A atual crise do processo de Havana
A
crise abarcou todo o processo em seu conjunto, quando através da
discussão sobre as vítimas do conflito se chegou aonde se tinha que
chegar: à determinação da verdade sobre as responsabilidades
concretas de seus iniciadores desde o poder.
AGÊNCIA
PRENSA RURAL – O presidente em seu despacho, curvando uma
sobrancelha e franzindo o nariz, faz um gesto de desagrado ao
ministro quando lê o informe. Este, inquieto, chega a seu
escritório, manda chamar o chefe da divisão, lhe assinala no papel
o erro e lhe faz saber seu aborrecimento.
O
chefe da divisão, já com ansiedade [geralmente por seu cargo],
chama o profissional especializado que lhe elaborou o paper
e levantando a voz lhe diz que é inaudita uma falha dessa natureza e
que, ademais, espera não se volte a repetir. Uma vez o homem em seu
escritório, presa de mau humor e frustração como coagulações do
medo a ficar sem salário, espera silencioso e impaciente a hora de
saída para ir para sua casa; ao chegar mau humorado, sua esposa, que
o conhece, evita qualquer indiscrição que agrave sua ira. No
entanto, algum pequeno incidente é aproveitado pelo homem para
desafogar sua frustração e agredir verbalmente a sua esposa, quem
se retira choramingando para seu aposento.
Na
manhã seguinte, o filho de poucos anos, na hora do café da manhã,
faz um mau movimento e derrama o suco sobre a toalha da mesa. A mãe
o agarra pela orelha, esfrega-a dizendo-lhe que não pode voltar a
repetir essa terrível má ação. O menino, choroso e reprimido, ao
sair se encontra no caminho com o cachorro da casa, que lhe
acompanha; porém, em lugar de uma carícia, lhe desfere uma patada
cruel em seu corpo. O cachorro grunhe e vai correndo para o canil com
o rabo entre as pernas. Um pouco depois, o gato do vizinho aparece na
barda divisória e o cachorro, feito uma fúria, se projeta contra o
gato que brinca apavorado e foge por terra. O cachorro o persegue, o
alcança e, depois de uma sonora refrega, o gato morre estripado.
Nesta
historinha, fruto de meus tantos anos de trabalho na burocracia
estatal colombiana e de experiência profissional como médico
aficionado à psiquiatria, a “vítima” é o gato do vizinho,
enquanto o “culpável” é o cachorro do profissional
especializado que trabalha naquele ministério; ainda que, para mirar
melhor as coisas ou, como dizem, para mudar o ângulo do problema,
poderíamos esmiuçar um pouco mais as circunstâncias deste veredito
pessoal.
O
primeiro que salta à vista é que, nesta complexa cascata da
culpabilidade descendente, as vítimas e os vitimários são uma
unidade dialética: isto é, não pode haver vítima sem vitimário e
vice-versa.
Em
seguida, podemos ver que o fluxo descendente da culpa, que sempre se
condensa nos níveis inferiores ou rasos, inclui uma parte pública e
outra privada, quer dizer que haveria que aplicar várias e
diferentes normas, desde as contempladas no direito administrativo e
no direito familiar até as normas e códigos sociais da convivência
entre vizinhos e –por que não?-, se o vizinho põe uma demanda
pela morte de seu gato, até o direito e o código penal, pois no
direito colombiano a palavra culpa [que tem um significado religioso
e emocional] é sinônimo de responsabilidade objetiva.
Qual é
a finalidade de toda esta historinha? Muito simples: a partir de
semelhanças e diferenças, expor algumas opiniões sobre o momento
extremamente crítico pelo qual está passando o processo de paz de
Havana, surgido justamente a partir da discussão que se está dando
em Colômbia sobre o assunto das vítimas do conflito.
I –
Porque, vamos dizer, pra começo de conversa: não é como está
dizendo alguém na esquerda eleitoral que fez crise a imposição do
governo Santos de “negociar a paz no meio da guerra”, senão que
a crise abarcou todo o processo em seu conjunto, quando, através da
discussão sobre as vítimas do conflito, se chegou aonde se tinha
que chegar: à determinação da verdade sobre as responsabilidades
concretas de seus iniciadores desde o poder, já não de culpas
emocionais indefinidas como na época da Violência
liberal-conservadora, onde só é possível chegar por meio do
estabelecimento de sua “verdade histórica”.
