O sonho do ministro Joaquim Barbosa pode virar pesadelo
Por Jacinto Ramatis*
Negros que escravizam e vendem negros na África, não são meus irmãos
Negros senhores na América a serviço do capital, não são meus irmãos
Negros opressores, em qualquer parte do mundo, não são meus irmãos…
(Solano Trindade)
O racismo, adotado pelas oligarquias brasileiras para justificar a
exclusão dos negros no período de transição do modo de produção
escravista para o modo de produção capitalista, foi introjetado pelos
trabalhadores europeus e seus descendentes, que aqui aportaram
beneficiados pelo projeto de branqueamento da população brasileira,
gestado por aquelas elites.
Impediu-se, assim, alianças do proletariado europeu com os históricos
produtores da riqueza nacional, mantendo-os com ações e organizações
paralelas, sem diálogos e estratégias de combate ao inimigo comum.
Contudo, não há como negar que o conjunto de organizações sindicais,
populares e partidárias, além das elaborações teóricas classificadas
como “de esquerda”, sejam aliadas naturais dos homens e mulheres
negros, na sua luta contra o racismo, a discriminação e a
marginalização a que foram relegados.
No campo oposto do espectro ideológico e social, as organizações
patronais, seus partidos políticos e as teorias que defendem a
exploração do homem pelo homem, que classificamos de “direita”, se
baseiam na manutenção de uma sociedade estamental e na justificativa
da escravidão negra, como decorrência “natural” da relação
estabelecida entre os “civilizados e culturalmente superiores
europeus” e os “selvagens africanos”.
É equivocada, portanto, a frase de uma brilhante e respeitada filósofa
negra paulistana de que “entre direita e esquerda, eu sou preta”, uma
vez que coloca no mesmo patamar os interesses de quem pretende
concentrar a riqueza e poder e àqueles que sonham em distribuí-la e
democratizá-la. Afirmação esta, que pressupõe alienação da população
negra em relação às disputas políticas e ideológicas, como se suas
demandas tivessem uma singularidade tal que estariam à margem das
concepções econômicas, de organização social, políticas e culturais,
que os conceitos de direita e esquerda carregam.
As elites brasileiras sempre utilizaram indivíduos ou grupos, oriundos
dos segmentos oprimidos para reprimir os demais e mantê-los sob
controle. Capitães de mato negros que caçavam seus irmãos fugidos,
capoeiristas pagos para atacarem terreiros de candomblé, incorporação
de grande quantidade de jovens negros nas polícias e forças armadas,
convocação para combater rebeliões, como a de Canudos e Contestado,
são exemplos da utilização de negros contra negros ao longo da nossa
história.
Havia entre eles quem acreditasse ter conquistado de maneira
individual o espaço que, coletivamente, era negado para o seu povo,
iludindo-se com a idéia de que estaria sendo aceito e incluído naquela
sociedade. Ansiosos pela suposta aceitação, sentiam necessidade de se
mostrarem confiáveis, cumprindo a risca o que se esperava deles,
radicalizando nas ações, na defesa dos valores dos poderosos e da
ideologia do “establishment” com mais vigor e paixão do que os
próprios membros das elites. A tragédia, para estes indivíduos – de
ontem e de hoje -, se estabelece quando, depois de cumprida a função
para a qual foram cooptados são devolvidos à mesma exclusão e
subalternidade social dos seus irmãos.
São inúmeros os exemplos deste descarte e o mais notório é a história
de Celso Pitta, eleito prefeito da maior cidade do país, apoiado pelos
setores reacionários, com a tarefa de implementar sua política
excludente.
Depois de alçado aos céus, derrotando uma candidata de esquerda que,
quando prefeita privilegiou a população mais pobre – portanto, negra –
foi atirado ao inferno por aqueles que anteriormente apoiaram sua
candidatura e sua administração. Execrado pela mídia que ajudou a
elegê-lo, abandonado por seus padrinhos políticos, acabou processado e
preso, de forma humilhante, de pijama, algemado em frente às câmeras
de televisão. Morreu no ostracismo, sepultado física e politicamente,
levando consigo as ilusões daqueles que consideram que a questão
racial passa ao largo das opções político/ideológicas.
A esquerda, por suas origens e compromissos, em que pese o fato de
existirem pessoas racistas que se auto intitulam de esquerda,
comporta-se de maneira diversa: foi um governo de esquerda que nomeou
cinco ministros de Estado negros; promulgou a lei 10.639, que inclui a
história da África e dos negros brasileiros nos currículos escolares;
criou cotas em universidades públicas; titulou terras de comunidades
quilombolas e aprofundou relações diplomáticas, econômicas e culturais
com o continente africano.
