CARTA DE UM PEÑI PARA PIÑEIRA
Por: PEDRO CAYUQUEO
Senhor Presidente:
Perguntar-se-á quem sou e por que lhe escrevo. Também, certamente, a quem represento. Entrando na matéria, sou um jornalista mapuche, originário de um reduto do setor de Entre Rios, nas proximidades de Temuco. Há sete anos dirijo um jornal que trata de dar conta dos acontecimentos mapuches no sul do Chile e Argentina. Nisso trabalhamos e nisso persistiremos durante o seu mandato. Saiba que lhe escrevo para rememorar uma antiga tradição epistolar que nossos avós mantiveram com seus antecessores do Palácio de La Moneda. O senhor, desde 11 de março, é o 40º presidente do Chile, iniciando a contagem a partir de Blanco Encalada e deixando de lado – a nobreza obriga – a diretores supremos e ditadores. Creia-me que até o presidente Aníbal Pinto, nossos ancestrais trocaram correspondência com frequência com os primeiros mandatários. Na verdade nada raro. Tratava-se, naquele então, de dois países distintos e a diplomacia prevalecia com seus códigos. Deixe-me contar-lhe que ditas cartas serviram para algo mais do que saudações protocolares e o mero anuncio do envio ou retirada de algum embaixador nosso na capital. Serviram também para relembrar, aos nossos e aos seus, da vigência de antigos pactos: o principal deles o respeito do rio Bio-Bio como fronteira. É que, sem a Internet e menos ainda o supervalorizado Twitter, tais cartas constituíram uma valorosa ferramenta de comunicação. Foram, como suspeitava neste ponto, um verdadeiro canal de diálogo político e de abordagem de controvérsias.
“Senhor Presidente Montt. Tive uma reunião com meus caciques e também com meus outros aliados e me facultaram escrever nossas palavras neste papel... Seu intendente Villalón voltou a atravessar o rio Bio-Bio para roubar, outra vez, animais com canhões e muitos aparatos para a guerra, trazendo, dizem, mil e quinhentos homens, e tudo o que fez foi queimar casas, plantações, aprisionar famílias, arrancando os filhos dos peitos das mães que corriam para se esconder nas montanhas, mandar cavar as sepulturas para roubar jóias de prata, matando até mulheres cristãs... Digo-lhe isto para que saibas que é verdade... Se este intendente voltar a atravessar o rio Bio-Bio com gente armada, já não poderei conter os índios e não sei qual dos campos ficará mais ensanguentado... Presidente, abra o seu peito e consulte as minhas razões. Eu sei que o senhor tem muita gente e cavaleiros. Pode mandar um deles para falar de paz... Minha nação nunca fará a paz com Villalón... Espero sua resposta”. Magñil Bueno, Cacique Geral. 21 de Setembro de 1860.
Senhor Sebastián, esse era o conteúdo de muitas das cartas que aqueles que o antecederam no mando da República recebiam desde o sul. Se tiver alguma duvida da autenticidade, rogo-lhe verificar a edição do jornal El Mercúrio, de Valparaiso, de 13 de maio de 1861. Não a encontrará em nenhuma banca de jornal de esquina, mas na Biblioteca Nacional, para ser mais exato, na seção “Jornais”, sala de Microfilmagens. Saiba que o último a receber uma delas foi seu colega Aníbal Pinto. Tal seria sua má compreensão da leitura que onde se dizia “deter os abusos” ele entendeu “cargas os obuses”. E assim ele o fez Senhor Sebastián. Mal terminou a guerra do Pacifico, invadiu com seu exército vencedor o nosso território, arrasando literalmente com tudo que estava a sua frente. O Senhor Viu “Avatar”, o último filme de James Cameron? Pelo atribulada que é a campanha eleitoral, provavelmente não. Mas certamente mais de um dos seus netos deve ter falado dele. Se não, eu o recomendo. Dizem que o Presidente Evo Morales gostou muito. Num destes dias tire uma folga e vá ao cinema mais próximo. Sugiro que o veja com os óculos 3D, um tanto inapropriados para o seu alto cargo, mas efetivos na hora de apreciar em toda sua dimensão o alcance da crueldade e da cobiça.
