Por
Horacio Duque Giraldo
Sem
que seja fruto de um suposto maquiavelismo revolucionário, como o
elucubra a ultra direita fascista do uribismo, na transição para a
paz surge um poder dual embrionário no qual toma forma o poder das
massas populares com sua potência transformadora. É um poder
nascente que se desdobra em diversas esferas do campo político
nacional.
1.
Considerações preliminares.
Os
diálogos de paz entre o governo do Presidente Santos e as Farc;
entre o Estado colombiano e a insurgência campesina revolucionária
na Mesa de Havana, têm perfilado um momento fundacional da nação.
Porque, queira-se ou não, as conversações para terminar a guerra e
assentar as bases de uma paz estável e duradoura se convertem num
divisor de águas histórico que traça uma fronteira no vir a ser da
sociedade e da nação.
A
potência desdobrada pelos sujeitos sociais e políticos,
configurados no inexorável acontecer dos anos recentes, promoveu a
configuração de novos horizontes sociais, culturais, institucionais
e internacionais. A capacidade democratizadora da multidão, a força
transformadora das massas populares demole as obsoletas estruturas
oligárquicas de dominação e subordinação de milhões de seres
humanos submetidos ao tratamento arbitrário, à exploração, à
mentira, à manipulação e à humilhação.
Gradualmente,
o velho estabelecimento se desmorona. Se derruba, e com ele os
dispositivos de controle e prevalência das camarilhas organizadas
[nacionais, internacionais, regionais, locais e setoriais] no
monopólio da riqueza, das rendas, do trabalho e dos dispositivos da
hegemonia dominante: aparelhos armados, meios de comunicação,
sistemas de educação, regimes jurídicos, redes institucionais e
infraestruturas políticas de diverso alcance.
Quem
queira ler que leia. Quem tenha a lucidez para entender que entenda.
Quem queira interpretar à sua maneira, que o faça, que proceda a
conveniência, designando as coisas de acordo com seus interesses,
egoístas ou comunais. A delirante ultra direita dirá que caminha um
golpe de Estado comunista, Castro-chavista, em suas recentes
palavras. Que acabarão com o Exército; que se eliminará a
propriedade privada; que se fulminará a democracia liberal; que a
liberdade de imprensa morrerá para implantar a verdade comunista;
que a família se dissolverá etc. Enfim, qualquer quantidade de
ocorrências como as que costuma repetir o caudilho de marras
no plano de meter medo e não perder vigência com seu discurso de
guerra e violência.
Porém,
a realidade verdadeira cobra forma. Estamos numa transição do velho
e esgotado domínio oligárquico para uma democracia ampliada, para
uma sociedade em paz com justiça social[1].
Estamos num momento da democracia como autodeterminação das
massas[2].
Estamos
ante a possibilidade de construir um poder independente, paralelo,
autônomo; isto é, uma dualidade de poder, encontrar um caso sui
generis em que, através do próprio Estado e da conquista da
estrutura constitucional superior do país, se pode consolidar e
constituir um poder popular. A questão da dualidade de poderes deve
ser abordada no teórico com a urgência que apresenta a proximidade
no tempo ou no entrecruzamento entre o reformismo burguês santista e
a mudança radical determinada pela insurgência revolucionária. Há
que atuar prevendo guinadas surpreendentes, inesperadas, que,
obviamente, é preciso estimular ou prevenir. Não se pode viver no
vaivém dos acontecimentos e da rotina.
Colapsam
os velhos poderes das rançosas elites patrimonialistas e emergem os
novos poderes populares, os poderes dos movimentos sociais, os
poderes da democracia avançada, ampliada, de autêntica
participação, na gramática dos consensos alcançados nos diálogos
de Havana.
Não
se necessita de muita ciência para perceber que a oligarquia não
cumprirá o pactuado em matéria agrária, política, de cultivos de
uso ilícito e jurídico. Isso o temos por sabido os revolucionários.
A elite irá atirando no cesto de lixo cada documento que se firme.
Neles tudo isto é um simulacro; seu interesse essencial, na luta de
classes substancial em curso, é subjugar, destruir o adversário.
Massacrá-lo. Exterminá-lo. Impedir que avancem as conquistas
populares. Seu objetivo principal é recauchutar o regime social de
acumulação, reforçá-lo, oxigená-lo, relegitimá-lo. Não
pouparão recursos. Nem manobra. Nem manipulação. Virão novos
paramilitarismos noutras aparências e apresentações. Virão
montagens judiciais e penitenciárias. Prosseguirá o jogo midiático.
O Exército, como síntese exacerbada e razão última do Estado, se
reorganizará para acoplá-lo às novas incumbências da geopolítica
imperial: apropriação, saqueio e despojo dos recursos naturais, das
matérias-primas, da riqueza amazônica, da água, do petróleo, do
ouro, da força de trabalho, da riqueza social. A projetada reforma
da doutrina da segurança do Exército corresponde mais a um contexto
continental de reafirmação da hegemonia norte-americana,
apropriação dos recursos naturais e desestabilização de governos
não afins à Casa Branca, tais como Venezuela, Bolívia e Equador.
Esta situação exige umas Forças Militares preparadas para combater
com exércitos regulares e não com guerrilhas agrárias.
A
mudança da doutrina militar que se anunciou há alguns dias pelo
comandante do Exército não responde aos interesses da paz interna,
e sim a uma lógica global pensada e impulsada pelos Estados Unidos.
Durante
o pós-conflito os inimigos identificáveis da paz e do progresso não
serão as guerrilhas comunistas mas sim os campesinos, indígenas,
afrodescendentes e movimentos sociais que se mobilizarão pela defesa
da terra ancestral, da água e do território, tal como passa agora
no Cauca, em Cali, Sumpaz, Putumayo e La Guajira.
Para
desqualificar a estes atores sociais, há que ligá-los com o
discurso da ameaça “castro-chavista”, um discurso hoje mais
comum que nunca devido ao conflito fronteiriço com Venezuela e a
proximidade do acordo com as FARC. A suposta ideologia
cubano-venezuelana serve para encontrar inimigos dentro e fora das
fronteiras[3].
Avançar,
aprofundar, consolidar o conquistado nos diálogos é um desafio
permanente para as forças revolucionárias da mudança. Nisso não
há trégua. Não se pode fazer pausa. Já quisera a elite dominante
que se renunciasse, a partir de baixo, à luta pela mudança radical
do sistema imperante.
Tudo
se remete, enfim, às correlações de força. O que ocorreu até o
momento encarna essa realidade política.
Por
isso, há que determinar e construir a correlação de forças dentro
da “dualidade de poderes” mediante a política de alianças entre
as classes subalternas e intermediárias durante a fase de transição.