Joaquim Barbosa se tornou o primeiro ministro negro do STF como
decorrência do extraordinário currículo profissional e acadêmico, da
sua carreira e bela história de superação pessoal. Todavia, jamais
teria se tornado ministro se o Brasil não tivesse eleito, em 2003, um
Presidente da República convicto que a composição da Suprema Corte
precisaria representar a mistura étnica do povo brasileiro.
Com certeza, desde a proclamação da República e reestruturação do STF,
existiram centenas, talvez milhares de homens e mulheres negras com
currículo e história tão ou mais brilhantes do que a do ministro
Barbosa.
Contudo, nunca passou pela cabeça dos presidentes da República – todos
oriundos ou a serviço das oligarquias herdeiras do escravismo – a
possibilidade de indicar um jurista negro para aquela Corte. Foi
necessário um governo de esquerda, com todos os compromissos inerentes
à esquerda verdadeira, para que seu mérito fosse reconhecido.
A despeito disso, o ministro Barbosa, em uníssono com o Procurador
Geral da República, considera não haver necessidade de provas para
condenar os réus da Ação Penal 470. Solidariza-se com as posições
conservadoras e evidentemente ideológicas de alguns dos demais
ministros e, em diversas ocasiões procura ser “mais realista do que o
próprio rei”.
Cumpre exatamente o roteiro escrito pela grande mídia ao optar por
condenar não uma prática criminosa, mas um partido e um governo de
esquerda em um julgamento escandalosamente político, que despreza a
presunção de inocência dos réus, do instituto do contraditório e a
falta de provas, como explicitamente já manifestaram mais de um dos
integrantes daquela Corte.
Por causa “desses serviços prestados” é alçado aos céus pela mesma
mídia que, faz uma década, milita contra todas as iniciativas
promotoras da inclusão social protagonizadas por aquele governo,
inclusive e principalmente, àquelas que tentam reparar as
conseqüências de 350 anos de escravidão e mais de um século de
discriminação racial no nosso país.
O ministro vive agora o sonho da inclusão plena, do poder de fato, da
capacidade de fazer valer a sua vontade. Vive o sonho da aceitação
total e do consenso pátrio, pois foi transformado pela mídia em um
semideus, que “brandindo o cajado da lei, pune os poderosos”.
Não há como saber se a maximização do sonho do ministro Joaquim
Barbosa é entrar para a história como um juiz implacável, como o mais
duro presidente do STF ou como o primeiro presidente da República
negro, como já alardeiam, nas redes sociais e conversas informais,
alguns ingênuos, apressados e “desideologizados” militantes do
movimento negro.
O fato é que o seu sonho é curto e a duração não ultrapassará a
quantidade de tempo que as elites considerarem necessário para
desconstruir um governo e um ex-presidente que lhes incomoda
profundamente.
Elaborar o maior programa de transferência de renda do mundo,
construir mais de um milhão de moradias populares, criar 15 milhões de
empregos, quase triplicar o salário mínimo e incluir no mercado de
consumo 40 milhões de pessoas, que segundo pesquisas recentes é
composto de 80% de negros, é imperdoável para os herdeiros da Casa
Grande. Contar com um ministro negro no Supremo Tribunal Federal para
promover a condenação daquele governo é a solução ideal para as
elites, que tentam transformá-lo em instrumento para alcançarem seus
objetivos.
O sonho de Joaquim Barbosa e a obsessão em demonstrar que incorporou,
na íntegra, as bases ideológicas conservadoras daquele tribunal e dos
setores da sociedade que ainda detém o “poder por trás do poder” está
levando-o a atropelar regras básicas do direito, em consonância com os
demais ministros, comprometidos com a manutenção de uma sociedade
excludente, onde a Justiça é aplicada de maneira discricionária.
A aproximação com estes setores e o distanciamento dos segmentos a
quem sua presença no Supremo orgulha e serve de exemplo, contribuirão
para transformar seu sonho em pesadelo, quando àqueles que o
promoveram à condição de herói protagonizarem sua queda, no momento
que não for mais útil aos interesses dos defensores do “apartheid
social e étnico” que ainda persiste no país.
Certamente não encontrará apoio e solidariedade nos meios de esquerda,
que são a origem e razão de ser daquele que, na Presidência da
República, homologou sua justa ascensão à instância máxima do Poder
Judiciário. Dos trabalhadores das fábricas e dos campos, dos moradores
das periferias e dos rincões do norte e nordeste, das mulheres e da
juventude, diretamente beneficiados pelas políticas do governo que
agora é atingido injustamente pela postura draconiana do ministro, não
receberá o apoio e o axé que todos nós negros – sem exceção –
necessitamos para sobreviver nessa sociedade marcadamente racista.
*Jacinto Ramatis é professor, mestre e doutorando em História
Econômica pela USP e presidente do INSPIR – Instituto Sindical
Interamericano pela Igualdade Racial.
Fonte: Conversa Afiada