Por
José
Antonio Gutiérrez D.
Fonte: Rebelión
Certo
dia, passando em frente ao local de uma organização de caridade
aqui em Dublin, vi um cartaz que dizia “Nossa organização
continuará apoiando as vítimas de Israel e da Palestina no atual
conflito”.
Compartilho
a opinião dos que dizem que toda perda de vida humana é lamentável:
porém, equiparar a tragédia dos dois mil civis palestinos
massacrados com um ou dois civis israelenses mortos numa guerra
assimétrica declarara por Israel sem nenhum apoio no direito
internacional me parece um abuso indignante. Equiparar as vítimas de
uma nação desarraigada, bloqueada, despojada, empobrecida, com um
par de cidadãos respaldados por um dos Exércitos mais modernos do
mundo e cujas famílias se beneficiarão de todo o apoio psicológico,
econômico e social do Estado de Israel me parece francamente
obsceno. Não só é desonesto, como também estúpido e, no
entanto, constitui a narrativa com a qual os EUA justificam os crimes
de lesa-humanidade de seu alfil no Oriente Médio. Porque, quando se
trata de um conflito onde as partes são tão desiguais, tratar de
equipará-las no discurso é um recurso para dar maior preponderância
às minorias poderosas.
Uma
situação parecida é a maneira como se está abordando o tema das
vítimas que começa a ser discutido nas negociações de Havana. A
delegação de vítimas que chegou a Havana [1], “muito plural, que
representava vários fatos vitimizantes, várias regiões, vários
estratos sociais e vítimas de vários vitimários”, nas palavras
do representante da ONU em Colômbia, Fabrizio Hochschuild [2],
reflete esse desequilíbrio. Representando a todas as vítimas por
igual, se perde toda noção de representatividade no conflito
colombiano, no qual a imensa maioria das vítimas são pobres e foram
vitimizadas por agentes estatais ou paraestatais. Se continua, assim,
invisibilizando a imensa maioria das vítimas dessa violência
massiva que os pobres sofreram, fundamentalmente no campo, por parte
do Estado com o propósito de massacrar a rebelião. Com o discurso
dos “vitimários” se deixam de lado as responsabilidades
políticas e históricas, assim como a escala das violências
respectivas. Se nos dirá que é muito difícil manter o equilíbrio
nestes casos: porém aí está a raiz do problema, e é que tal
equilíbrio entre vitimários e violências não existe. No intento
de criá-lo artificialmente, se desfigura a realidade. Ainda o mesmo
termo “vítima” é utilizado de maneira bastante elástica na
narrativa oficial. A partir da mídia se reitera que todos somos
vítimas, ainda que, claro, alguns somos mais vítimas que outros. O
Estado é uma vítima, na opinião de Álvaro Uribe, quem diz isto
sem ruborizar-se, parodiando a Turbay Ayala quando dizia que ele era
o único prisioneiro político em Colômbia. O tema de vítimas dá
para tudo e, ainda que sei que se trata de um tema espinhoso e
sensível, creio necessário discutir em torno a alguns problemas que
obscurecem a real natureza do debate.
Que
entendemos por vítima?
Um dos
primeiros problemas é a falta de definição em torno a que nos
referimos com vítimas: vítimas de violações ao direito
internacional humanitário ou as violações de direitos humanos? Há
uma tendência a confundir de maneira deliberada o DIH com os DDHH,
tendência que tem ido paralelamente com uma tentativa de
“privatizar’ os DDHH e ignorar que é responsabilidade suprema do
Estado garanti-los em função de sua legitimidade ante a sociedade.