Para isso é vital caracterizar: a) a quantidade de força; b) a
Localização da quantidade de forças; c) o movimento da quantidade;
d) a quantidade do poder efetivo que varia segundo a fase ou momento
do processo de poder dual: não é uma construção acumulativa e
unilinear, senão que tem retrocessos e avanços que dependem da
tática e da autonomia do político.
Não
exageramos se sugerimos identificar a construção de um poder dual
na conjuntura. Não descobrimos nada novo sem querer insinuar que se
trata de um vulgar decalque de outros processos.
Obviamente,
há que entender que essa dualidade de poderes ocorre no seio de um
Estado democrático burguês de alto desenvolvimento institucional
num contexto econômico subdesenvolvido. Num país de desenvolvimento
intermediário ou subdesenvolvimento intermediário, porém com uma
grande capacidade de desenvolvimento institucional e de relações
participativas em que uma burguesia emergente na década dos ’60
construiu uma grande aliança intradominante, superando conflitos
internos mediante o consociacionalismo e, por conseguinte, capaz de
criar estruturas de dominação muito estáveis num país que durante
60 anos não tem golpes de Estado porém, sim, uma cruenta guerra
interior.
Isso
para dizer que no enigma da psicologia das nações e no que se pode
chamar o ‘temperamento’ dos Estados, há sempre uma causalidade
decifrável, um ciclo de dados reconhecíveis e situáveis. Pois bem,
para os que estudam o Estado na América Latina, aquela continuidade
ou eixo autoridade-legalidade-democracia que tem se dado em Colômbia,
ainda em meio a mais feroz guerra, foi sempre, pelo menos em sua
aparência preliminar, uma espécie de ‘mistério dado’ da
história regional.
Poder
dual se apresentou na revolução inglesa do século XVII: existem
ali fases de reprodução do poder dual: 1) Londres [burguesia
presbiteriana v/s Oxford) [rei]; 2) Burguesia presbiteriana [fração
no exército parlamentar] v/s Parlamento presbiteriano [burguesia
acomodada e rica]; 3) Levellers v/s Cromwell.
Na
revolução francesa de 1789. Na revolução americana do século
XVIII. Na revolução europeia de 1848. Na Comuna proletária de
Paris. Na revolução soviética de 1917.
Poder
dual ocorreu na revolução mineira boliviana de 1952, na Assembleia
popular de 1971, em La Paz. No Chile de Salvador Allende, em 1973. Se
registra nos processos bolivariano e equatoriano.
O
poder dual não está referido nem a um tempo determinado nem a um
lugar histórico preciso definido. Se fala de “dualidade de
poderes” em toda transição política, de um fenômeno peculiar de
toda crise social e não próprio e exclusivo de alguma revolução
passada.
A
dualidade de poderes não existe necessariamente e em todos os casos;
se produz somente lá onde, no momento da crise histórica, as
classes básicas se veem obrigadas a aceitar uma fase de poder dual,
porque não puderam impor ao ponto seu próprio poder global. É uma
falácia falar por isso, em geral, do poder dual como algo que
deveria existir necessariamente em certo momento; é uma falácia,
além disso, falar de sua construção imprescindível, como
prenúncio do poder global.
O
poder dual é uma realidade política e sociológica nos processos de
transformação revolucionária e mudança radical do Estado e da
sociedade civil. Não obstante, há que evitar a dissolução do
conceito de “dualidade de poderes”, en
tanto que sobre generalización.
De
todas as maneiras, todo poder dual é breve. A temporalidade ou
precariedade é o caráter natural e inevitável deste fato anômalo
porque a unidade é a vontade principal de todo Estado.
As
perguntas que queremos formular-nos a propósito desta fenomenologia
são as seguintes: Emerge, de maneira embrionária, um poder dual na
atual conjuntura auspiciada com os diálogos de paz entre o Estado e
a guerrilha das Farc? O campo de conflito delineado, ademais de
incluir uns sujeitos em tumulto, promove a emergência e existência
de novos poderes sociais, políticos e estratégicos? Se derruba e
colapsa o anacrônico Estado oligárquico e sua velha maquinaria
governamental?
Para
responder a estas perguntas, para sugerir e propor algumas hipóteses
de trabalho político recorro à reflexão e análise de René
Zavaleta Mercado, o pensador marxista boliviano, que, desde sua
experiência na revolução boliviana de 1952 e no governo de
Salvador Allende, em inícios dos anos ’70, abordou este importante
aspecto em sua obra El poder dual.[1979] Problemas de la teoría del
Estado en América Latina. [4]
Como
o que se pretende é a identificação de um poder dual na presente
conjuntura e suas potenciais implicações, incorporo ademais a
explicação de Boaventura de Sousa Santos sobre o poder e as
características que apresenta nestes momentos. Sua construção
teórica a respeito ocorre no debate com as teorias liberais
clássicas do poder e seu enfoque institucional do mesmo e com as
formulações de M. Foucault sobre o tema. De Sousa Santos nos
explica este campo analítico na perspectiva da luta pela emancipação
e a construção de um Estado democrático que coincide com o fim da
guerra civil colombiana e a construção da paz.
Em
tal sentido, há que considerar que o conhecimento da natureza e
estrutura de poder é um passo muito grande para a aquisição de uma
tática correta, de umas palavras de ordem adequadas ao momento.
Sugiro,
adicionalmente, para tratar deste tema, recorrer a uma nova
andaimaria teórica, a qual nos parece mais oportuna para abordar o
contexto de transformações que se apresenta em Colômbia nos anos
recentes; o que supõe ampliar, evidentemente, a visão do político
e do poder a partir do conceito de “campo político” e também
incorporar a noção de “campo de conflito” como o lugar em que
se dirime a disputa pelo poder.
Dussel[5],
a partir de uma análise teórica minuciosa dos momentos do político,
suas dimensões e esferas, expõe uma aproximação ao concreto,
conflitivo e crítico da realidade política e suas possibilidades de
desconstrução e paralela construção de uma ordem política
alternativa. Assume o conceito de campo político, próximo ao de P.
Bourdieu[6],
para delimitar o objeto da e do político e diferenciá-lo dos outros
campos do mundo cotidiano. Daí que, para Dussel, “o campo político
é o espaço de interações, cooperação, coincidências e
conflitos, que remete à esfera das lutas hegemônicas pelo poder”.
Acrescenta que: “Todo campo político é um âmbito atravessado por
forças, por objetos singulares com vontade, e com certo poder. Essas
vontades se estruturam em universos específicos [...] cada sujeito,
como ator, é agente que se define em relação aos outros”.
O
conceito de campo político desloca, ou melhor, amplia a análise
para a sociedade civil e permite identificar a rede de relações de
força ou nodos, em que cada cidadão, cada representante ou cada
organização operam.
