Salim Lamrani | Paris 26/04/2013/ OperaMundi/Brasil
O estado de sítio econômico mais extenso da história voltou a atrair holofotes após a visita de Beyoncé à ilha
A
visita da estrela estadunidense da música Beyoncé e de seu marido Jay-z
à Havana voltou a levantar polêmica sobre a manutenção das sanções
contra Cuba, em vigor há mais de meio século. Eis aqui alguns dados
sobre o mais extenso estado de sítio econômico da história.
1)
A administração republicada de Dwight D. Eisenhower impôs as primeiras
sanções econômicas contra Cuba em 1960, oficialmente por causa do
processo de nacionalizações que o governo revolucionário de Fidel Castro
empreendeu.
2) Em1962, o governo democrata de John F. Kennedy aplicou sanções econômicas totais contra a ilha.
3)
O impacto foi terrível. Os Estados Unidos sempre constituíram o mercado
natural de Cuba. Em 1959, 73% das exportações eram feitas para o
vizinho do norte e 70% das importações precediam deste território.
4)
Agora, Cuba não pode exportar nem importar nada dos Estados Unidos.
Desde 2000, depois das pressões do lobby agrícola estadunidense que
buscava novos mercados para seus excedentes, a cidade de Havana está
autorizada a importar algumas matérias-primas alimentícias, com
condições draconianas.
5)
A retórica diplomática para justificar o endurecimento deste estado de
sítio econômico evoluiu com o tempo. Entre 1969 e 1990, os Estados
Unidos evocaram o primeiro caso de expropriações de suas empresas para
justificar sua política hostil contra Havana. Em seguida, Washington
evocou sucessivamente a aliança com a União Soviética, o apoio às
guerrilhas latino-americanas na luta contra as ditaduras militares e a
intervenção cubana na África para ajudar as antigas colônias portuguesas
a conseguir sua independência e a defendê-la.
6)
Em 1991, depois do desmoronamento do bloco soviético, em vez de
normalizar as relações com Cuba, os Estados Unidos decidiram reforçar as
sanções invocando a necessidade de reestabelecer a democracia e o
respeito aos direitos humanos.
7)
Em 1992, sob a administração de Bush pai, o Congresso dos Estados
Unidos adotou a lei Torricelli, que recrudesce as sanções contra a
população cubana e lhes dá um caráter extraterritorial, isto é,
contrário à legislação internacional.
8)
O direito internacional proíbe toda lei nacional de ser
extraterritorial, isto é, de ser aplicada além das fronteiras do país.
Assim, a lei francesa não pode ser aplicada na Alemanha. A legislação
brasileira não pode ser aplicada na Argentina. Não obstante, a lei
Torricelli é aplicada em todos os países do mundo.
9)
Assim, desde 1992, todo barco estrangeiro – qualquer que seja sua
procedência – que entre em um porto cubano, se vê proibido de entrar nos
Estados Unidos durante seis meses.
10)
As empresas marítimas que operam na região privilegiam o comércio com
os Estados Unidos, primeiro mercado mundial. Cuba, que depende
essencialmente do transporte marítimo por sua insularidade, tem de pagar
um preço muito superior ao do mercado para convencer as transportadoras
internacionais a fornecer mercadoria à ilha.
11)
A lei Torricelli prevê também sanções aos países que brindam
assistência a Cuba. Assim, se a França ou o Brasil outorgarem uma ajuda
de 100 milhões de dólares à ilha, os Estados Unidos cortam o mesmo
montante de sua ajuda a essas nações.
12)
Em 1996, a administração Clinton adotou a lei Helms-Burton que é ao
mesmo tempo extraterritorial e retroativa, isto é, se aplica sobre
feitos ocorridos antes da adoção da legislação, o que é contrário ao
direito internacional.