A
articulação da divisão no bloco oligárquico e a recomposição do
“santo-urubismo”, catalisado pelo debate parlamentar proposto
pelo senador de esquerda Iván Cepeda ao iniciador e promotor do
paramilitarismo em Colômbia Uribe Vélez foi possível por dois
fatos sociais já bem estabelecidos:
Um, a
cooptação de um amplo setor da esquerda eleitoral que JMSantos fez
para sua reeleição presidencial. E outro, a quase destruição do
ascendente movimento social independente pela solução política ao
conflito social e armado da Colômbia, que vinha em auge e que agora
está praticamente em refluxo.
O que
deu como resultado a valentia de Santos para ameaçar a mesa de
Havana e satisfazer a demanda uribista para o novo pacto democrático
do santo-uribismo, onde terá um papel dominante o senador Name,
presidente atual do Congresso vinculado ao grupo paramilitar costenho
e quem, como ele mesmo se define, é “um homem santista, porém que
respeita muitíssimo ao ex-presidente Uribe”.
O
paradoxo para o povo trabalhador é que, por evitar que a mesa de
Havana fosse destruída pelo fantoche de Uribe Vélez, como
argumentou a esquerda eleitoral, vamos chegar ao mesmo, porém por
mão de quem fora eleito por suas vítimas. Quantos dirigentes da
Marcha Patriótica e de outros movimentos sociais o regime de Santos
Uno matou?
II. O
processo de Havana, além disso, fez crise geral porque existe uma
grande defasagem entre o conhecimento “especializado” que têm
uns poucos “yuppies palacianos” e negociadores em Havana do que
significa o conceito críptico de “Justiça transicional” e o
total desconhecimento que deste tema tem todo o resto da sociedade
colombiana, incluído o grosso da chamada Força Pública, a qual,
por esta razão, é vítima da demagogia de Uribe Vélez, quem
aproveitou esta ignorância [e do fato de que a Força Pública na
prática se comporta como um partido político anticomunista] para
sobre esta base propor-lhes as leis de foros militares, tribunais
militares e demais leis de impunidade na qual estão interessados os
criminosos de guerra da cúpula ou dirigentes, os quais
acompanharam-no incondicionalmente, enquanto a maioria de processados
são militares de baixo escalão e rasos da base sem voz nem voto.
III –
Seguros de que o governo Santos Dois em sua valentia ao ter-se
recomposto a unidade oligárquica não terá acesso a modificar os
critérios para autorizar um cessar-fogo bilateral, corresponde então
ao movimento social em marcha reativar-se com energia e, dentro de
sua palavra de ordem geral de lutar pela solução política ao
conflito social e armado, reapresentar uma série de tarefas
políticas concretas que lhe permitam conquistar este objetivo
supremo:
1 –
Que se pactue em Havana uma “trégua bilateral permanente” sem a
qual não é possível continuar avançando nos pontos restantes da
agenda para finalizar o conflito colombiano.
2 –
Que se abra um debate amplo na sociedade colombiana sobre o que o
atual governo de Santos entende pelo conceito críptico de Justiça
transicional [transição para onde?], primeiro sobre seus dois
principais direitos: a verdade e a justiça, para depois debater
sobre a reparação e a não repetição.
3 –
Que, para entender e resolver o complicado assunto das vítimas e
responsabilidades concretas de cada uma das partes no conflito, se
componha já a tão mencionada comissão da verdade histórica e se
lhe dote dos elementos que lhe permitam estabelecer, seja
provisoriamente, uma verdade aproximada do sucedido, como passo
fundamental para resolver o ponto terceiro da agenda e continuar
avançando para a finalização dos demais pontos da agenda pactuada.
4 –
Entender definitivamente que sem a mobilização social ampla e
democrática pela solução política, o governo de JM Santos sem
antagonista sério defronte, chantageará permanentemente a mesa de
Havana para seu benefício próprio e o de sua classe social
neoliberal, e porá sempre o povo trabalhador colombiano no fio da
espada exterminadora do Estado.
Tradução:
Joaquim
Lisboa Neto
Texto extraído de Resumen Latinoamericano