Considerado
um dos escritores mais importantes do século 20, o colombiano
Gabriel García Márquez nasceu em Arataca, em 1927, e teve destacada
atuação como jornalista. O artigo que reproduz sua conversa com
Hugo Chávez foi originalmente publicado na revista Cambio,
em fevereiro de 1999, publicação da qual foi um dos proprietários.
O autor de Cem Anos de Solidão,
uma das obras mais lidas e traduzidas em todo o mundo, recebeu o
Nobel em 1982
Durante
voo entre Havana e Caracas, Gabriel García Márquez conversa com
Hugo Chávez, recém-eleito presidente
Ao entardecer, Carlos Andrés Pérez
desceu do avião que o trazia de Davos, na Suíça, e se surpreendeu
ao ver na plataforma o general Fernando Ochoa Antich, seu ministro da
Defesa. "O que est acontecendo?", perguntou-lhe intrigado.
O ministro o tranquilizou, com argumentos tão confiáveis que o
presidente não foi para o Palácio de Miraflores, e sim para a sua
residência oficial, La Casona. Começava a dormir quando o mesmo
ministro da Defesa o despertou por telefone para informá-lo de um
levante militar em Maracay. Mal havia chegado a Miraflores quando
explodiram as primeiras descargas de artilharia.
Era o dia 4 de fevereiro de 1992. O
coronel Hugo Chávez Frías, com seu culto litúrgico pelas datas
históricas, comandava o assalto de seu posto improvisado no museu
histórico La Planicie. Prez compreendeu então que seu único
recurso era o apoio popular e se dirigiu aos estúdios da Venevisión
para falar ao país. Duas horas depois o golpe militar tinha
fracassado. Chávez se rendeu, com a condição de que também
permitissem a ele dirigir-se ao povo pela televisão.
O jovem coronel mestiço, com sua
boina de paraquedista e seu admirável talento de orador, assumiu a
responsabilidade pelo movimento. E seu discurso foi um triunfo
político.
Cumpriu dois anos de prisão até ser
anistiado pelo presidente Rafael Caldera. Entretanto, muitos
partidários — e inimigos políticos — compreenderam que seu
discurso da derrota foi o primeiro da campanha eleitoral que o levou
à Presidência da República menos de nove anos depois.
O presidente Hugo Chávez Frías me
contava essa história no avião da Força Aérea venezuelana que nos
levava de Havana a Caracas, há algumas semanas. Havíamos nos
conhecido três dias antes em Havana, durante sua reunião com os
presidentes Castro e Pastrana, e a primeira coisa que me impressionou
foi o poder que emanava de seu corpo de granito. Tinha a cordialidade
espontânea e a graça mestiça de um autêntico venezuelano. Ambos
tentamos nos ver outra vez, mas isso não fora possível devido aos
compromissos; foi, portanto, no avião para Caracas que conversamos
sobre sua vida e seus projetos.
Foi uma experiência enriquecedora
para um repórter de folga. À medida que me contava sua vida, eu ia
descobrindo uma personalidade que não correspondia em nada à imagem
de déspota que tínhamos formado através dos meios de comunicação.
Era outro Chávez. Qual dos dois seria o real?
O principal argumento contra ele
durante a campanha de 1998 havia sido seu passado recente de
conspirador e golpista. Mas a história da Venezuela digeriu mais de
quatro. Começando por Rómulo Betancourt, lembrado — com ou sem
razão — como o pai da democracia venezuelana, que derrubou Isaías
Medina Antarita, um antigo militar democrata que tentava limpar seu
país dos 36 anos da ditadura de Juan Vicente Gómez. Seu sucessor, o
escritor Rómulo Gallegos, foi derrubado pelo general Marcos Pérez
Jiménez, que ficaria quase 11 anos no poder. Este, por sua vez, foi
derrubado por toda uma geração de jovens democratas, o que
inaugurou o período mais longo de presidentes eleitos.
Escapulário da sorte
O golpe de fevereiro de 1992 parece
ser a única coisa que saiu mal para o coronel Hugo Chávez Frías.
No entanto, ele o viu por um lado positivo, como um revés
providencial. É sua maneira de entender a sorte, ou qualquer coisa
que emane do sopro mágico que tem comandado seus atos desde que veio
ao mundo em Sabaneta, estado de Barinas, a 28 de julho de 1954, sob o
signo do poder: Leão. Chávez, católico convicto, atribui sua sorte
ao escapulário de mais de cem anos que leva ao pescoço desde
pequeno, herdado de um bisavô materno, o coronel Pedro Pérez
Delgado, um de seus heróis tutelares.