13)
O direito internacional proíbe toda legislação de ter caráter
retroativo. Por exemplo, na França, desde 1º de janeiro de 2008, está
proibido fumar nos restaurantes. Não obstante, um fumador que tivesse
consumido um cigarro no dia 31 de dezembro de 2007 durante um jantar não
pode ser multado por isso, já que a lei não pode ser retroativa.
14)
A lei Helms-Burton sanciona toda empresa estrangeira que se instalou em
propriedades nacionalizadas pertencentes a pessoas que, no momento da
estatização, dispunham de nacionalidade cubana, violando o direito
internacional.
15)
A lei Helms-Burton viola também o direito estadunidense que estipula
que as demandas judiciais nos tribunais somente são possíveis se a
pessoa afetada por um processo de nacionalizações era um cidadão
estadunidense quando ocorreu a expropriação e que esta tenha violado o
direito internacional público. Veja só, nenhum destes requisitos são
cumpridos.
16)
A lei Helms-Burton tem como efeito dissuadir numerosos investidores de
se instalarem em Cuba por temer represálias por parte da justiça
estadunidense e é muito eficaz.
17)
Em 2004, a administração de Bush filho criou a Comissão de Assistência a
uma Cuba Livre, que impulsionou novas sanções contra Cuba.
18)
Esta Comissão limitou muito as viagens. Todos os habitantes dos Estados
Unidos podem viajar a seu país de origem quantas vezes quiserem - menos
os cubanos. De fato, entre 2004 e 2009, os cubanos dos Estados Unidos
só puderam viajar a ilha 14 dias a cada três anos, na melhor das
hipóteses, desde que conseguissem uma autorização do Departamento do
Tesouro.
19)
Para poder viajar era necessário demonstrar que ao menos um membro da
família vivia em Cuba. Não obstante, a administração Bush redefiniu o
conceito de família, que se aplicou exclusivamente aos cubanos. Assim,
os primos, sobrinhos, tios e outros parentes próximos já não formavam
parte da família. Somente os avós, país, irmãos, filhos e cônjuges
formavam parte da família, de acordo com a nova definição. Por exemplo,
um cubano que residisse nos Estados Unidos não poderia visitar sua tia
em Cuba, nem mandar uma ajuda econômica para seu primo.
20)
Os cubanos que cumpriam todos os requisitos para viajar a seu país de
origem, além de terem de limitar sua estadia a duas semanas, não podiam
gastar ali mais de 50 dólares diários.
21)
Todos os cidadãos ou residentes estadunidenses podiam mandar uma ajuda
financeira a sua família, sem limite de valor, menos os cubanos, que não
podiam mandar mais de 100 dólares ao mês entre 2004 e 2009.
22)
Não obstante, era impossível a um cubano da Flórida mandar dinheiro à
sua mãe que vivia em Havana – membro direto da sua família de acordo com
a nova definição –, se a mãe militasse no Partido Comunista.
23) Em 2006, a Comissão de Assistência a uma Cuba Livre adotou outra norma que recrudesceu as restrições contra Cuba.
24)
Com o objetivo de limitar a cooperação médica cubana com o resto do
mundo, os Estados Unidos proibiram a exportação de equipamentos médicos a
países terceiros “destinados a serem utilizados em programas de grande
escala [com] pacientes estrangeiros” mesmo apesar de a maior parte da
tecnologia médica mundial ser de origem estadunidense.
25)
Por causa da aplicação extraterritorial das sanções econômicas, uma
fabricante de carros japonesa, alemã, coreana, ou outra, que deseje
comercializar seus produtos no mercado estadunidense, tem de demonstrar
ao Departamento do Tesouro que seus carros não contêm nem um só grama de
níquel cubano.
26)
Do mesmo modo, um confeiteiro francês que deseje entrar no primeiro
mercado do mundo tem de demonstrar à mesma entidade que sua produção não
contém um só grama de açúcar cubano.
27) Assim, o caráter extraterritorial das sanções limita fortemente o comércio internacional de Cuba com o resto do mundo.
