La
Habana, Cuba, sede dos diálogos de paz, 25 de agosto de 2015
“Amigas,
minhas irmãs… Jamais lhes falarei de resignação, isto é
humilhação,
isto
é covardia. Resignação só por aqueles males que vêm do
inevitável: a morte.
Porém,
para aqueles que vêm de fontes humanas, destinadas a alterar nossa
rota e que pretendem romper a harmonia de justiça e amor que Deus
sempre quis no mundo,
para
esses males, eu vos digo: levantai-vos. Sereis fortes pelo simples
desejo de destruir a iniquidade»
María
Cano.
Ainda
nos inícios do século XX, tal como o constataram muitos estudiosos,
a mulher colombiana, incluindo a da elite, permanecia quase que
absolutamente prisioneira do lar, “dominada por todo tipo de
práticas discriminatórias, distanciada da educação e mergulhada
nos preconceitos que a consideravam inútil para desempenhar qualquer
atividade produtiva ou intelectual.”
Essa
era a triste realidade e, precisamente, a Flor do Trabalho, a
apaixonada e romântica María Cano, mulher inteligente e valorosa,
com seu verbo e entrega à causa dos despossuídos, nos mostrou que a
luta era a rota para se sobrepor à iniquidade. Foi ela uma das
grandes heroínas que abriram o caminho para as transformações
sociais que foram dignificando a mulher ao longo de um difícil
processo que ainda tem complicados trechos que percorrer, sobretudo
vinculando os interesses das mulheres pobres e trabalhadoras que são,
com certeza, as que sofrem as piores condições de marginalização
e opressão.
Com
estas palavras, damos as boas-vindas, companheiras e companheiros,
desejando-lhes o melhor na realização deste evento.
Nesta
segunda jornada de trabalho da Delegação de organizações de
mulheres, que desde o dia de ontem vem realizando atividades que
redundam em benefício do processo de paz e sobretudo em
reivindicação dos assuntos de Gênero, especialmente os
concernentes ao realce, reconhecimento e concretização dos direitos
da mulher, desde a Delegação de Paz das FARC-EP queremos agradecer
a presença e saudar as organizações que chegaram até o cenário
da Mesa de Conversações de Paz em Havana para dar suas ideias,
visões e observações ao propósito louvável da reconciliação
nacional.
Um
abraço de compatriotas lhes damos também como boas-vindas às
representantes da Casa da Mulher: Olga Amparo Sánchez; Sisma Mulher:
Linda Cabrera; Rota Pacífica: Marina Gallego; Corporação Humanas:
Adriana Benjumea; Escola de Estudos de Gênero Universidade Nacional:
Dora Isabel Díaz; Taller Abierto: María Elena Migarro; De Justiça:
Diana Guzmán; Mulher Segue Meus Passos: María Eugenia Cruz;
Profamilia: Silvia Juliana Miranda e de IMP: Ángela Cerón.
Bom
dia, lhes dizemos aos garantidores dos governos de Cuba e Noruega,
agradecendo, ademais, seu apoio à realização deste evento; e
saudações à Delegação do Governo da Colômbia, aos e às
representantes da ONU e demais instituições, e a todas as
personalidades presentes.
Como
posição política e de princípios, as FARC-EP advogamos pela
igualdade de gênero. E, porque somos conhecedores da histórica
discriminação contra a mulher, destacamos a necessidade da luta, de
maneira especial, por seus direitos, considerando, sem dúvida, que é
esta uma parte fundamental da emancipação popular. Para nós
outros, a mulher é inquestionavelmente a garantia de existência da
sociedade e a alma da paz.
Em
tal cenário, pensamos que sempre haverá que ligar as discussões de
gênero com os problemas da desigualdade, da miséria, da falta de
democracia e demais fatores causadores do conflito colombiano, para
não perder de vista que, como pano de fundo, está o fenômeno da
luta de classes. Nos referimos, então, a que dentro da visão de
igualdade de gênero em construção que, com certeza, ao lado do
propósito de alcançar a paz, é o terreno em comum que temos para
avançar juntos, à parte de distanciar-nos de qualquer tipo de
homofobia e de feminismos mal-entendidos que colocam o homem como o
inimigo a combater, apontamos a elaborar um discurso claro sobre a
inter-relação entre gênero e classe, entre estes fatores e o fator
raça, entre sexualidade e corpo etc., a fim de que num termo não
distante estes componentes não fiquem por fora de nossas elaborações
de nova sociedade, onde jamais tenhamos que voltar a falar em meio à
guerra, nem com o drama do luto e das violações aos direitos
humanos, entre os quais se conta o abominável crime das violações
sexuais e a violência de gênero.