Resulta
pertinente ampliar a noção de poder, que não se restringe aos
espaços convencionais de gestão e ação política, senão que
abarca todos os interstícios da vida social. Como sustenta
Foucault[7],
e aprofunda criticamente de Sousa Santos, o poder não se localiza
numa instituição ou no Estado, não se possui, senão que se
exerce, e se encontra disseminado nas distintas dimensões da vida
social e política, em suas casas moleculares. Em todo lugar onde há
poder, o poder se exerce. Ninguém é dono ou possuidor; no entanto,
sabemos que se exerce em determinada direção; não sabemos quem o
tem, porém sabemos, sim, quem não o tem.[8]
O
certo é que a política e a luta pelo poder envolvem uma disputa
sobre o conjunto de significações culturais, e o questionamento às
práticas dominantes relacionadas tanto com os universos simbólicos
como com a redistribuição dos recursos. Com efeito, remete à
constituição de uma nova gramática social capaz de mudar as
relações de gênero, de raça, de etnia e da apropriação privada
dos recursos públicos, e implica uma nova forma de relação entre o
Estado e a sociedade, sustenta de Sousa.
Em
seu caráter potencial, o poder reside no povo [potentia]. De acordo
com Dussel, através da rede de interações e nodos –recorrendo a
um conceito de Manuel Castells-, é capaz de gerar um processo de
tomada de consciência do poder em si e de constituir organizações
para ter acesso ao controle do poder político institucional
[potestas], isto é, orientar-se para a objetivação do poder. De
acordo com o autor, o poder se tem ou não se tem, em nenhum caso se
toma. Para uma aproximação mais perto do funcionamento da ordem
política vigente, o autor recorre ao conceito de sistema, a partir
do qual propõe caracterizar aos sistemas como liberais, socialistas
ou de participação crescente.
Nesse
marco, se situa o conceito de campo de conflito como operador
metodológico[9].
Em primeiro lugar, para discernir entre os conflitos de caráter
estrutural ou hegemônico que implicam situações de crise estatal e
implicam a possibilidade de uma transformação das relações,
daqueles corporativos ou meramente conjunturais cujo impacto e
alcances são limitados, e não afetam a estrutura do poder. Em
segundo lugar, o campo de conflito constitui sujeitos, em episódios
de conflitividade os sujeitos se agregam, articulam, constroem
discursos, podem mudar a qualidade e o alcance da ação coletiva,
enquanto que, em situações históricas em que não existe
conflitividade, ou esta se reduz a questões pontuais, os sujeitos
coletivos tendem a inibir-se e inclusive a desaparecer. Isso permite
abordar aos movimentos em sua multiplicidade e variabilidade, em seus
deslocamentos entre os diversos âmbitos do sistema e do campo
político; assim, sua identidade não é uma essência mas sim o
resultado de “intercâmbios, negociações, decisões e conflitos
entre diversos atores”, afirma Melucci.
Em
todo caso, no do poder dual en
ciernes,
metodologicamente existe a necessidade de deslocar-se do âmbito
político-institucional e situar-se no espaço das relações,
articulações e trânsitos entre Estado e sociedade civil.
O
poder dual.
Zavaleta
define o “poder dual” como a ruptura da unidade de poder natural
do Estado moderno, o qual se caracteriza por essa capacidade de
geração de uma estrutura de dominação, não só institucional
como também social e cultural; isto é, uma estrutura de poder
completa. O poder dual, por conseguinte, é uma forma de romper essa
unidade de poder a partir de formas de luta que vão conformando um
contrapoder ao poder da burguesia. Zavaleta destaca a concepção
leninista sobre a capacidade das forças revolucionárias para
construir um governo suplementar e “paralelo” ao governo formal
da burguesia, dando lugar a um segundo poder.
A
dualidade de poderes consiste em que o que devia ocorrer
sucessivamente ocorre, no entanto, de uma maneira paralela, de um
modo anormal; é a contemporaneidade qualitativa do anterior e do
posterior.
A
dualidade de poderes:
Não
é um poder dual [um único poder com duas caras, uma espécie de
Jano], e sim uma dualidade de poderes: dois tipos de Estado que se
desenvolvem de um modo coetâneo no interior dos mesmos elementos
essenciais anteriores; sua mera unidade é uma contradição ou
incompatibilidade.
O
duplo poder se manifesta na existência dos dois governos: um é o
governo principal, o verdadeiro, o real governo da burguesia, que tem
em suas mãos todos as molas do poder; o outro, que não tem em suas
mãos nenhuma mola do poder, porém que descansa diretamente no apoio
das massas populares, agrárias e operárias.
O
poder dual se descreve como um fato de
facto
e não como um fato legal.
Não
é um poder dividido, mas sim dos poderes contrapostos e enfrentados
[cada polo está ocupado por uma classe social, já é o poder de uma
classe organizada].
Existem
seis formas de Poder dual, de dualidade de poderes:
Na
esfera da economia.
Territorial
ou geográfica.
Intraclasse
dominante.
Semifantasmal
ou falsa dualidade. Serve somente como aparência para esconder uma
dualidade de poderes “verdadeira”, que não pôde se expressar
ainda. Porém, é algo que só se pode conhecer a posteriori; de
outro modo, a encontraríamos em cada contradição aparente, como o
anúncio de um duplo poder todavia inédito.
Nos
órgãos políticos periféricos.
Nos
órgãos políticos superiores (dualidade estatal propriamente
dita).
Características distintivas de
toda situação de dualidade de poderes são, a saber: o fato de ser
uma fase transitória por definição, que supõe a emergência, no
marco de um processo revolucionário, de dois poderes com vocação
estatal: um de caráter principal, o outro embrionário e surgido de
baixo a partir da iniciativa das massas, ambos alternativos e
incompatíveis entre si, onde o que devia se produzir sucessivamente
em termos temporários –revolução democrático burguesa primeiro,
revolução socialista tempos depois-, acontece de uma maneira
paralela/simultânea, gerando, portanto, uma dinâmica de
contemporaneidade qualitativa do anterior e do posterior.
Poder
dual, contra hegemonia e emancipação.
Avançando
nesta indagação do poder dual na transição à paz, recorremos à
reflexão teórica de Boaventura de Sousa Santos sobre o fenômeno do
poder para entender seu complexo emaranhado. [10]
O
autor constrói uma teoria política de caráter
crítico-emancipatório que propõe uma ampliação dos limites e o
alcance da noção de «poder», pondo em questão a natureza do
poder político público tradicionalmente privilegiado pela teoria
política dominante. Este enfoque lhe permite adiantar uma
radiografia que identifica os múltiplos poderes políticos em
circulação e descobre as opressões estruturais entrelaçadas que
se produzem nas atuais sociedades neoliberais.
Desde
há algum tempo, vem identificando em seus trabalhos as bases para a
elaboração de uma nova teoria política capaz de fundar, na época
da globalização neoliberal e sua ressaca social e econômica
mundial, um novo contrato social global mais solidário e inclusivo
que o hoje em crise contrato social da modernidade ocidental.