28)
Às vezes, a aplicação destas sanções toma um rumo menos racional.
Assim, todo turista estadunidense que consuma um cigarro cubano ou um
copo de rum Havana Club durante uma viagem ao exterior, na França, no
Brasil ou no Japão, se arrisca a pagar uma multa de um milhão de dólares
e a ser condenado a dez anos de prisão.
29) Do mesmo modo, um cubano que resida na França, teoricamente não pode comer um sanduíche do McDonald’s.
30)
O Departamento do Tesouro é taxativo a respeito: “Muitos se perguntam
com frequência se os cidadãos estadunidenses podem adquirir legalmente
produtos cubanos, inclusive tabaco ou bebidas alcóolicas, em um país
terceiro para seu consumo pessoal fora dos Estados Unidos. A resposta é
não”.
31)
As sanções econômicas também têm um impacto dramático no campo da
saúde. Com efeito, cerca de 80% das patentes depositadas no setor
médico provêm das multinacionais farmacêuticas estadunidenses e de suas
subsidiárias e Cuba não pode ter acesso a elas. O Escritório do Alto
Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos sublinha que “as
restrições impostas pelo embargo têm contribuído para privar Cuba de um
acesso vital a medicamentos, novas tecnologias médicas e científicas”.
32)
No dia 3 de fevereiro de 2006, uma delegação de dezesseis funcionários
cubanos, reunida com um grupo de empresários estadunidenses, foi expulsa
do Hotel Sheraton María Isabel da capital mexicana, violando a lei
asteca que proíbe todo tipo de discriminação por raça ou origem.
33)
Em 2006, a empresa japonesa Nikon se negou a entregar o primeiro prêmio
– uma câmera – a Raysel Sosa Rojas, jovem cubano de 13 anos que sofre
de uma hemofilia hereditária incurável, que ganhou o XV Concurso
Internacional de Desenho Infantil do Programa das Nações Unidas para o
Meio Ambiente (PNUMA). A multinacional nipônica explicou que a câmera
digital não poderia ser entregue ao jovem cubano porque continha
componentes estadunidenses.
34)
Em abril de 2007, o banco Bawag, vendido ao fundo financeiro
estadunidense, fechou as contas de uma centena de clientes de origem
cubana que residiam na república alpina, aplicando assim, de modo
extraterritorial, a legislação estadunidense em um país terceiro.
35)
Em 2007, o banco Barclays ordenou às suas filiais de Londres que
fechassem as contas de duas empresas cubanas: Havana International Bank e
Cubanacán, depois de a Ofac (Office of Foreign Assets Control, ou
Oficina de Controle de Bens Estrangeiros) do Departamento do Tesouro,
efetuar prisões.
36)
Em julho de 2007, a companhia aérea espanhola Hola Airlines, que tinha
um contrato com o governo cubano para transportar pacientes que padeciam
de doenças oculares no marco da Operação Milagre teve de por fim às
suas relações com Cuba. Com efeito, quando solicitou ao fabricante
estadunidense Boeing que realizasse consertos em um avião, este lhe
exigiu como condição que rompesse seu contrato com a ilha caribenha e
explicou que a ordem era procedente do governo dos Estados Unidos.
37)
No dia 16 de dezembro de 2009, o banco Crédit Suisse recebeu uma multa
de 536 milhões de dólares do Departamento do Tesouro por realizar
transações financeiras em dólares com Cuba.
38) Em junho de 2012, o banco holandês ING recebeu a maior sanção
jamais aplicada desde o início do estado de sítio económico contra Cuba
em 1960. A Ofac, do Departamento do Tesouro, sancionou a instituição
financeira com uma multa de 619 milhões de dólares por realizar, entre
outras, transações em dólares com Cuba, através do sistema financeiro
estadunidense.