O Senhor perguntar-se-á, o quê tem a ver os mapuches com um filme de Hollywood? Pois saiba que muito. E não somente os mapuches, mas também os aymaras, quéchuas, shuar, sarayakus, maias, mixtecos, cheyennes e um longo etc. É que qualquer história de invasão e despojo de território, desde “Pocahontas” até o sofisticado “Avatar”, não faz mais do que relembrar-nos a magnitude de nossa própria tragédia histórica, o roteiro de nossas próprias existências como povos. Foi o que aconteceu com os mapuches após aquela carta mal lida pelo Presidente Pinto: invasão, assassinatos, roubos e pilhagem. Táticas de terra arrasada, chegada de colonos estrangeiros e confinamento dos sobreviventes em campos de refugiados. Tais lugares foram batizados de “redutos”. Entretanto, numa arremetida de originalidade, a Lei Indígena os rebatizou, nos anos 90’, como “comunidades”. Haja amostra de humor negro! Não lhe parece? São aqueles lugares cheios de pinheiros e eucaliptos que, certamente, o Senhor visitou durante a sua campanha por Lumako, Angol, Collipulli ou Los Sauces. Está lembrado? Tente relembrar; os índios lonkos octogenários com quem tomou um copo de bebida Cola; os garotos com penas e descalços que dançaram simpáticos ritmos na sua frente; as mocinhas com suas jóias de prata e cintos coloridos que o atenderam sob o sol escaldante; aquele molho de pimenta típico (pebre), as sopaipillas (massa frita redondinha e achatada feita com abobora), o churrasco de cordeiro...
Está lembrando? Pois devia Senhor Sebastián. Segundo as estatísticas, grande parte dos seus membros o favoreceram com o voto no segundo turno da eleição. E é que, para além da demagogia essencialista de alguns, o esquerdismo de outros e o indigenismo de uns quantos, os mapuches – especialmente na zona rural – no final das contas são bastante conservadores. Assim era uma tia, que em paz descanse, e também grande parte dos meus tios, filhos de prósperos comerciantes de gado que por obra e graça do colonialismo acabaram como pequenos agricultores de subsistência. Minha tia, se estivesse viva, teria votado no senhor, tenho certeza. Lembro do dia em que faleceu Pinochet e sua infinita tristeza por “aquele cavaleiro”. “Matou gente, mas puxa como era generoso”, comentava naquele dia, relembrando sem duvida as pensões assistenciais, os títulos individuais de domínio e um ou outro ladrão de gado boiando pelo rio Cautin abaixo. Meu tio, orgulhoso e obstinado como poucos, certamente o teria enxotado com os cachorros caso o senhor tentasse se aproximar dele meio metro. Longe do conservadorismo da minha tia, o velho sempre foi atraído pelas idéias socialistas. Virou comunista lendo livros, como costumava dizer. Mas não na Universidade, mas roubando horas ao sono depois de longas jornadas carregando sacos nas fazendas da região do Maule. Tal vez por isso admirava a Allende. Tal vez por isso, no dia em que Pinochet morreu, bebeu sozinho e muito contente, uma garrafa de vinho tinto sob as estrelas.
Acontece que existem mapuches para todos os gostos, Senhor Sebastián. Alguns mais à direita, outros à esquerda e um ou outro vagando pelo centro. Como em toda sociedade, como em todos os povos, pois isso é o que somos e não como um regimento. Um povo senhor Sebastián, um coletivo com história, que carrega – às vezes humildes, às vezes orgulhosos – com seus heróis e suas vitórias, com seus vilões e suas derrotas. Somos um povo senhor Sebastián, por mais que a bendita Constituição nos negue tal caráter e que a bancada parlamentaria da sua coligação somente nos tolere como folclore ou atrativo de feiras de costumes. É tão difícil reconhecer que somos uma nação? Não deveria sê-lo, em absoluto. Somos um dos povos indígenas mais numerosos do continente, compartilhamos padrões culturais, uma determinada forma de ver o mundo, um território que sentimos como nosso lar e, como se fosse pouco, uma língua que mesmo ameaçada, está longe de desaparecer. “O que é o nacional? Quando ninguém entende uma palavra do idioma que falas”, sentenciou o dramaturgo Johann Nestroy. Se o senhor e eu somos chilenos, ramtueyu kimnieymi ñi nütram, fewla? chem pieyu, chem pimi? tami tuwün ka inche trawüniekelayngün, wingkangeymi ka mapuchengen, ka mollfüng nieyiñ. Feley kam Felelay? Em grandes rasgos é disto que trata o conflito. De falar e não entendermos. De dialogar e não poder (ou querer) escutar o outro. De observar-nos e de vocês não nos reconhecerem como iguais em nossa diferença.