A
teoria política desenvolvida por este constitui uma opção
teórico-prática contra hegemônica por dois motivos fundamentais. O
primeiro, porque parte da análise crítica da realidade mundial
contestando a liderança da teoria política liberal dominante; o
segundo, porque apresenta caminhos alternativos para a transformação
pessoal e social a partir de posições que se inscrevem no horizonte
de ação política e social de inspiração socialista, que tem como
centro de gravidade a busca dos valores de justiça, igualdade e
solidariedade, que ele complementa com o da diversidade. Seu objetivo
principal é o de criar um «novo sentido comum político» baseado
na potencialização da dimensão participativa da política e na
repolitização global da vida social, contra as dinâmicas
despolitizadoras estimuladas pela teoria política neoliberal
hegemônica.
Da
teoria política contra hegemônica de De Sousa Santos se pode
afirmar, em geral, que é portadora de uma constituição «genética»,
que se pode qualificar de crítica, emancipadora e utópica. É
crítica, em primeiro lugar, porque foge das posturas passivas e
conformistas que assumem –e inclusive celebram- a realidade dada e
suspeita daquelas atitudes dominadas pelo fatalismo histórica, a
crença conservadora e resignada segundo a qual as coisas são como
são e não se pode mudar. Em lugar disso, sua teoria política
crítica assume uma posição de denúncia ao examinar as condições
de vida e pôr em evidência as numerosas relações de poder
incrustradas na crosta das sociedades neoliberais contemporâneas,
busca alternativas viáveis de pensamento e ação, e contribui para
a formação de sujeitos políticos rebeldes, solidários e
participativos que exigem transformações sociais estruturais em
sentido progressista.
É
emancipadora, em segundo lugar, porque está radicalmente
comprometida com os diferentes projetos de luta contra hegemônicos
embandeirados pelos distintos movimentos sociais e políticos que ao
redor do mundo impulsam a posta em marcha de múltiplos processos de
libertação dos grupos subordinados. A finalidade principal destes
processos é a de combater e erradicar o agravamento das injustiças
econômicas, políticas e sociais existentes, fomentando o
melhoramento global da condição humana, e não só o de uma minoria
social privilegiada e o de um reduzido grupo de países. De fato, uma
das principais aspirações que contém sua teoria política contra
hegemônica é a de resgatar as vozes silenciadas que resistem ou, em
palavras do sociólogo, «dar voz aos que não a têm e esclarecer
teoricamente muitas das causas do sofrimento humano neste mundo
globalizado e injusto em que vivemos ».[11].
A
teoria política crítico-emancipatória de Boaventura de Sousa
Santos pode ser considerada, em terceiro lugar, uma teoria política
que desempenha uma função utópica, porque restitui o valor de
conceitos tão insultados pelo realismo político como
«esperança», «imaginação utópica», «mudança» ou
«futuro aberto», entre outros, e está fundada em anseios de uma
mudança de rumo que contêm uma dupla dimensão: a
crítico-descritiva, ao desafiar a ordem de coisas existente e a
propositivo-transgressora, que se concretiza na apresentação de
alternativas críveis que funcionam como horizonte mobilizador da
ação coletiva e individual. Para o filósofo alemão Ernst Bloch, o
teórico contemporâneo mais importante da esperança, o fenômeno
utópico é uma característica constitutiva do pensamento humano que
remete, em todo tempo e condição, à construção de outro mundo
possível mais justo e decente. No pensamento filosófico de Bloch, a
utopia, em seu significado positivo, está relacionada com categorias
como «o novo», o que «ainda não» é, «sonho diurno» e
«consciência antecipadora», entre outras, que adquirem um papel
relevante na sociologia crítica de Boaventura de Sousa Santos. Tal e
como a define formalmente, por «utopia», o pensador português
entende: a exploração, através da imaginação, de novas
possibilidades humanas e novas formas de vontade, e a oposição da
imaginação à necessidade do que existe, só porque existe, em nome
de algo radicalmente melhor pelo que vale a pena lutar e ao que a
humanidade tem direito. Agora, bem, em rigor terminológico, a sua
particular forma de entender a utopia, Santos a chama de heteretopia,
noção cunhada originalmente pelo filósofo francês Michel
Foucault. Com este conceito, que etimologicamente significa «outro
lugar», Santos se refere à descentralização, dentro de um mesmo
lugar, dos projetos e das práticas emancipadoras.
A
originalidade do conceito está no rechaço da ideia de um lugar
único considerado a sede por excelência da emancipação social,
senão que põe o acento numa concepção múltipla e plural da
utopia. Segundo esta visão, no presente existem experiências
concretas –algumas plenamente disponíveis, outras tão somente em
estado latente- que têm possibilidades reais de se desenvolver na
direção de uma sociedade melhor. Porém, estas experiências se
encontram socialmente descentradas, localizadas no centro, ainda que
também nas margens da sociedade. Convém matizar, a fim de evitar
erros de interpretação, que a teoria política contra hegemônica
de Santos não defende, na linguagem de Bloch, uma «utopia
abstrata», a qual está carregada de tons idealistas e se entrega a
uma ilusão atemporal e ilusória situada mais além do porvir
histórico. Pelo contrário, de Sousa Santos advoga pelo que Bloch
chama utopia concreta, a qual não se refere a um sonho impossível
nem irrealizável, senão que está relacionada com o provável ou,
melhor dizendo, com a busca «do real-possível». A utopia concreta
de Santos se refere, pois, a direções, caminhos e tendências
alternativas que são empiricamente realizáveis, porém que ainda
estão amadurecendo, de modo que remetem a um futuro aberto pelo qual
vale a pena lutar.
Os
eixos sobre os quais se articula a teoria política contra hegemônica
de Boaventura de Sousa Santos podem se dividir em cinco, que se
sintetizam do seguinte modo. O primeiro é a elaboração de um marco
analítico amplo que examina de maneira crítica as diferentes e
entrecruzadas relações de poder que se dão nas sociedades do
centro, da periferia e da semiperiferia do sistema mundial
capitalista.
O
segundo é a proposta de reconfigurar a capacidade reguladora do
Estado no contexto da globalização neoliberal. Esta ideia implica o
restabelecimento do debilitado poder regulador do Estado em matéria
econômica e social mediante diferentes linhas de ação, como a
recuperação da função redistributiva da riqueza e dos recursos
públicos, assim como a transformação teórico-prática do Estado
num «novíssimo movimento social», explicação segundo a qual o
Estado é concebido como uma organização política híbrida formada
por um conjunto heterogêneo de fluxos, redes, movimentos e
organizações em que interacionam atores e interesses estatais e não
estatais, tanto em escala local como global, dos quais o Estado é o
elemento coordenador.