39)
Os turistas estadunidenses podem viajar para a China, principal rival
econômica e política dos Estados Unidos, para o Vietnã, país contra o
qual Washington esteve mais de quinze anos em guerra, ou para a Coréia
do Norte, que possui armamento nuclear e ameaça usá-lo, mas não para
Cuba, que, em sua história, jamais agrediu os Estados Unidos.
40)
Todo cidadão estadunidense que viole esta proibição se arrisca a uma
sanção que pode alcançar 10 anos de prisão e um milhão de dólares de
multa.
41)
Depois das solicitações de Max Baucus, senador do Estado de Montana, o
Departamento do Tesouro admitiu ter realizado, desde 1990, apenas 93
investigações relacionadas ao terrorismo internacional. No mesmo
período, efetuou outras 10.683 “para impedir que os estadunidenses
exerçam seu direito de viajar a Cuba”.
42)
Em um boletim, a Gao (United States Government Accountability Office,
ou Oficina de Responsabilidade Governamental dos Estados Unidos) apontou
que os serviços aduaneiros (Customs and Border Protection – CBP) de
Miami realizaram inspeções “secundárias” sobre 20% dos passageiros
procedentes de Cuba em 2007 com a finalidade de comprovar que não
importavam tabaco, álcool ou produtos farmacêuticos da ilha. Por outro
lado, a média de inspeções foi só de 3% para o restante dos viajantes.
Segundo a GAO, este enfoque sobre Cuba “reduz a aptidão dos serviços
aduaneiros para levar a cabo sua missão que consiste em impedir que os
terroristas, criminosos e outros estrangeiros indesejáveis entrem no
país”.
43)
Os ex-presidentes James Carter e William Clinton expressaram várias
vezes sua oposição à política de Washington. “Não deixei de pedir
pública e privadamente a eliminação de todas as restrições financeiras,
comerciais e de viagem”, declarou Carter depois de sua segunda estadia
em Cuba em março de 2011. Para Clinton, a política de sanções “absurda”
tem sido um “fracasso total”.
44)
A Câmara de Comércio dos Estados Unidos, que representa o mundo dos
negócios e as mais importantes multinacionais do país, também expressou
sua oposição à manutenção das sanções econômicas.
45) O jornal The New York Times condenou “um anacronismo da Guerra Fria”.
46) O Washington Post,
diário conservador, aparece como o mais virulento quando se trata da
política cubana de Washington: “A política dos Estados Unidos em relação
a Cuba é um fracasso […]. Nada mudou, exceto que o nosso embargo nos
torna mais ridículos e impotentes que nunca”.
47)
A maior parte da opinião pública estadunidense também está a favor de
uma normatização das relações entre Washington e Havana. Segundo uma
pesquisa realizada pela CNN no dia 10 de abril de 2009, 64% dos cidadãos estadunidenses se opõe às sanções econômicas contra Cuba.
48) De acordo com a empresa Orbitz Worldwide, uma das
mais importantes agências de viagem da internet, 67% dos habitantes dos
Estados Unidos desejam ir de férias para Cuba e 72% acreditam que “o
turismo em Cuba teria um impacto positivo na vida cotidiana do povo
cubano”.
49) Mais de 70% dos cubanos nasceram sob o estado de sítio econômico.
50)
Em 2012, durante a reunião anual da Assembleia Geral das Nações Unidas,
188 países de 192 condenaram pela 21ª vez consecutiva as sanções
econômicas contra Cuba.
(*)
Doutor em Estudos Ibéricos e Latino-americanos da Universidade de Paris
Sorbonne-Paris IV, Salim Lamrani é professor-titular da Universidade de
la Reunión e jornalista, especialista nas relações entre Cuba e Estados
Unidos. Seu
último livro se chama The Economic War Against Cuba. A Historical and
Legal Perspective on the U.S. Blockade, New York, Monthly Review Press,
2013, com prólogo de Wayne S. Smith e prefácio Paul Estrade.
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com apoio do PCB