem provas a um inocente.
Quando o Ministro Muñoz pronunciou as três considerações da sentença, “em conformidade com o exposto, as disposições legais citadas e o normado nos artigos 440, 449 e 452 do Código Processual Penal, declara-se:
I.- Que se rechaça a solicitação de extradição da Republica da Colômbia, do cidadão chileno Manuel Francisco Olate Céspedes;
II.- Que findam as medidas cautelares pessoais dispostas neste procedimento de extradição em relação a Manuel Francisco Olate Céspedes e,
III.- Que, no seu devido momento, realizar-se-ão as comunicações legais ao Ministério das Relações Exteriores”; o rosto de Manuel Olate permaneceu impassível.
Por um lado, sempre confiou na sua inocência, e no juiz Muñoz; por outro, o dano, quer dizer, o assassinato da sua imagem pública perpetrado pelos meios de comunicação, especialmente nos dois já mencionados, já estava consumado.
Mas a ovação que brotou incontida entre os assistentes na sala, onde a tensão se tivesse um peso físico, poderia ter-se medido em toneladas, se repetiu momentos depois no mais de uma centena de manifestantes que estavam aglomerados na frente do Palácio dos Tribunais, naquele histórico sábado 15 de janeiro de 2011 ao meio dia.
Entre os presentes na sala e depois confundido com os manifestantes, estava o Presidente do Partido Comunista, o deputado Guillermo Teiller, que declarou:
“A sentença era de ser esperada, já que não havia nenhuma prova com a que pudessem levar adiante a extradição de Manuel Olate. A sentença desvirtua em termos absolutos a campanha montada contra Olate e contra nós por certos políticos de direita e os meios de comunicação controlados por ela. A sentença demonstra, também, que nós sempre manifestamos nossas opções políticas de frente e de acordo com a lei; o que não podem dizer aqueles que nos acusaram sem provas. O mínimo que espero é que aqueles que apresentaram as acusações, tanto no Congresso como perante a justiça, peçam desculpas a quem acusaram com tanta leviandade”.
O advogado de Olate, Alex Carocca, estimou que a solicitação de extradição não foi bem fundamentada e que, se tivesse sido aceita, teria se colocado em perigo a liberdade de expressão no Chile:
“Teria colocado em perigo a faculdade que todas as pessoas têm de se manifestar politicamente da forma que achem conveniente e teria posto em perigo o sistema de justiça penal que construímos”.
Manuel Olate expressou algumas palavras:
“Isto, de alguma forma, ajuda às pessoas que, no âmbito internacional, estão na busca da paz. Senti o apoio durante todo o tempo que estive preso. Mas estes são os custos que temos de pagar por fazer o trabalho”.
Por sua vez, o advogado do Ministério Publico, Eduardo Picand, disse:
“Primeiramente, a sentença tem mais de 170 páginas, o que é quase o dobro da sentença de Fujimori em primeira instância; então, do que consegui folhear, a sentença é muito completa; assim, tem que se ver o que se deu por acreditado e o que não. Em relação a estas últimas tem que se ver se o ministro, em nossa opinião, tem ou não a razão”.
Principio de inocência
Ainda que o Ministro tenha a razão, como pode inferir qualquer um que leia a sentença de 175 páginas, é quase seguro que o Ministério Público apelará, mesmo que seja para manter as aparências. Mas, quando o advogado Picand o analise, perceberá que a sentença do ministro Muñoz não deixa espaço para uma eventual revogação.
De fato, é uma sentença histórica, pelo exemplar, tanto no que se refere aos aspectos formais e processuais, como a sequência lógica da sua argumentação e raciocínio jurídico. Desse ponto de vista, a eventual revogação de parte de uma sala, equivaleria a um atentado inaceitável numa sociedade democrática.