O
terceiro eixo temático é o desenvolvimento de uma concepção
substantiva e contra hegemônica da democracia. Esta adquire a forma
de uma democracia radical ou de alta intensidade como complemento
enriquecedor –e democratizador- da democracia representativa
liberal, pela qual toma opção a teoria política hegemônica. O
objetivo principal da democracia radical apresentada por Santos é o
de converter as relações de poder em relações de autoridade
compartilhada.
O
quarto eixo de análise aponta para a crítica das concepções
etnocêntricas dos direitos humanos e sua reconstrução num projeto
intercultural e cosmopolita subalterno através do diálogo
horizontal de culturas.
Em
quinto e último lugar, a transformação da universidade numa
instituição acadêmica e social de caráter intercultural e
inclusiva, regida pelo conhecimento como fator de emancipação e
promotora ativa da democracia epistêmica e da justiça cognitiva.
Todos estes eixos da teoria política de Santos desembocam, por sua
vez, num objetivo comum: a reinvenção no século XXI do danificado
valor da emancipação social.
A
teoria liberal clássica do poder e o enfoque de Foucault.
Para
elaborar sua análise do poder, Boaventura de Sousa Santos entra em
diálogo e discussão com duas grandes concepções sobre o poder e a
política provenientes de orientações epistêmicas e ideológicas
diferentes: a teoria política liberal clássica e o pensamento
político de Foucault.
Uma
cartografia crítica do poder.
As
considerações de Boaventura de Sousa Santos sobre a mecânica e as
formas de poder existentes nas sociedades capitalistas contemporâneas
lhe levam a construir uma teoria política contra hegemônica que
inclui uma nova cartografia do poder político e de seus modos de
produção. Esta análise estrutural do poder tem um duplo objetivo:
o primeiro, na linha de Foucault, consiste em revelar e criticar as
ocultações que produzem os discursos políticos [neo]liberais
dominantes sobre o político; o segundo é o de amplificar os
conceitos de «poder político» e «direito» mais além dos
reduzidos limites que a teoria política liberal clássica
estabelece. A análise cartográfica dos poderes políticos que
circulam nas sociedades capitalistas contemporâneas permite a Santos
identificar distintos sistemas de opressão e elaborar, como proposta
alternativa, um mapa da emancipação social fundado em processos de
democratização radical.
Mais
que do poder, em abstrato, como se fosse uma substância externa,
transcendente e autônoma, Santos fala habitualmente, adotando uma
perspectiva contextual e relacional, de relações intersubjetivas e
intergrupais de poder.
A
partir de uma perspectiva geral, Santos define o conceito de «poder»
como «qualquer relação social regulada por um intercâmbio
desigual». Estes intercâmbios desiguais englobam de maneira virtual
todas aquelas condições –bens materiais, recursos, oportunidades,
símbolos, valores, entre outras- que afetam, e inclusive determinam,
nossa vida pessoal e social. As relações de poder, segundo a
definição anterior, constituem processos de intercâmbio desigual
entre indivíduos ou grupos sociais; são, em outros termos,
conjuntos de relações sociais entre sujeitos iguais na teoria porém
desiguais na prática.
Sob
a influência do pensamento de Foucault, Santos distingue duas
dimensões distintas do poder. Por um lado, o exercício do poder
cósmico, aquele centrado no Estado, hierarquicamente organizado e
que tem uns limites formais estabelecidos por relações burocráticas
e institucionalizadas. Em termos comparativos, se corresponde com o
poder estatal teorizado por Foucault. Pelo outro, e em contraposição,
está o poder caósmico, o poder descentralizado e informal que não
tem uma localização específica, emerge de intercâmbios sociais
desiguais, se exerce desde vários microcentros de poder de maneira
caótica e não tem uns limites predefinidos. É outra maneira de se
referir ao poder disciplinar foucaultiano.
A
cartografia estrutural que Santos desenvolve tem como foco
prioritário de atenção analisar as formas de desigualdade social
que produzem as relações de poder. A ideia chave sobre a qual se
sustenta a análise é que as relações de poder não existem nem
ocorrem de maneira isolada, senão que se produzem em sequência ou
cadeias, de maneira que o poder atua através de complexas redes
políticas e sociais. É o que Santos chama constelações de poder,
definidas como «conjuntos de relações entre pessoas e entre grupos
sociais». Tendo em conta a definição anterior do poder oferecida
por Santos, convém advertir-se de que as constelações de poder não
se baseiam na solidariedade, na cooperação ou no reconhecimento
mútuo entre as pessoas, senão que constituem relações sociais
assimétricas nas quais uma das partes tem a capacidade para tratar
as necessidades e interesses da outra de maneira desigual. Em seu
funcionamento, as constelações de poderes combinam componentes
cósmicos com uma pluralidade de componentes caósmicos.
Santos
tenta encontrar uma via de análise que não reproduza as
deficiências da teoria liberal do poder nem as da concepção
foucaultiana. A respeito da primeira, critica o que denomina a
«ortodoxia conceitual» da teoria política liberal: a ideia segundo
a qual o Estado, em comparação com a vida espontânea e pré-
política própria do estado de natureza, guiada pela conservação
dos direitos naturais individuais e a satisfação dos interesses
privados, é uma construção artificial. É, com efeito, a
explicação que legitima a dicotomia entre o público e o privado,
núcleo duro da ortodoxia conceitual liberal. Dela formam parte
outras importantes dicotomias e ideias, como a cisão entre o
coletivo e o individual, a tensão entre o direito natural e o
direito positivo, a que se estabelece entre a lei e o contrato, a
despolitização da sociedade civil, o confinamento da democracia ao
âmbito público, a redução dos poderes políticos ao poder
político liberal e a do direito ao direito legal estatal.
Com
relação à análise foucaltiana do poder, Santos apresenta duas
críticas. A primeira se refere à visão extremamente fragmentária
e homogeneizante que Foucault tem do poder disciplinar. Para Santos,
o poder caósmico-disciplinar não é tão disperso nem carente de
centro como acreditava Foucault. Se, como afirmava o filósofo, o
poder impregna todos os lados, na realidade não está em nenhuma
parte, daí a necessidade de estabelecer um princípio de
estruturação e hierarquização que sirva como instrumento de
diferenciação interna do poder disciplinar, porque nem todos os
poderes sociais são iguais, nem são idênticas suas lógicas de
ação: o poder caósmico não se exerce da mesma maneira na fábrica,
na família ou na escola. A conceituação de Foucault não
distingue, portanto, as condições específicas de cada um dos
poderes sociais em circulação. A segunda crítica está relacionada
com a concepção monolítica e pura que Foucault tinha do poder
jurídico. O erro de Foucault, na opinião de Santos, está em
identificar equivocadamente o jurídico com o estatal, já que em
multidão de sociedades se pode encontrar corpos normativos não
reconhecidos formalmente pelo Estado, como a legalidade indígena ou
a lei gitana, ordens jurídicas em competição com a lei oficial
estatal. Para Santos, o poder jurídico não é um corpo isolado e
impermeável, mas sim flexível e heterogêneo que estende vínculos
estáveis com outros tipos de poder social. Sustenta, de fato, que
uma das características fundamentais da modernidade ocidental é o
chamado isoformismo estrutural entre o direito e a ciência: a ideia
segundo a qual a ordem social tem que ser o reflexo da ordem
científica, premissa que levou o direito a converter-se numa espécie
de alter ego da ciência moderna. Se trata de fazer ver a
inter-relação que há entre o poder jurídico e o poder
disciplinar, aspecto que a análise de Foucault tinha descuidado.