Identificando
causas e consequências, constatamos em nossos intercâmbios dados
tão dramáticos e lamentáveis como que, por exemplo, não é
precisamente a guerra a que causa a maior violência de gênero nem
as maiores violências sexuais [1% dos casos]; é no âmbito familiar
e social onde estas ocorrem. Não obstante, as campanhas realizadas a
partir do Estado são mais para gerar matrizes de propaganda de
guerra contra insurgente que para prevenir as afetações resultantes
do mencionado tipo de violência. De fato, mais além que desde o
início do processo de paz os aparelhos acusadores do Estado
colocaram uma gigantesca maquinaria com recursos humanos, técnicos e
econômicos para gerar imputações falazes que pretendem mostrar as
FARC como uma indústria do crime que invade terras, desloca
campesinos, narcotrafica e, entre outros atos detestáveis, viola
mulheres, o que a análise histórica e sem distorção emite é que
a responsabilidade suprema das vitimizações está encabeçada pelo
Estado e é da questionada ordem social vigente de onde emana o caos
reinante. Especificamente para o caso da violência sexual, por
exemplo, os verdadeiros nichos de impunidade estão entre os
paramilitares e os militares. E é isto o que para o caso teria que
resolver, principalmente, num estágio de superação do conflito.
Porque não pode ser que se pretenda construir um prontuário de
sofismas crimináveis contra uma insurgência que durante meio século
exerceu o legítimo direito à rebelião e sem pretender nada de
interesse particular. A impunidade em relação aos crimes de
violência sexual não se acabará se não se aborda as
responsabilidades do paramilitarismo: enquanto que, para 30 mil
casos de paramilitares desmobilizados, só tenham 33 sentenças, e
destas só 16 fazem alusão à violência sexual, desconhecendo-se,
assim, as múltiplas denúncias e casos de atrocidades cometidas em
desenvolvimento de ações de terrorismo de Estado, ao redor das
quais seus artífices não terminam de assumir responsabilidades,
senão que, pelo contrário, aprofundam a violência estrutural.
A
propósito, e ainda que soe um pouco repetitivo, vamos reiterar-lhes,
só à maneira de ilustração, um par de cifras que refletem a
gravidade do que ocorre em torno aos direitos da mulher em nosso
país:
-
Taxa de desemprego em Colômbia: 11.3% para as mulheres e de 7% para
os homens; a informalidade laboral para a mulher, de 60%; e a
desigualdade salarial das mulheres em relação aos homens é de 20%.
-
Violência contra mulheres sindicalistas: 2.695 vítimas [332
assassinatos, 12 desaparecimentos forçados, 9 casos de tortura, 34
atentados, 19 sequestros, 1.418 ameaças, 794 deslocamentos forçados
e 7 detenções arbitrárias] em 2012. [Fonte:
ONU]
Porém
já estamos cansados de narrar estatísticas tristes sobre a
injustiça que golpeia a mulher em Colômbia sem que nada mude,
porque a palavra dolorida, a voz da denúncia, depois de chocar com a
indolência que governa, é arrastada pelo vento, deixando só uma
sonoridade distante, sem esperança.
Esta
situação tem que mudar. A demagogia nestes tempos ofende a
inteligência e a dignidade. De nada servem os discursos floreados
para se
exibir, se
o espírito da mulher continua aí, no solo, estropiado, mostrando
suas feridas sangrentas.
Não
é hora de lamentos, mas sim de luta unida e coesa para que a voz da
mulher e seus direitos seja ouvida pela indiferença do poder.
Por
isso, é vontade desta Delegação de Paz das FARC-EP propor que a
Mesa de Diálogos emita uma declaração de compromissos e chamando a
prevenir e acabar com a discriminação e a violência contra a
mulher em Colômbia, e adotando medidas de desescalada que de maneira
imediata acabem com qualquer forma de violência contra as mulheres
em conflito.