Nos aspectos substanciais da sua sentença, o Ministro Muñoz se encarregou das premissas da alegação do representante do Ministério Público que, apesar de insistir em que não se pronunciaria sobre a culpabilidade de Olate, mas na “seriedade” das provas apresentadas pela Promotoria colombiana, definiu o seguinte esquema:
1. As FARC são uma organização terrorista.
2. Roque é membro das FARC
3. Roque financia as FARC.
4. Roque é Manuel Olate Céspedes
5. Manuel Olate financia as FARC.
Isto sem prejuízo de considerar os crimes pelos quais a extradição é solicitada:
“1.- Financiamento do Terrorismo e Administração de Recursos Relacionados com Atividades Terroristas. Artigo 345 do Código Penal, Modificado pela Lei 1121 de 2006, Artigo 16” (...) e, 2.- Conspiração Agravado pelo Artigo 340 Modificado pela Lei 733/2002, Art.8º”.
O raciocínio jurídico impecável do juiz Muñoz começa na 29ª consideração, com a invocação da presunção de inocência, sistematicamente atropelada por Piñera, Espina, a promotoria colombiana, El Mercúrio e La Tercera:
“Antes de iniciar a analise específica do depoimento prestado durante o procedimento, é inteiramente oportuno assinalar que os direitos amplamente reconhecidos pelas sociedades contemporâneas é o principio da inocência, que talvez tenha passado despercebido, mas que a Excelentíssima Corte Suprema, em sua sentença de 12 de julho último, nos autos Nº. 3613-2002, relembra que foi proclamado em nosso país. (...)
O Excelentíssimo Tribunal acrescenta que, apenas em 1989 a legislação incorporou este principio à nossa legislação e o desenvolveu no artigo 42 do Código de Procedimento Penal, que prevê que “ninguém será considerado culpado de um delito nem se lhe aplicará nenhuma pena a não ser em virtude de sentença ditada pelo tribunal estabelecido pela lei, com base em um processo prévio legalmente tramitado”; principio reiterado no Código Processual Penal em seu artigo 4º que diz: “Presunção de inocência do imputado. Nenhuma pessoa será considerada culpada nem tratada como tal enquanto não for condenada por uma sentença definitiva”.
Só este fato indica que os políticos e os meios de comunicação mencionados, incorreram, em flagrante, no delito de opinião; o que, portanto, deve ser perseguido.
De fato, não se pode permitir que, em virtude de uma paranóia ideológica de duvidosa justificativa, políticos de diversos matizes e meios de comunicação, atentem dessa forma contra direitos cidadãos, sem os quais é inútil proclamar convivência democrática e civilizada.
Ilegalidade de origem
Em seguida, a sentença do ministro Muñoz assume o crucial problema da legalidade da prova apresentada pela parte colombiana, entanto procedente de um ato violatório do direito internacional, como foi o arteiro bombardeio do acampamento de Raúl Reyes, em território equatoriano, em 28 de fevereiro de 2008:
“É um fato afirmado pelo Estado requerente que seus efetivos militares e policiais adentraram 1.500 metros em território soberano de outro país, neste caso do Equador, para destruir um acampamento do Frente 48 das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, onde foram mortas diversas pessoas e se recolheram evidências consistentes em computadores e memórias portáteis. É por esta origem externa ao território soberano da Colômbia que não resulta procedente invocar a aplicação do principio de legalidade na produção da prova invocado pelo Ministério Público, conforme as disposições colombianas, por quanto se bem foram efetivos militares e policiais da Colômbia os que recolheram a evidência, o fizeram fora do seu âmbito jurisdicional”.
Para maior esclarecimento, o ministro Muñoz acrescentou em sua sentença:
“Aceitar a teoria dos ataques preventivos dos países nos territórios soberanos de outros, importa reconhecer a legitimação da força nas relações internacionais, circunstância que o nosso país não aprovou ao formar parte do Conselho de Segurança das Nações quando da invasão armada dos EUA no Iraque.(...)
O relatório da Comissão da OEA que visitou o Equador e a Colômbia, presidida pelo seu Secretário Geral, deixou consignado em seu relatório que as tropas colombianas penetraram 1.800 metros no território do Equador, onde, previamente, lançaram-se seis bombas, provocando a morte de 25 pessoas e três mulheres feridas, “fato que constitui uma violação da soberania e da integridade territorial do Equador e dos princípios do direito internacional”.