Critica, ademais, que na teoria foucaultiana do poder é possível
encontrar uma certa desvalorização do poder jurídico estatal,
reduzido a uma forma mais de poder entre a multiplicidade de poderes
sociais, quando, segundo Santos, o Estado continua tendo uma posição
central na configuração das relações de poder.
O
marco analítico que Boaventura de Sousa Santos constitui trata de
cartografar aquelas relações sociais estruturais de poder que geram
injustiça e desigualdade. Este mapa, cuja lente de enfoque abarca as
sociedades capitalistas que formam parte do sistema mundial, não
adotar uma perspectiva nortecêntrica de análise, no sentido de
prestar atenção às dinâmicas globais que afetam não só aos
países do centro do sistema capitalista mundial como também, e
especialmente, as margens do sistema mundial, nos quais se encontram
os países periféricos e semiperiféricos.
5.
Seis espaços/tempo do poder.
Fazendo
uso de uma metáfora espaço-temporal, Santos distingue seis
espaços-tempo estruturais. Internamente, cada um dos espaços-tempo
estruturais está constituído por seis elementos que determinam seu
sentido e alcance: o primeiro é uma unidade de prática ou agência
social, a dimensão ativa do espaço-tempo que organiza a ação
coletiva e individual a partir de um critério principal de
identidade; o segundo se refere a uma forma institucional
privilegiada, que se encarrega de criar pautas, estruturas, modelos e
procedimentos de normalização, assim como de organizar as relações
sociais em sequências rotineiras até conseguir que os modelos
estabelecidos se naturalizem e formem parte do sentido comum; o
terceiro, o forma uma dinâmica de desenvolvimento, que é o
princípio de racionalidade que imprime a orientação da ação
social e define o pertencimento das relações sociais a um ou outro
espaço estrutural; o quarto elemento concerne a um mecanismo de
poder, relativo a formas de intercâmbio desigual entre indivíduos
ou grupos. As diferentes formas de intercâmbio desigual originam
diferentes formas de poder e, ainda que cada uma delas possua um
lugar de ação privilegiado, podem estar presentes em todos os
espaços-tempo. O quinto elemento é uma forma de direito, referente
aos marcos legais e normativos que contribuem para a prevenção e
solução de conflitos; a sexta e última dimensão dos espaços-tempo
das sociedades neoliberais é uma forma de conhecimento que inclui
estilos específicos de lógicas e aspectos retóricos e
argumentativos.
Cada
um dos ditos espaços constitui uma constelação de relações de
poder que [re]produzem intercâmbios desiguais. Estes espaços-tempo
estruturais integram as formas de sociabilidade e hábitos
relacionais hegemônicos na vida cotidiana, daí seu caráter
estrutural, pois desempenham o papel de núcleos configuradores da
ordem social e política imperante nas atuais sociedades capitalistas
do sistema mundial, condicionando o tipo de relações de família,
trabalho, consumo e vizinhança, entre outras. Ainda que entre os
espaços-tempo se estabelecem articulações mútuas, cada um deles
tem uma lógica própria e apresenta um funcionamento autônomo.
Assim, para Santos, as sociedades neoliberais podem ser definidas
como séries de constelações políticas formadas por seis modos
específicos de produção de poder. Além disso, as sociedades
neoliberais também são conjuntos de constelações jurídicas e de
constelações epistemológicas.
Vejamos
o exame das constelações políticas e dos seis modos básicos de
produção de poder, ficando pendente o estudo dos modos de produção
de direito e dos modos de produção de conhecimento.
O
primeiro dos espaços-tempo estruturais que conformam o modelo de
análise da organização das sociedades neoliberais proposto por
Santos é o espaço doméstico, que se pode definir como o conjunto
de relações sociais que se dão entre os membros da família: entre
os cônjuges, entre estes e seus filhos e entre os próprios filhos,
principalmente. O objetivo destas relações é o produzir e recriar
o âmbito do doméstico e do parentesco: a divisão sexual do
trabalho, a gestão dos bens e das responsabilidades familiares,
entre outros aspectos. Neste espaço-tempo, as relações entre
sujeitos se organizam em torno do patriarcado, a forma de poder
dominante. É o sistema de controle e dominação dos machos sobre a
reprodução social, as mulheres enquanto sujeitos individuais e
coletivos. A dominação patriarcal, no entanto, baseada na
autoridade masculina, não se circunscreve ao espaço doméstico,
senão que se estende e invade o resto de espaços por meio de
instituições econômicas, políticas, midiáticas, legais,
culturais, religiosas e militares que desqualificam, discriminam ou
excluem as diferentes maneiras de significar, conhecer e sentir das
mulheres. A unidade de prática social característica deste espaço
é a diferença sexual e geracional.
As
instituições privilegiadas são o matrimônio e a família
—entenda-se a família nuclear, formada por cônjuges de sexo
diferente com filhos legítimos—. O princípio de racionalidade
operativo é a maximização da afetividade. A forma de conhecimento
própria é o familismo ou cultura familiar. Por último, a forma
hegemônica de direito é o direito doméstico.
Em
segundo lugar, se encontra o espaço da produção, no qual se
desenvolvem relações sociais em torno de valores econômicos de
mudança derivados de processos produtivos. As relações que se dão
neste espaço-tempo são de dois tipos: relações de produção
—relações capital-trabalho— e relações na produção
—relações trabalho-trabalho—. O modo de poder próprio é a
exploração, entendida no sentido que lhe atribuía Marx, isto é,
como o intercâmbio desigual de trabalho humano por um salário que
está abaixo de seu valor real. À exploração humana há que
acrescentar a exploração da natureza, concebida pelo capitalismo
como res
extensa
cartesiana: matéria passiva, inerte, quantitativa, desprovida de
dignidade alguma, que pode ser manipulada e explorada ao bel-prazer
[do depredador].
A
unidade de prática social, formam-na a classe social e a natureza. A
dimensão institucional se materializa na fábrica e na empresa. A
dinâmica de desenvolvimento atuante é a otimização do lucro e a
maximização da degradação da natureza. O corpo normativo que rege
estas relações é o direito de produção e a forma epistemológica
que desponta no produtivismo ou, de maneira mais geral, na cultura
empresarial.