Lamentavelmente,
as normas que reivindicam no âmbito nacional os direitos da mulher
são tanto ou mais formais e retóricas que as declarações e
compromissos internacionais.
Este
panorama deve variar radicalmente, e na luta por superar estes males
não podemos ficar ancorados na proclamação de uma igualdade formal
que só permita sobreviver ou que nunca se materializa, tal como
ocorre em relação aos proclamados e universais direitos humanos,
que para as imensas maiorias ficam elevados ao mundo do abstrato.
Isto
não pode ser mais assim. Para a reflexão, trazemos a referência
que já faz alguns anos muitas organizações sociais, entre as quais
se conta a Via Campesina, assinalam que o sistema de direitos humanos
tem lacunas que definitivamente impedem proteger de forma eficaz os
direitos dos campesinos, e especialmente das mulheres: não se
reconhece a grande maioria de seus direitos e os poucos que se
consagram são violados com impunidade.
Em
várias de suas observações públicas, o Comitê para a eliminação
da discriminação contra a mulher tem insistido em que as mulheres
rurais sejam objetivo prioritário dos programas de desenvolvimento e
que o Estado recorra, se é necessário, à cooperação e
assistência internacional. Pois bem, se as vítimas estão no centro
deste processo, e dentro delas as mulheres têm preponderância e
papel primordial, é hora de proceder com as soluções e frear os
abusos que continuam revitimizando ou produzindo novas vítimas, como
ocorre com muitas das políticas neoliberais que, por exemplo, em vez
de proteger o acesso das mulheres campesinas e suas famílias à
terra, o que propicia são as atividades empresariais privadas, os
megaprojetos e os subsequentes deslocamentos forçados.
Então,
toda esta reflexão para dizer que a luta pela igualdade de gênero
deve nos colocar no caminho de reivindicar as mulheres empobrecidas e
oprimidas pelo sistema que as submete a múltiplas formas de
exploração e de humilhação, seja na fábrica, na maquiladora, na
mendicância, no prostíbulo, em suas correrias de deslocada ou de
migrante, em sua condição de branca pobre, de índia na miséria,
de negra na marginalidade, ou em sua condição de deficiente física,
ou de trabalhadora precarizada, ou de lésbica reprimida ou
estigmatizada por um ambiente machista e patriarcal, homofóbico e
lesbofóbico.
Menção
especial merece a violência padecida pelas guerrilheiras, uma vez
capturadas em combate ou em operações policiais, sendo estas
submetidas a maus tratos na maioria dos casos, inclusive a tortura.
Igualmente, a maus tratos na maioria dos casos, inclusive a tortura.
Igualmente, uma vez ingressadas em estabelecimentos penitenciários
são maltratadas e sofrem umas condições de reclusão ainda mais
dura que o resto das prisioneiras, pelo simples fato de serem
guerrilheiras. Pedimos às organizações de mulheres que se
interessem pela situação das guerrilheiras prisioneiras nos
cárceres colombianos que denunciem os maus-tratos, torturas e
discriminações que sofrem e que se dirijam às autoridades pedindo
que imediatamente cessem estas práticas.
Enfim,
são muitos os aspectos por analisar e sacar conclusões: certamente
não o faremos em curto prazo, porém temos que iniciar o caminho,
pondo de lado o feminismo e a reivindicação de gênero que decline
em vitimismo. Temos que criticar as exclusões e reconhecer a suas
vítimas, porém apresentando um discurso alternativo e afirmativo
que abra horizontes, atuando como sujeitos de mudança; uma mudança
que não derive naquela que transforma a divisão sexual do trabalho
numa divisão que, ademais de sexual, é racista e de classe, que é
o que ocorre em muito no âmbito das trabalhadoras domésticas, por
exemplo, ou aquele em que homens e mulheres se libertam da carga de
trabalho no lar, porém colocando-se a outras mulheres e homens mais
pobres ou racialmente discriminados.
DELEGAÇÃO
DE PAZ DAS FARC-EP
--
Equipe
ANNCOL - Brasil