Uma dívida (oficialmente) ilegal
EQUADOR - País é o primeiro a finalizar uma auditoria dos empréstimos públicos a pedido do próprio governo federal
OS EMPRÉSTIMOS de dinheiro realizados pelo Equador entre 1976 e 2006 não trouxeram qualquer benefício à nação, apenas ao sistema financeiro internacional. Essa é a uma das conclusões do relatório final da Comissão para a Auditoria Integral do Crédito Público (Caic), no Equador. O trabalho da comissão teve início em julho de 2007, quando, por decreto, o presidente Rafael Correa determinou a auditoria da dívida pública interna e externa.
É a primeira vez que um processo como esse se deu oficialmente, ou seja, com apoio governamental. “Foi pioneira essa iniciativa. Creio que, agora, o papel dos outros países da América Latina é prestar muita atenção ao que foi apurado lá e procurar adotar a mesma medida”, avalia Maria Lúcia Fatorelli, auditora da Receita Federal e integrante da Auditoria Cidadã da Dívida. Ela foi convidada pelo governo equatoriano para participar do Caic.
Segundo Fatorelli, a exemplo do que foi apurado no caso brasileiro, as dívidas equatorianas estão repletas de ilegalidades, o que torna o endividamento ilegítimo. “Encontramos irregularidades que tenho certeza que, com o aprofundamento da investigação, vão permitir uma atitude bastante firme por parte do governo do Equador”, aponta.
Exemplos de ilegalidades
Para facilitar o estudo, a Caic se dividiu em quatro subcomissões: dívida comercial, bilateral, multilateral e interna. Fatorelli participou da primeira, na qual alguns casos preocupantes apareceram. “A principal irregularidade que encontramos é que, desde 1983, não entrou de fato nenhum recurso no Equador. Essas dívidas foram feitas em negociações no exterior entre os próprios bancos privados, que apenas transferiam o ônus do pagamento ao Estado. A condição básica para cobrar a dívida é que a quantia tenha sido dada ao devedor. Como cobrar juros e comissões de uma dívida assim?”, questiona Fatorelli. Outro caso ocorreu no final da década de 1980, durante o Plano Brady – sobrenome do então presidente do Banco Central estadunidense –, quando o Fundo Monetário Internacional (FMI) fez empréstimos para conter a crise no continente latino-americano, trocando os títulos da dívida. O plano foi implementado em 22 países, inclusive no Brasil. “Houve exigência da compra de garantias. No caso do Equador, essas garantias correspondiam a 72% do valor de mercado da dívida na época, então, pagou-se à vista esses 72%, mas ainda se continuou devendo 100% desse valor. E o país seguiu pagando juros e comissões sobre esse valor integral. Em 2000, quando houve outra troca desses títulos, essa garantia não serviu de nada”, esclarece Fatorelli. Em troca, o FMI ainda impôs aos países o aumento de impostos, tarifas de serviços públicos, desvalorização da moeda e redução de gastos governamentais.
Padrão
O Caic, em seu relatório, também aponta uma série de desrespeitos a acordos e leis internacionais no sistema de empréstimos. Fatorelli conta que, mesmo que parte dessa responsabilidade seja das elites econômicas e dos governos desses países, as negociações eram – e ainda são – feitas de maneira muito desigual, com imposição de contratos e cláusulas. Os credores, sempre amparados nas reuniões pelo FMI, pressionaram países como o Equador com ameaças de sanções, o que é um padrão no tom dos acordos com países pobres. Por isso, acredita-se que o caso equatoriano está longe de ser isolado. “Estamos verificando que os processo são semelhantes; não é um processo de livre iniciativa de cada país, mas uma imposição, não é coincidência”, opina Fatorelli, que vê como essencial a iniciativa de outros países. “Para ter mais força, claro que uma atitude deveria ser tomada conjuntamente. Até para equilibrar as forças, porque os bancos internacionais se articulam”, diz. De acordo com dados da Auditoria Cidadã, a América Latina, em 1970, devia 32,5 bilhões de dólares. Em 2002, devia 727 bilhões de dólares, mesmo tendo pago 193 bilhões de dólares a mais do que recebeu de empréstimos. A auditora fiscal conta que o presidente boliviano Evo Morales tem se mostrado interessado na auditoria e já fez algumas reuniões. No Paraguai, poucos dias após a posse de Fernando Lugo, foi anunciada a auditoria das contas da hidrelétrica de Itaipu, a maior fonte de geração de dívida externa para o Paraguai.
E agora?
A julgar pelas declarações de Correa, há vontade política de ir além. “Já estamos contratando estudos para que analisem a possibilidade de ações legais em nível internacional”, declarou o presidente no fim de setembro. Fatorelli explica que o governo equatoriano se mostrou empenhado em verificar os meios jurídicos de que podem lançar mão, internacionalmente, para tentar interromper o pagamento e até anular as dívidas ilegais. “Mas observamos bastante cautela por parte do governo. Na reunião em que apresentamos o relatório, Correa afirmou diversas vezes que não dará nenhum passo que possa prejudicar o país e que dará passos seguros”, conta. A Caic entregou o relatório final a diversos órgãos equatorianos que, legalmente, podem tomar alguma medida com base no estudo, como o Ministério Público. “A idéia é, juridicamente, estar muito embasado. Se o pagamento for interrompido, será junto com ação judicial, para que represálias que historicamente acontecem na América Latina não ocorram”, conclui Fatorelli.
No Brasil, a iniciativa cidadã
Ainda que a auditoria da dívida externa brasileira esteja prevista na Constituição Federal, nenhum governo ainda tomou a iniciativa de fazê-la. Em 2000, porém, diversas entidades da sociedade civil realizaram um plebiscito popular sobre a dívida. Seis milhões de brasileiros se declararam contra o pagamento, mas o então governo de Fernando Henrique Cardoso ignorou a consulta. Em 2001, foram iniciados os estudos da Campanha Auditoria Cidadã, vinculada à Rede Jubileu Sul Brasil, que mantém análises até hoje, todas disponíveis na página da campanha na internet: http://www.dividaauditoriacidada.org.br/
Dívida brasileira:
• Entre 1978 e 2007, a dívida externa brasileira aumentou cinco vezes, ainda que se tenha pago 262 bilhões de dólares a mais do que foi recebido de empréstimos.
• Em 1978, a dívida brasileira era de 2,8 bilhões de dólares. Em 2007, era de 243 bilhões de dólares.
• A dívida interna do governo brasileiro era inexpressiva no início da década de 1990. Cresceu a partir do Plano Real, atingindo R$ 62 bilhões em 1995. Entre 1995 e 2007, foram pagos 651 bilhões de dólares só de juros; mesmo assim, a dívida multiplicou por 20, e em 2007 estava em 1,390 trilhão de dólares.
• De acordo com o orçamento geral da União de 2007, 53% foram destinados ao pagamento de juros e amortizações da dívida pública. Com previdência, gastou-se 18,5%; com educação, 1,74%; 2% com assistência social; e 3,5% com Saúde.
A notícia encontra-se em Brasil de Fato.