O
terceiro lugar é ocupado pelo espaço de mercado, constituído por
relações sociais que têm como base a distribuição e o consumo de
valores de câmbio no livre mercado. A modalidade de poder, adotando
uma perspectiva marxista, é o fetichismo das mercadorias, que guarda
relação direta com a exploração. Com este conceito, Marx fazia
referência à coisificação dos seres humanos e à personificação
dos objetos que se produz na sociedade capitalista. Nos intercâmbios
mercantis, as mercadorias aparecem dotadas de um caráter autônomo,
isto é, não evidenciam as forças produtivas e as relações
sociais de produção necessárias para fabricá-las. Como resultado
disso, o trabalhador percebe o objeto produzido como algo estranho à
sua atividade: é a sensação de alienação que lhe provoca o fato
de ser um mero instrumento alugado para a elaboração de um objeto
que não lhe pertence e que no mercado se relaciona como se fosse uma
pessoa, enquanto as pessoas, na esfera produtiva, o fazem como se
fossem objetos. O fetichismo das mercadorias alude também à falta
de liberdade da qual, segundo Marx, o consumidor padece, já que as
possibilidades de quem compra estão condicionadas pela posição que
ocupa na organização social. Neste espaço-tempo, a unidade de
prática social é o cliente ou consumidor. A instituição social
central é o mercado. O princípio de racionalidade se traduz na
maximização da utilidade e na mercantilização total das
necessidades. A forma jurídica é o direito do intercâmbio e a
forma epistemológica relevante é o consumismo ou cultura de massas.
O
quarto espaço-tempo estrutural é o espaço da comunidade, definido
como a série de relações sociais desenvolvidas em torno da
produção de territórios físicos e universos simbólicos que
favorecem a identificação coletiva. O dispositivo de poder ativo é
a diferenciação desigual, mediante a qual se identifica diferença
com inferioridade: o sujeito ou grupo percebido socialmente como
diferente com relação aos códigos socioculturais imperantes de
regulação é, em virtude de sua diferença empírica —de gênero,
etnia, orientação sexual, biológica, entre outras—, classificado
como inferior. Os processos de diferenciação desigual funcionam
criando mecanismos de identidade —ou inclusão— e diferença —ou
exclusão— utilizados para discriminar entre membros externos e
internos à comunidade. Nesta constelação política, jurídica e
epistemológica, a unidade de prática social é a etnicidade, a
raça, a nação, o povo ou a religião. As instituições de
normalização adotam a forma da comunidade, do bairro, da região,
das organizações populares de base e das igrejas. A racionalidade
que guia a ação é a maximização da identidade. O corpo de leis
que regula estas relações é o direito da comunidade e as formas
dominantes de saber são a cultura local e o conhecimento da
tradição.
O
espaço da cidadania, em quinto lugar, é aquele no qual predominam
as relações de obrigação política vertical, entre o Estado e os
cidadãos. O mecanismo específico de poder é a dominação.
Enquanto está centrada no Estado e é exercida por ele, a dominação
é a modalidade de poder mais fortemente institucionalizada, daí que
seja a única forma de poder que a teoria política liberal clássica
considere como poder político. Na teoria política crítica de
Boaventura de Sousa, por outro lado, o espaço cidadão é uma das
várias formas de poder social. Sua unidade de prática social é a
cidadania. O aparelho institucional é o Estado. O modo de
racionalidade a maximização da lealdade. O marco legal, o
proporciona o direito territorial e as formas de conhecimento são o
nacionalismo educacional e cultural e a cultura cívica.
Em
sexto e último lugar, se encontra o espaço mundial, definido como o
conjunto de relações sociais que a divisão internacional do
trabalho produz nas sociedades nacionais.
A
forma própria de poder é o intercâmbio desigual, no sentido mais
estrito do termo, e se refere às relações de intercâmbios
econômicos desiguais realizados entre o centro, a periferia e a
semiperiferia do sistema mundial. É uma forma de poder muito
estudada pelos teóricos do sistema mundial, do imperialismo
comercial e das teorias da dependência. O Estado-nação é a
unidade de prática social. O emaranhado institucional é formado
pelo sistema interestatal, pelos organismos internacionais e as
organizações supra estatais. O princípio de racionalidade é a
maximização da eficácia. O padrão normativo que regulamenta os
intercâmbios no sistema mundial é o direito sistêmico e a forma
epistemológica que sobressai é a ciência.
6.
Mapa dos lugares da produção e reprodução do poder.
A
partir de suas reflexões sobre a natureza do poder político e sua
dinâmica de funcionamento nas atuais sociedades capitalistas,
Boaventura de Sousa Santos elabora um complexo mapa em que identifica
os lugares estruturais que produzem e reproduzem relações políticas
de poder. É um marco analítico proposto como alternativa teórica
que resulta, por um lado, de uma crítica à teoria liberal do poder
que intenta desativar a dicotomia entre Estado e sociedade civil e
seus corolários —ancoragem do direito e da política no nicho do
Estado, profissionalização da política, distinção entre o
público e o privado et
cetera—
e, por outro, da adesão crítica à concepção foucaultiana do
poder. Num esforço por superar, entre outras deficiências, o
caráter fragmentário e disperso da teoria política de Foucault,
Santos localiza e distribui, de maneira mais específica e detalhada
que aquele, o poder social em seis espaços-tempo estruturais: o
doméstico, o produtivo, o mercantil, o comunitário, o cidadão e o
mundial. Isso lhe permite mostrar que «a natureza política do poder
não é o atributo exclusivo de uma determinada forma de poder,
porém, sim, o efeito global de uma combinação de diferentes formas
de poder e de seus respectivos modos de produção».
Uma
das contribuições mais interessantes da análise do poder que
explica a teoria política contra hegemônica de Boaventura de Sousa
Santos é a ideia segundo a qual as sociedades capitalistas não
devem ser consideradas formações sociais articuladas em torno a um
direito único, o direito estatal, nem a uma política única, a
expressada na relação entre o Estado e a sociedade civil por via da
representação política democrática. Ao contrário, são
concebidas como uma pluralidade de constelações jurídicas,
políticas e epistemológicas relacionadas entre si. Este jogo de
poderes políticos, jurídicos e epistemológicos em relação
recíproca permite a Santos adotar uma perspectiva relacional que
dilui a dicotomia jurídico-política liberal entre o
público-político e o privado-pessoal, evitando assim cair tanto na
«hiperpolitização do Estado» como em seu reverso, a
«despolitização da sociedade civil» causada pela teoria política
liberal.