Seus pais sobreviviam a duras penas
com salários de professores primários, e ele teve que ajudá-los
desde os nove anos, vendendo doces e frutas nas ruas. Às vezes ia de
burro visitar sua tia materna em Los Rastrijos, um povoado vizinho. A
seus olhos, era uma verdadeira cidade porque tinha uma rede elétrica
que fornecia duas horas de luz no início da noite, e uma parteira
que trouxe ele e seus quatro irmãos ao mundo. Sua mãe queria que
ele fosse padre, mas ele só chegou a coroinha e tocava os sinos com
tanta graça que todo o mundo o reconhecia por seu jeito de fazê-los
repicar. “Esse que toca é Hugo”, diziam. Entre os livros de sua
mãe encontrou uma enciclopédia providencial, cujo primeiro capítulo
o seduziu de imediato: “Como vencer na vida”.
Era, na realidade, um receituário de
opções, e ele tentou quase todas. Fã das pinturas de Michelangelo
e de seu David, ganhou seu primeiro prêmio como pintor aos 12 anos,
numa exposição regional. Como músico, tornou-se indispensável nas
festas de aniversário e nas serenatas, tanto por seu talento com o
violão como por sua voz. Como jogador de beisebol chegou a ser um
catcher [apanhador] de primeira. A opção militar não estava na
lista, nem a ele havia ocorrido por sua própria conta, até que lhe
contaram que o melhor modo de chegar às grandes equipes de beisebol
era ingressando na academia militar de Barinas.
Estudou ciência política, história
do marxismo e leninismo. Apaixonou-se pelo estudo da vida e da obra
de Bolívar, seu “leão” maior, e aprendeu todos os seus
discursos de cor. Seu primeiro conflito com a política real foi por
ocasião da morte de Allende, em setembro de 1973. Chávez não
entendia porque os militares deviam depor Allende, se os chilenos o
haviam eleito. Pouco depois, o capitão de sua companhia lhe deu a
tarefa de vigiar um filho de José Vicente Rangel, que acreditavam
ser comunista. “Veja as voltas que a vida dá”, disse Chávez,
com uma gargalhada. “Agora, o pai dele é meu ministro das Relações
Exteriores!”
Mais irônico ainda é que em sua
formatura Chávez recebeu o sabre de oficial das mãos do presidente
que, 20 anos depois, tentaria derrubar: Carlos Andrés Pérez. “Além
disso”, disse eu, “você esteve a ponto de matá-lo”. “De
maneira nenhuma”, protestou Chávez. “A ideia era instalar uma
Assembleia Constituinte e voltar aos quartéis.”
Desde o primeiro momento, dei-me
conta que era um narrador nato. Um produto íntegro da cultura
popular venezuelana, que é criativa e poética. Tem um grande
sentido do tempo e uma memória quase sobrenatural, que lhe permite
recitar de cor poemas de Neruda ou Whitman, e páginas inteiras de
Rómulo Gallegos.
Desde muito jovem, descobriu por
acaso que seu bisavô não fora um assaltante de estradas, como dizia
sua mãe, e sim um guerreiro lendário dos tempos de Juan Vicente
Gómez. Foi tal o entusiasmo de Chávez que ele decidiu escrever um
livro para purificar sua memória. Vasculhou arquivos históricos e
bibliotecas militares e percorreu a região de povoado em povoado
para reconstituir os itinerários do bisavô através de depoimentos
dos sobreviventes. Desde então o incorporou ao altar de seus heróis
e começou a levar o escapulário protetor que havia sido seu.
Início do movimento
Num desses dias, Chávez atravessou a
fronteira, sem se dar conta, pela ponte de Arauca, e o capitão
colombiano que revistou sua bagagem encontrou inúmeras razões para
acusá-lo de espionagem: levava uma câmera fotográfica, um
gravador, papéis secretos, fotos da região, um mapa militar com
gráficos e duas pistolas do Exército. Os documentos de identidade,
como ocorre com os espiões, podiam ser falsos.
A discussão se prolongou por várias
horas num posto militar onde o único quadro era um retrato de
Bolívar a cavalo. “Eu já não aguentava mais”, me contou
Chávez, “pois quanto mais explicava, menos ele entendia”. Até
que lhe ocorreu a frase salvadora: “Veja como é a vida, meu
capitão: há menos de um século éramos um mesmo exército e esse
que nos está olhando neste quadro era o chefe de nós dois. Como
posso ser um espião?”. Comovido, o capitão começou a dizer
maravilhas da Grande Colômbia e os dois terminaram a noite bebendo
cerveja de ambos os países num bar em Arauca. Na manhã seguinte,
com uma dor de cabeça mútua, o capitão devolveu a Chávez seus
instrumentos de pesquisa e se despediu com um grande abraço na
metade da ponte internacional.