Inclusive, os DDHH se converteram num exercício de relações
públicas, ao mesmo tempo que em arma de guerra: os escritórios de
DDHH do Exército estão ligados a Operações Psicológicas. DIH e
DDHH não são a mesma coisa e sua confusão não ajuda a esclarecer
o que está em jogo. Uma são as infrações dos atores em conflito
no contexto da confrontação armada. [3] As violações aos direitos
humanos são aquelas perpetradas pelo Estado ou por sua inação, por
agentes do Estado ou por pessoas aliadas a ele [ex.: paramilitares],
que vão diretamente contra as disposições estipuladas na
Declaração Universal dos Direitos Humanos. O particularmente grave
deste último tipo de violações é que não somente vitimizam a
pessoa, como também degradam as noções mais essenciais que se tem
do ser humano na modernidade, assim como também degradam o conceito
de cidadão em que se fundamenta o Estado Moderno, que, ainda que se
possa argumentar que é uma ficção, representa uma obrigação para
os que exercem o poder na atual sociedade. As violações aos
direitos humanos, insistimos, são feitas pelo Estado e, ao decretar
setores da sociedade como não-cidadãos, passo prévio a negar-lhes
sua condição humana, abre as portas ao direito à rebelião
consagrado no preâmbulo da Declaração dos Direitos Humanos. Nesta
perspectiva, o surgimento dos movimentos guerrilheiros se vê numa
luz completamente diferente.
Outro
problema é a perspectiva temporal curta em que se assenta todo o
debate em torno às vítimas. Se dá por assentado que o conflito
armado que hoje se vive em Colômbia iniciou com o surgimento dos
movimentos guerrilheiros FARC-EP e ELN entre 1964-1966. Ao
máximo, como se faz no
informe “Basta Ya” [Já Basta] do Centro Nacional de Memória
História, se começa com a Frente Nacional em 1958. O problema com
esta história “curta” é que não dá conta do momento em que o
cenário para a atual violência foi assentado desde a década dos
’30, surgindo uma violência nítida, com uma continuidade até o
presente desde 1946. Quando os guerrilheiros em Havana se declararam
vítimas do conflito, despertaram iradas reações por parte dos
gurus do estabelecimento e de seus obsequentes propagandistas na
mídia. No entanto, se adotamos a história longa e uma compreensão
cabal dos DDHH, poderemos compreender como os campesinos perseguidos
no período conhecido como A Violência [1946-1958] se alçaram em
armas, em rebelião, contra um Estado que, quando os massacrava e
violava, observava impávido como as milícias privadas dos
terra-tenentes faziam-no. Tudo isto tem logicamente que ver com o
problema da memória e da verdade histórica, que também são temas
que terão que ser abordados no marco das negociações.
O outro problema é que a
mesma definição de vítimas também deixa de lado alguns elementos
mais complicados para assegurar a natureza desta guerra degradada,
difusa, às vezes difícil de definir: que passa com os exilados? Que
passa com os presos políticos e de guerra vítimas de atrozes
torturas e de privações de água, medicamentos, alimentos, produtos
de higiene, etc? Uma pessoa que foi vitimizada por agentes do Estado
ou paramilitares perde sua condição de vítima se se rebela e toma
as armas? Que passa com as vítimas da limpeza social, esses
ninguéns, os chamados descartáveis, que vivendo nas margens da
sociedade não têm organizações que os representem? Que passa com
os que foram vítimas de um modelo de desenvolvimento imposto a
sangue e fogo pelas multinacionais? Por que não são as
multinacionais, de fato, consideradas como um ator do conflito
armado, apesar de sua aberta cumplicidade com agentes do Estado e com
bandos paramilitares? É a natureza uma vítima do conflito,
independentemente de sua centralidade para sustentar a humanidade
como uma entidade viável? Que passa com as pessoas que, sem ter
sofrido da violência física diretamente, sofrem da violência
estrutural, da exclusão, da marginalização e da violência da
sociedade imposta mediante a guerra, como é o caso das crianças
famintas em La Guajira e em toda a Colômbia? São perguntas nada
fáceis e que algumas organizações estão se atrevendo a expor.