Ao
assumir como natural a divisão entre o público e o privado, a
teoria política liberal menosprezou a ideia de uma pluralidade de
poderes políticos em circulação social e investiu suas energias em
levar a cabo uma certa democratização do poder estatal enquanto
única forma reconhecida de poder político-público. No entanto, e
como contrapartida, não reconhecer que o poder, mais além do
exercido pelo Estado sobre a cidadania, atua em múltiplos espaços e
se reproduz de muitas maneiras —mediante discursos e práticas que
abarcam desde a violência física até mecanismos simbólicos e
institucionais mais sutis, tais como as leis vigentes, os costumes
herdados e a mentalidade em voga—, conduziu a uma teoria política
cega e conservadora que deixava numa situação de vulnerabilidade
aqueles que no âmbito considerado privado padeciam de atos
discriminatórios. A teoria política liberal não é, neste sentido,
crítica nem emancipatória, pois não denuncia as injustiças de
formações sociais que atormentam aos coletivos mais frágeis,
invisibiliza e legitima as discriminações sexistas, econômicas,
étnicas e culturais e não apresenta elementos para enfrentar as
várias formas de opressão —discriminação, abusos, exploração,
exclusão, falta de oportunidades, entre outras— que condicionam a
vida cotidiana de milhões de pessoas em todo o mundo. Não é,
definitivamente, uma teoria política solidária com os que sofrem
relações políticas de sujeição. Por esta razão, uns dos méritos
mais notáveis da teoria política crítica de Santos é o de ampliar
os limites do poder político e da opressão.
Quando
uma determinada construção social ou relação de poder é
despolitizada, isto é, privatizada e não sujeita a responsabilidade
política, até o ponto de se converter numa realidade naturalizada,
se está evitando que quem a sofre possa emancipar-se de uma situação
injusta.
Desterrar
do âmbito do poder político estatal fenômenos socioculturais hoje
dominantes, como o patriarcado heterossexista ou a produção e o
consumo capitalistas, só contribui para aumentar as desigualdades
entre pessoas, naturalizar relações de subordinação e
desarticular o privado como espaço político para a reivindicação
cidadã. Pode-se dizer que Santos, neste aspecto, apresenta um
conceito de liberdade que conecta com a tradição política
republicana, para a qual a liberdade não é a liberdade liberal como
ausência de interferência, mas sim a emancipação das relações
de dominação despótica ou, como a entende o filósofo Philip
Pettit[12],
a ausência de dominação arbitrária. Chama a atenção, a este
respeito, como o Estado de direito democrático-liberal é capaz de
conviver comodamente com formas despóticas de poder isentas de
qualquer controle democrático. É o que de Sousa Santos conceitua
como fascismos sociais.
São
relações sociais que, ainda que estão formalmente incluídas no
marco do Estado e do contrato social, se regem pela arbitrariedade e
pelo autoritarismo do forte sobre o fraco: «A vulnerabilidade do
indivíduo no fascismo social não resulta [...] da imposição de um
poder estatal tirânico frente ao indivíduo, e senão que, pelo
contrário, do abandono total do indivíduo —muitas vezes
propiciado pelo próprio Estado— de tal maneira que qualquer poder,
de qualquer tipo, pode aspirar a regular o comportamento individual e
a usar os bens públicos a seu bel- prazer». Desde logo, uma teoria
política que convive tranquilamente com uma abundância de
despotismos e escravidões sociais cotidianas é dificilmente
transformadora e deficitariamente democrática.
À
maneira de conclusão.
Digamos,
para concluir, que o debate sobre o poder dual na transformação
sociopolítica alavancada pelos diálogos de paz deve incluir estas
considerações de ordem analítica abordadas ao longo do presente
trabalho. Não é possível avançar na construção de um pacto
final de paz em março de 2016 se não se identificam claramente os
elementos da referida realidade que, evidentemente, a delegação
santista tenta conduzir nos termos de uma mudança política
monitorada em função dos interesses da elite dominante no Estado.
Notas.
[1] La
transición que actualmente ocurre en el campo político a raíz del
proceso de paz bien puede interpretarse a la luz de las elaboraciones
teóricas de Leonardo Morlino, reunidas en el texto “Cómo cambian
los regímenes políticos?” (1985), donde plantea un modelo de
reformas políticas promovidas desde las elites dominantes en el
Estado, las que advertidas de una crisis estructural en el
funcionamiento del Estado implementan procesos de reformas y ajustes
institucionales para no perder el control de la sociedad y las
instituciones. Ver en el siguiente enlace electrónico dicho
texto http://bit.ly/1K4Gplm Este
enfoque no es el que se comparte este trabajo pero hay que abordarlo
para entender cómo y en qué piensa la clase directiva colombiana a
propósito del proceso de paz.
[2] El
concepto de la democracia como autodeterminación de las masas
elaborado por René Zavaleta Mercado es ampliado por Luis Tapias en
su texto “Cuatro conceptos de la democracia” al que se puede
acceder en el siguiente enlace electrónico http://bit.ly/1OxB6kT
[3] Ver
al respecto el siguiente texto con comentarios a la obra de Atilio
Boron sobre Geopolítica e imperialismo en America
Latina http://bit.ly/1LK4t4F
[10] El
análisis del pensamiento de Boaventura de Souza Santos que recogemos
en este trabajo lo recogemos desde la aproximación hecha por Antoni
Jesús Aguilo Bonet en su trabajo El concepto de poder en la
teoría política contra hegemónica de Boaventura de Souza Santos:
una aproximación analítico-critica ver en el siguiente enlace
electrónico http://bit.ly/1GECFqI
[11] Sobre
la obra de Boaventura de Souza Santos citada por Antoni Jesús Aguilo
Bonet en el texto referido en la anterior nota, ver la
siguiente relación de textos
-
«O Estado e os modos de produção do poder social», Oficina do
Centro de Estudos Sociais, núm. 7, Universidad de Coimbra, 1-32.
— «La
transición postmoderna: derecho y política», Doxa: cuadernos de
filosofía del derecho, 6, 223-264.
— Estado,
derecho y luchas sociales, Instituto Latinoamericano de Servicios
Legales y Alternativos (ILSA), Bogotá.
— Toward
a new common sense. Law, science and politics in the paradigmatic
transition, Routledge, Nueva York.
— De
la mano de Alicia: lo social y lo político en la postmodernidad,
Siglo del Hombre Editores/Facultad de Derecho Universidad de los
Andes, Bogotá.
— y
GARCÍA VILLEGAS, M. (eds.), El caleidoscopio de las justicias en
Colombia, tomo I, Siglo del Hombre Editores, Colciencias, Universidad
de los Andes, Universidad de Coimbra-CES, Universidad Nacional de
Colombia, ICANH, Bogotá.
— (Toward
a new legal common sense: law, globalization, and emancipation,
Butterworths LexisNexis, Londres.
— Crítica
de la razón indolente. Contra el desperdicio de la experiencia,
Desclée de Brouwer, Bilbao.
— El
milenio huérfano. Ensayos para una nueva cultura política, Trotta/
ILSA, Madrid.
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