“Foi nessa época que comecei a
compreender que alguma coisa de errado se passava na Venezuela”,
disse Chávez. Tinha sido designado comandante de um pelotão de 13
soldados e uma equipe de comunicação na província de Oriente, para
liquidar os últimos redutos guerrilheiros. Numa noite em que chovia
muito, um coronel do serviço secreto com uma patrulha de soldados e
alguns supostos guerrilheiros — famintos e esqueléticos —
pediu-lhe para pernoitar na caserna. Por volta das dez da noite,
quando Chávez começava a dormir, ouviu do quarto contíguo gritos
dilacerantes. “Eram os soldados que estavam batendo nos presos com
bastões de beisebol envoltos em trapos para que não ficassem
marcas”, contou Chávez. Indignado, exigiu que o coronel lhe
entregasse os presos ou que se fosse imediatamente dali. “No dia
seguinte me ameaçaram com um inquérito e corte marcial por
desobediência”, disse, “mas acabaram só me mantendo por um
tempo sob observação”.
Alguns dias mais tarde teve outra
experiência ainda mais marcante. Um helicóptero militar aterrissou
no pátio do quartel com um carregamento de soldados recém-feridos
numa emboscada da guerrilha. Chávez carregou nos braços um soldado
com várias balas no corpo, apavorado. “Não me deixe morrer,
tenente”... dizia-lhe. Só deu tempo para o colocar numa
ambulância. Outros sete morreram. Nessa noite, desacordado em sua
rede, Chávez se perguntava: “O que é que eu faço aqui? De um
lado, camponeses vestidos de militares torturam camponeses
guerrilheiros, e do outro, camponeses guerrilheiros matam camponeses
vestidos de militares. A essas alturas, com a guerra terminada, não
tem o menor sentido ficarem uns atirando contra os outros”. E aí
concluiu, no avião que nos levava a Caracas: “Foi essa a minha
primeira crise existencial”.
Discurso de improviso
No dia seguinte, acordou convencido
de que seu destino era fundar um movimento. E o fez aos 23 anos, com
um nome evidente: Exército Bolivariano do Povo da Venezuela. Seus
membros fundadores: cinco soldados e ele, com a patente de
subtenente. “Com que finalidade?”, perguntei. Muito simples,
disse ele: “Com a finalidade de nos preparamos se acontecesse
algo”. Um ano depois, já como oficial paraquedista de um batalhão
de blindados em Maracay, começou a conspirar seriamente. Mas fez
questão de frisar que usava a palavra conspiração só no sentido
figurado: convocar voluntários para uma tarefa comum.
Essa era a situação a 17 de
dezembro de 1982, quando ocorreu um episódio inesperado que Chávez
considera decisivo em sua vida. Era já capitão no 2º Regimento de
paraquedistas e oficial do serviço secreto. Quando menos esperava, o
comandante do regimento, Ángel Manrique, o escalou para pronunciar
um discurso diante de 1.200 homens, entre oficiais e tropa. À uma da
tarde, com o batalhão já reunido no campo de futebol, o mestre de
cerimônias o anunciou. “E o discurso?”, perguntou o comandante
do regimento ao vê-lo subir à tribuna sem papel. “Eu não
escrevi”, respondeu Chávez. E começou a improvisar. Foi um
discurso breve, inspirado em Bolívar e Martí, mas com um toque
pessoal sobre a situação de injustiça na América Latina, 200 anos
após a independência.
Os oficiais o escutaram impassíveis.
Entre eles, os capitães Felipe Acosta Carle e Jesús Urdaneta
Hernández, simpatizantes de seu movimento. Irritado, o comandante
repreendeu-o: “Chávez, você parece um político”. Felipe
Acosta, que estava a dois metros de distância, dirigiu-se ao
comandante: “O senhor está equivocado, meu comandante. Chávez não
é um político. É um capitão da nova geração, e quando alguns
poderosos corruptos o escutam, mijam-se nas calças”.