A
vítima despolitizada e passiva
Há uma
tendência a despolitizar o conceito de vítimas, tendência na qual
caíram alguns setores tradicionalmente vinculados à esquerda. Se
pode afirmar que “não permitiremos que enfrentem as vítimas”,
como se todos fossem a mesma coisa, porém esse nunca foi o problema
de fundo. Esta maneira indiferenciada de abordar a problemática das
vítimas reforça um discurso desmobilizador e apolítico que tem
calado fundo em setores dos defensores de DDHH [Quanta falta faz o
doutor Eduardo Umaña!]. Denunciar os “manejos políticos” ante o
tema das vítimas é um sem sentido, precisamente, porque as vítimas
estão inscritas num conflito essencialmente político.
O
problema de fundo é que o debate em torno das vítimas [quem, como e
em que sentido é uma vítima] é um debate que nos enfrenta com a
natureza mesma do conflito social e armado em Colômbia, com essa
violência que permeia diferencialmente ao conjunto da sociedade,
violência que é, antes de tudo e por sobre todas as coisas, uma
violência de caráter político. Explorar o problema das vítimas
desde uma perspectiva asséptica, acrítica, como se fosse uma
categoria que engloba a todos por igual é insustentável. Não se
pode dar o debate das vítimas deixando de lado aspectos chaves de
contexto nem da intencionalidade dos que perpetraram os atos de
violência. Nem todas as violências são iguais. Este é um
princípio chave do projeto “Nunca Mais”, no qual participaram as
mais importantes organizações de DDHH do país, o qual expressa sem
ambiguidades:
Desde
há vários anos [...] nos vimos submetidas a extremas pressões, por
parte de forças sociais, nacionais e internacionais, para que nossas
denúncias e ações humanitárias se situem em ‘posições
neutras’, que não aumentem as censuras sobre nenhuma das partes em
conflito, e para que nosso trabalho se oriente por parâmetros de
‘equilíbrio’ que leve a estigmatizar ‘por igual’ e a
‘equiparar’ as diversas violências que afetam a sociedade
colombiana. Se nos apresentou como princípio reitor que deve
orientar nosso trabalho o de ‘Condenar toda violência, venha de
onde vier’. Muitas vezes nos perguntamos se tal tipo de
neutralidade é eticamente sustentável.
Cremos
que nenhum tipo de discernimento ético pode dispensar-nos [...] de
ter em conta [...] os móveis e estratégias globais que comprometem
aos diversos atores enfrentados. Imperativos éticos [...] nos levam
a censurar com maior força aos que se servem da violência
repressiva para defender violências estruturais e injustiças
institucionais que favorecem a camadas privilegiadas da sociedade,
enquanto vitimizam, exterminam ou destroçam as camadas sociais mais
pobres e vulneráveis, submetidas a séculos de despojo e injustiça.
[...]
Não é possível ser neutro quando se é consciente de que um polo
da violência é muito mais daninho para o conjunto da sociedade, ou
acumula em si mesmo maiores perversidades, ou representa a oclusão
institucional dos caminhos que poderiam conduzir a uma sociedade mais
justa, ou acumula em seu haver maior violência contra os fracos. [4]
Que
pena, e digo isto com todo o respeito do mundo: não é o mesmo o
caso de Bojayá, onde o cilindro-bomba –lançado, ademais, de
maneira irresponsável- foi desviado porém não houve a intenção
explícita de assassinar pessoas, com os incontáveis massacres do
paramilitarismo que foram feitos com intenção e traição. Por
censurável que seja, não é o mesmo o sequestro de um parapolítico
corrupto que o desaparecimento de um campesino que organizou sua
comunidade para tratar coletivamente de superar os efeitos mais
urgentes da pobreza. Jamais poderei estar de acordo com os que tratem
de equiparar situações tão complexas e diferentes, equiparação
que serve para encobrir a natureza politicamente motivada da
violência que golpeia a Colômbia.
Uma
opção ética, popular e libertária ante o tema de vítimas
Se há
uma coisa na qual estou de acordo com os uribistas é que nem todas
as vítimas são iguais: isto é tão certo em Colômbia como o é na
Palestina. Creio que afirmar o contrário é uma estupidez que não
tem nada a ver nem com o ato humano da empatia nem da reconciliação.