Como se tudo isto fosse pouco, acrescentou:
“A analise não acaba aqui, pois se bem é verdade que as argumentações expressadas demonstram claramente o proceder contrário ao direito do Estado colombiano ao ingressar efetivos militares e policiais no território da Republica do Equador, atividade com a qual foi possível obter a evidência que agora invoca contra o requerido Olate Céspedes, entretanto, resulta necessário avançar na procedência dos antecedentes.
Nesta analise se descarta, é claro, qualquer relativização da gravidade dos fatos ocorridos e suas consequências, assim como também qualquer alegação de falta de prejuízo de Olate Céspedes, já que os afetados seriam terceiros.
Relatividade que não é possível atender, posto que foram violadas as garantias de Manuel Olate, desde o momento em que se fizeram conhecer registros fotográficos e de texto que poderiam se relacionar com sua pessoa, sem que ele tivesse consentido, como tampouco a pessoa que mantinha tais registros, terceiro que inclusive faleceu no momento da coleta da prova.
E mais, no relato da testemunha Parra, da defesa do requerido, afirma que, segundo os informes das autoridades equatorianas, teriam sido assassinados efetivos das FARC desarmados e já aprisionados; fato executado pelas tropas que invadiram o território equatoriano, sucesso que, em seu conceito, constitui crime de guerra, ao dar morte a pessoas detidas e desarmadas”.
A sentença do ministro Muñoz conclui sobre este crucial problema:
“Pelo anterior, priva-se de valor e efeito a prova impugnada, a que deriva dos computadores portáteis, discos duros externos e memórias USB obtidas no acampamento da Comissão Internacional das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia em território da Republica do Equador”.
Olate é Roque, e daí?
A consideração 43ª é particularmente relevante, por quanto dá por fato que “Manuel Francisco Olate Céspedes pode ser vinculado com o uso do pseudônimo ou código de identificação ‘Roque’, o que se vincula com a consideração 44ª”:
“Pode-se afirmar que esta pessoa é militante do Partido Comunista do Chile, o qual mantem relações qualificadas de solidárias com o povo colombiano, as que se tornam concretas com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia desde a sua fundação, em seus aspectos políticos, sem que existam antecedentes que permitam vinculá-las com os aspectos operativos e práticos das formas de luta armada pelas quais as FARC optaram, as que, em todo caso, as testemunhas, integrantes desse Partido Político, negam e sustentam que buscam o reconhecimento da qualidade de força beligerante para as FARC, como a celebração de um acordo de paz com o governo da Colômbia, pois consideram que é a única via que permitiria pôr fim à situação de violência desse país”.
Este é, provavelmente, um dos aspectos centrais da sentença. Mesmo assumindo que Olate é Roque, o Ministro conclui que a atividade de Olate de apoio às FARC, coisa que ele nunca negou, não é constituída de delito, como afirmava a paranóica versão da parte colombiana e da dócil imprensa chilena.
Gols de tabela
Logo, a sentença do Ministro Muñoz toma conta do problema a fundo, isto é, a acusação de que Olate financiava às FARC. Sobre este ponto, assinala na consideração 46ª:
“Que o Ministério Público do Chile ofereceu a prova acompanhada da solicitação da República da Colômbia, para estabelecer os fatos em que se baseia a petição desse Estado, a que apresentou nas audiências destinada à recepção da mesma. Mas, além disso, ofereceu e produziu prova nacional. Entretanto, para complementar a anterior, pretendeu acreditar novos fatos, distintos daqueles expressados pelo requerimento colombiano, especialmente no relativo ao precisar que Manuel Francisco Olate Céspedes é Roque e que financiava as FARC”.
Ou seja, o ministro Muñoz diz, claramente: o Ministério Público chileno se excedeu nas suas atribuições, na duvidosamente patriótica ação de extraditar a um compatriota para um dos Estados mais controvertidos do cenário internacional.