Depois disso, Chávez foi a cavalo
com os capitães Felipe Acosta e Jesús Urdaneta até Samán del
Guere, a dez quilômetros de distância, onde repetiram o juramento
solene de Simón Bolívar no monte Aventino. “No final, é claro
que fiz algumas mudanças”, disse. Em lugar de “quando tivermos
quebrado as correntes que nos oprimem pela vontade do poder
espanhol”, disseram: “Até que tenhamos quebrado as correntes que
nos oprimem e oprimem nosso povo por vontade dos poderosos”.
Desde então, todos os oficiais que
se incorporavam ao movimento secreto tinham que fazer esse juramento.
Durante anos fizeram congressos clandestinos, com representantes
militares de todo o país. “Durante dois dias fazíamos reuniões
em lugares escondidos, estudando a situação do país, fazendo
análises e contatos com grupos civis, de amigos. Em dez anos”, diz
Chávez, “conseguimos fazer cinco congressos sem sermos
descobertos”.
A tragédia do Caracazo
Para o comandante Chávez, o
acontecimento mais importante de sua vida foi o Caracazo, a
sublevação popular que devastou Caracas em 1989. Ele sempre repete:
“Napoleão disse que uma batalha se decide num segundo de
inspiração do estrategista”. A partir desse pensamento, Chávez
desenvolveu três conceitos: um, o momento histórico; o segundo, o
minuto estratégico; e três, o segundo tático.
Aconteceu um drama tremendo, e eles
não estavam preparados. “Ou seja”, conclui Chávez, “o minuto
estratégico nos surpreendeu”. Referia-se à insurreição popular
de 27 de fevereiro de 1989: o Caracazo. Carlos Andrés Pérez acabava
de assumir a presidência com uma votação caudalosa e era
inconcebível que, em apenas 20 dias, se pudesse produzir uma revolta
tão violenta. “Na noite do dia 27, eu ia para a universidade, onde
fazia um curso de doutorado, e parei na caserna de Tiura para
abastecer o carro”, me contou Chávez minutos antes de pousar em
Caracas. “Vi a tropa saindo e perguntei a um coronel: ‘Para onde
vão esses soldados?’. Estavam levando os homens da Logística, que
não estão treinados para combate, muito menos para combate de rua.
Eram recrutas assustados com seus próprios fuzis. Por isso insisti
com o coronel: ‘Para onde vai essa gente?’. E o coronel
respondeu: ‘Para a rua. A ordem é acabar com os tumultos do jeito
que for, e eu vou fazê-lo’. E então eu disse: ‘Mas, coronel, o
senhor já pensou o que pode acontecer?’. E ele respondeu: ‘Escute
bem, Chávez, trata-se uma ordem e não há nada para fazer. Seja o
que Deus quiser’”.
Chávez se lembra que estava com
muita febre naquela noite por causa de uma crise de rubéola. Quando
ligou o carro, viu um soldado que vinha correndo com o capacete
caído, o fuzil dependurado e a munição desarrumada. “Aí eu
parei e o chamei”, conta Chávez. “Ele entra, todo nervoso,
suando, um jovenzinho de 18 anos. E eu pergunto: ‘Para onde você
está correndo?’. ‘Eu perdi o meu pelotão. Eles vão ali na
frente, naquele caminhão. Me ajude, major, me leve até lá.’
Alcancei o caminhão e perguntei ao motorista: ‘Para onde vocês
estão indo?’. E ele disse: ‘Eu não sei de nada. Acho que
ninguém sabe’”.
Chávez respira fundo e quase grita,
asfixiando-se na angústia da lembrança daquela noite terrível:
“Você sabe, eles mandam os soldados para a rua, assustados, com um
fuzil e quinhentos cartuchos. Eles atiravam sobre tudo que se movia.
Varriam as ruas à bala, as favelas, os bairros populares. Foi um
desastre! Milhares de mortos! Entre eles, Felipe Acosta. E meu
instinto me diz até hoje que o mandaram matar”, afirma Chávez.
“Foi o minuto que esperávamos para agir.” Desde então,
começaram a preparar o golpe de Estado que fracassaria três anos
depois.
O avião pousou em Caracas por volta
das três da manhã. Vi pela janela o lago de luzes daquela cidade
inesquecível. O presidente se despediu com um grande abraço
caribenho e um convite implícito: “Nos vemos aqui em 2 de
fevereiro” [dia da posse do primeiro mandato de Chávez].
Enquanto se afastava, rodeado por militares condecorados e amigos de
primeira hora, tremi com a inspiração de que havia viajado e
conversado à vontade com dois homens diferentes. Um, a quem a sorte
oferecia a oportunidade de salvar seu país. E o outro, um
ilusionista, que poderia passar à história como apenas mais um
déspota.
* Tradução por Le Monde
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