Existem jovens do meu povo que tampouco o querem escutar nem reconhecer o senhor, Senhor Sebastián. Cansados de atropelos, cansados de falsas promessas, optaram pelo caminho da rebeldia. Em média, não passam dos 25 anos. E muitos deles já cumprem longas condenas de cadeia em diversas prisões do sul. Se os acusa de terrorismo em base a uma singular legislação, herdada da ditadura militar e que homologa no Chile a derrubada de um avião comercial em Manhattan, a explosão de um carro bomba em Bagdá e a queima de um galpão com fardos em Ercilla. Surrealismo puro, deve concordar comigo. Todos eles sonham com o País Mapuche dos nosso avós. Sentem falta dele, sentem saudades, o reivindicam e escrevem nos muros. Três jovens pagaram com sua vida este atrevimento. Balas policiais perfuraram pelas costas a dois deles, agentes do Estado, cujos salários são pagos pelos impostos de todos os chilenos, foram os responsáveis. Todos gozam não só de absoluta impunidade, mas também dos aplausos cúmplices dos seus superiores civis e militares. Será que o senhor pode evitar que outros jovens derramem seu sangue nos campos do sul? Não os minimize, não os ignore, não os estigmatize. Tente dialogar com eles. Suas idéias, por minoritárias que sejam, segundo as pesquisas de Liberdade e Desenvolvimento, constituem parte da argila com que hoje modelamos nosso futuro. Não desencadeie a turba sobre eles.
Pode ficar tranquilo, pois não será o senhor o primeiro governante a afrontar tal desafio. Há muitos exemplos em outras latitudes. Em seu momento, o fascismo espanhol diante das reivindicações vascas, galegas e catalães, optou pela incongruente lógica dos calabouços. Na outra fronteira ideológica, o mesmo caminho seguiram os hierarcas soviéticos ao esmagar com as pás mecânicas da integração as reclamações nacionais de chechenos, armênios e ossetios, dentre outros. Saiba o senhor que ambos os extremos fracassaram na sua tentativa. Espanha, sacudida por Franco, encontrou finalmente, nas “Autonomias Regionais”, um caminho para pacificar os espíritos e dar saída política a uma reclamação que interpelava diariamente sua democracia. Nostálgicos do ditador prognosticavam com isso o fim do Estado espanhol. Nada disso ocorreu, é claro. É verdade também que há aqueles que nunca aprendem. Os mandatários russos, por exemplo. E é que, após a queda da URSS, a histórica abordagem militar do chamado “problema das nacionalidades” continuou intacto. Os tanques e a força bruta continuaram marcando nos anos 90 a agenda do dia em muitas das paupérrimas repúblicas do Caucaso. Acontece, senhor Sebastián, até os nossos dias. Basta sintonizar, de tarde, Telesur ou CNN. Ou ainda, Chilevisión depois do programa Yingo, se assim o preferir.
Reconheço que uma pergunta permanece no ar. A quem represento? Na verdade a ninguém Senhor Sebastián. Nem ao meu reduto, nem ao partido mapuche em que milito, nem ao jornal que dirijo. Muito menos ao meu povo. Não represento a ninguém e, por isso mesmo, a todos. A todos aqueles que lendo estas linhas sintam que se faz necessário uma abordagem distinta do mal chamado “conflito mapuche”, estranha denominação criada pelo jornal El Mercurio e que deixa de fora, olimpicamente, o componente chileno de toda esta injuria. A todos aqueles que acreditam ser possível construir um novo tipo de relação entre vocês e nós, em que a diversidade de línguas, conhecimentos e culturas não seja sinônimo de ameaças ou antessala de pancadarias. Não represento a ninguém, senhor Sebastián, mas acredite que são muitos aqueles que compartem comigo o conteúdo desta missiva, que não é outro que dar uma oportunidade à palavra. Ou às letras. Consultado de por que os mapuches jamais tinhamos construído grandes pirâmides ou grandiosos templos, um grande poeta do meu povo respondeu que o nosso principal monumento era a palavra. Pode ser que também o sejam as letras, que é a forma em que as palavras dos nossos antepassados se transformaram em cartas para continuar existindo. Letras alheias, Senhor Sebastián, mas incorporadas pela necessidade dos seus em colonizar e dos meus em resistir.
Neste ponto me despeço do Senhor. Tome cuidado, não espero resposta oficial nenhuma da sua parte. Certamente estará ocupado em inumeráveis assuntos do Estado. Tampouco fantasio com alguma noticia de recebimento desta. Ficaria satisfeito com que algum dos seus assessores, algum dia, a mencione, mesmo que fosse como uma anedota passageira.
Atentamente
Pedro CAYUQUEO
*PEÑI: Irmão de um varão