Pior ainda, o representante do Ministério Público chileno, tentou fazer gols por tabela:
Acrescenta o Ministério Púbilico que foi “provada a realização de uma série de atividades efetuadas pelo núcleo chileno das FARC (leia-se: Comitê de Solidariedade com o Povo Colombiano) e a parte chilena da Coordenadoria Continental Bolivariana” que consistiam na “realização de festas com cobrança de ingressos e consumo; venda de CDs de filmes alusivos à causa das FARC; venda de camisetas e outros objetos; ou a venda da Revista Resistência”, sendo que tudo isso gerava lucros. Em relação a isso, pergunta-se: "Onde foi parar esse dinheiro?” E o mesmo promotor do Ministério Público formula as seguintes hipóteses, que tem como antecedente a afirmação de que as FARC são uma organização terrorista e que as leis colombianas penalizam o terrorismo: “Se o Comitê de Solidariedade Chileno para com o Povo Colombiano é parte das FARC, e os lucros financiavam tal Comitê, então também há financiamento do terrorismo”, e “Se o dinheiro serviu para pagar as viagens de Manuel Olate aos acampamentos das FARC, para que este fizesse vídeos de propaganda ou para acompanhar pessoas que buscavam treinamento militar ou realizavam entrevistas – muitas das quais, como sabemos, eram pagas – há financiamento do terrorismo”.
Ao que o juiz Muñoz responde:
“De qualquer forma, supondo que tais fatos estão compreendidos na alusão genérica do financiamento das FARC e que estas são uma organização terrorista, o certo é que as hipóteses colocadas pelo Ministério Público não têm resposta nos antecedentes, não se estabeleceu que se geraram lucros e que este foi enviado às FARC”.
Para maior esclarecimento, a sentença acrescenta:
“Que anexo a todo o anteriormente exposto, não é um fundamento sério para convencer este Tribunal, ainda que somente para o efeito de formular uma eventual acusação, que com as atividades mencionadas pelo requerimento, venda da Revista Resistência ou as que acrescenta o Ministério Público chileno, realização de festas, venda de CDs, camisetas, broches, bonecas, filmes e fotos em atividades dirigidas para um reduzido número de pessoas e com um mesmo ideal político, como com uma entrevista televisiva, se financiem as FARC, organização que, conforme o próprio senhor Ochoa, chegou a ter mais de 20.000 pessoas em armas e que, atualmente, teria 8.000 efetivos mobilizados – números maiores, segundo a testemunha Parra – devidamente organizados, com recursos e capacidade de enfrentar permanentemente às forças armadas e policiais regulares da Colômbia, com presença e controle em diferentes lugares do território desse país, no qual mentem esta situação que afeta à população já há mais de quatro décadas”.
De onde conclui:
“As ações expressadas e atribuídas a Olate Céspedes, em conceito do Tribunal, tendem a respaldar o projeto e ideal político das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia e efetuar labores de difusão e propaganda de tais ideais, sem que se advirta o dolo direto e intenção manifesta que exige a legislação nacional e internacional para estar diante de um ilícito da natureza da qual é objeto o requerimento de extradição: financiamento das ações terroristas desenvolvidas por integrantes das FARC”.
Mais grave ainda, o representante do Ministério Público chileno mentiu pelo menos duas vezes: ao assegurar que na Colômbia há um processo formal contra Olate, e ao dizer que no Chile não há; quer dizer, processo diferente ao de extradição, o qual levou ao Ministro Muñoz a lhe formular a seguinte resposta:
“O princípio de objetividade e exaustividade que afeta ao Ministério Público deve tê-lo levado a expor a situação com maior provisão de antecedentes”.
Ou seja, a sentença do Ministro Sergio Muñoz nem sequer encontra mérito para enviar os antecedentes para um tribunal chileno, o que significa a proclamação da total inocência de Manuel Olate.
Implicações
Agora devem se ponderar as implicações.
Primeiramente, no plano político, esta sentença representa por acaso o fiasco mais notório de um governo que em seu primeiro ano os acumula em número considerável.
Mais ainda, quando Piñera se envolveu pessoalmente na operação. Em segundo lugar, como se encarregou de assinalar o advogado Carocca, a sentença defende valores democráticos fundamentais, como a liberdade de expressão e a possibilidade de manifestar opiniões políticas sem ser perseguido por isso.
Mas, fundamentalmente, interpela de forma radical o abuso em que incorrem os meios de comunicação monopólicos no Chile, quando consideram ameaçada a injusta ordem social que possibilita sua posição monopólica.
Falando seriamente: a paranóia dos setores dominantes não basta para tipificar delito.