A pele da serpente
por Alejandro Nadal
O próximo presidente dos Estados Unidos deverá lutar para que se cumpram os três ideais que, segundo John Maynard Keynes, deve satisfazer todo sistema económico: eficiência, justiça social e liberdade pessoal. Nas últimas décadas os EUA foram-se afastando inexoravelmente destes ideais. Pelos seus reflexos anacrónicos e pela sua ignorância, McCain na presidência aprofundaria o desastre nestas três dimensões. Obama poderia ser, efectivamente, um factor de mudança. Mas, para isso, ele próprio deve completar uma transformação importante.
Nos EUA a eficiência económica deixou há muito de ser a chave do crescimento. Desde a década de 1970, a evolução da produtividade converteu-se em tema de preocupação. Indústrias que haviam sido a chave do desenvolvimento estado-unidense (a siderurgia, a automotriz, a de máquinas-ferramenta e a química) começaram a atrasar-se em relação aos seus competidores que inexoravelmente foram-lhe arrebatando parcelas do mercado mundial. Décadas mais tarde, a indústria aeronáutica e a de semicondutores começaram a experimentar os mesmos sintomas de atraso frente aos seus competidores na Europa e na Ásia.
O atraso na competitividade minou a posição do sector externo dos Estados Unidos. Em 1971 Washington abandonou o sistema Bretton Woods, reconfigurando o sistema financeiro mundial. Isso precipitou o desmantelamento das restrições à livre circulação do capital, abrindo as portas à especulação e à expansão do capital financeiro que marcou o último terço do século passado.
Nos Estados Unidos, o sector manufactureiro foi derrotado pelo capital especulativo. Os empresários estado-unidenses concentraram-se nos rendimentos de curto prazo e em cozinhar estados financeiros de importantes companhias e bancos. Tal como outras economias na sua etapa crepuscular, os quadros empresariais esqueceram as inovações industriais e converteram-se em grandes inventores de produtos financeiros.
A crise financeira é a demonstração mais clara da profunda irracionalidade do capitalismo estado-unidense. Se além disso considerarmos os indicadores sobre consumo energético, de papel, alumínio, cimento, hidrocarbonetos, água e outros, observamos que os EUA são efectivamente uma colossal sociedade do desperdício. Contudo, não há uma política para reverter isto e encaminhar essa caminho por uma trilha menos danosa para o meio ambiente.
E quanto à justiça social e a liberdade pessoal? O próximo presidente enfrenta uma estrutura social altamente inequitativa que deve reverter porque constitui uma ameaça para a viabilidade do capitalismo estado-unidense. Mas a crise acabou por comprometer o grau de liberdade em política fiscal. O resgate do sistema financeiro (que não está claro ser irá funcionar) custou demasiado. A magnitude do saldo fiscal deficitário é uma restrição que impede o lançamento de grandes iniciativas no terreno social, educativo e científico-tecnológico.
No âmbito da liberdade pessoal, Obama reverterá a tendência à destruição das liberdades individuais, a começar pela aceitação da tortura como uma prática aceitável na "luta contra o terrorismo". Neste terreno Obama poderia conseguir avanços espectaculares em pouco tempo. Em contraste, McCain mostrou a suas cartas com a nomeação da senhora Palin, personagem que mostra o lado mais sinistro do proto-fascismo nos Estados Unidos.
Regressando ao terreno económico, a luta pelo programa de Obama começou há meses. Robert Rubin, um dos mais influentes representantes do mundo financeiro, aproximou-se dele quando Hillary perdeu a postulação. Rubin foi director da Goldman Sachs antes de ser secretário do Tesouro sob Clinton. A partir desse posto convenceu o presidente a apoiar a lei Gramm-Leach e a Lei da modernização do mercado de commodities. Estas leis aperfeiçoaram a desregulamentação financeira nos Estados Unidos e catalisaram o que hoje constitui a pior crise do capitalismo estado-unidense.
Se Keynes houvesse aprofundado a sua análise do capitalismo contemporâneo teria previsto que a mistura de instabilidade (inerente aos mercados capitalistas) e incerteza (sobre a composição de passivos dos grandes agentes económicos) gera um cocktail explosivo. Ao incorporar na sua Teoria Geral o impacto pleno do capitalismo financeiro e especulativo, talvez houvesse concluído que esse sistema não pode chegar à eficiência.
Segundo a economista Joan Robinson, Keynes estava a mudar de pelo enquanto escrevia a sua Teoria Geral, e nunca acabou de despir-se plenamente da sua antiga envoltura. Por isso não pôde fazer uma crítica plena do capitalismo (e por isso foi recuperado pelo que Robinson denominou o keynesianismo bastardo). Lástima. Mas isso nos deixa uma lição importante: na ciência e na política, a crítica não pode ser a meias tintas.
Essa é a lição que Obama deveria aprender. A crítica incompleta traduz-se na recuperação pelo inimigo. Ao chegar à presidência, Obama teria que livrar-se da pele velha o quanto antes. Deverá dar atenção à economia real, dentro de um esquema de responsabilidade social e procurar uma melhor relação com o meio ambiente. Se não o fizer, a lógica financeira e os amigos de Rubin acabarão por comê-lo, a ele e às reformas que apenas começou a articular.
O artigo encontra-se em La Jornada.