Qualquer pessoa que tenha visto a televisão colombiana se dá conta
disto que os uribistas insistem até o cansaço: algumas “vítimas”
–as menos e as que tenham uma posição econômica privilegiada-
recebem atenção em horários nobres, enquanto outras são
vilipendiadas, ignoradas ou desprezadas com a terrível sentença
“por algo terá sido’. O tema das vítimas reproduz a exclusão e
marginalização de uma sociedade polarizada em classes que mais bem
parecem castas. Isto o expressa muito melhor um artigo do mordaz
Camilo de los Milagros:
Durante
décadas se construiu uma narrativa da confrontação em Colômbia à
medida das elites: maus muito maus contra bons impecáveis. Certas
vítimas gozam desde então de um protagonismo claramente interessado
em desprestigiar ao mau de ofício, ao demônio causador de todas as
desgraças do país. Porém, que tão nocivo tem sido esse demônio?
Por que, em lugar de um ou dois depoimentos lancinantes e
sensacionalistas, não se avalia em conjunto a catástrofe
humanitária onde ambos os bandos cometeram atrocidades? Por que não
se esclarecem as responsabilidades completas?
[...]
As comparações são odiosas, porém necessárias. Nenhuma
comparação tão odiosa como esta de pôr mortos nos dois extremos
da balança. Com horror se constata que 70% dos crimes cometidos no
marco do conflito armado são atribuídos ao Estado ou seus agentes
paralelos, enquanto nem sequer 20% correspondem aos grupos
subversivos. É uma desproporção aterradora que não se corresponde
para nada com a narrativa oficial. As cifras correspondem a medições
das Nações Unidas, aos dados do CINEP e inclusive da Comissão de
Memória Histórica, que o próprio governo nacional financia. Não é
retórica estúpida, não é
cumplicidade com o terrorismo, não é uma tentativa de desviar a
atenção sobre os crimes da insurgência. É a constatação de
como, usando um magnífico encantamento televisivo, um dos bandos vai
sair limpo. O que mais dor tem causado. [5]
Ante o debate das vítimas,
alguém tampouco pode ser neutro. Se tenho que estar com alguém,
estou com aqueles que foram vítimas dos que quiseram manter uma das
sociedades mais desiguais do planeta a sangue e fogo. Estou ao lado
daqueles que se opuseram aos que trataram de aniquilar –até a
semente- visões alternativas de sociedade. Estou com os que foram
vítimas dos que se enriqueceram despojando aos que menos têm. Estou
do lado dos que resistiram aos desígnios dos que, a fim de conservar
seus nefastos privilégios, seriam capazes de fazer arder a toda
Colômbia. Estou do lado dos que não se lhes permitiu nem sequer
chorar a seus mortos por medo ao castigo de um Estado que celebra o
espetáculo edificante do sangue jorrando de cabeças decapitadas.
Estou do lado dos que não se lhes permitiu sequer dizer que são
vítimas, porque as vítimas do Estado, supostamente, não existem.
Estou do lado dos que nunca tiveram nem a televisão nem a imprensa
para cobrir suas desgraças, ainda que me chovam raios e centelhas.
Como se vê, o tema de vítimas é mais outro campo de batalha nesta
confrontação fundamentalmente política.
Tradução
de Joaquim
Lisboa Neto
NOTAS:
[3]
Isto sem abordar as inadequações do DIH para regular conflitos
irregulares ou fundamentados na luta de guerrilha.
[4]
Colombia Nunca Más , Capítulo V, Tomo I, 2000, pp.99-100.
(*)
José Antonio Gutiérrez D. é
militante libertário, residente na Irlanda, onde participa nos
movimentos de solidariedade com América Latina e Colômbia,
colaborador da revista CEPA [Colômbia] e El Ciudadano [Chile], assim
como do sítio web internacional www.anarkismo.net.
Autor de “Problemas e Possibilidades do Anarquismo” [em
português, Faisca ed. 2011] e coordenador do livro “Orígenes
Libertarios del Primero de Mayo em América Latina” [Quimantú ed.
2010].