Cuba e a OEA
Desagravo por uma ofensa inferida por um cadáver. Por Fernado Martínez Heredia. Cuba
Por Fernando Martínez Heredia
"Como é que eu vou rir
se é uma coisa tão feia"
Carlos Puebla
I
A Organização dos Estados Americanos nasceu em 1984 em meio a um grande motim popular e foi batizada com o sangue do povo colombiano, vítima nesses anos de uma gigantesca matança dirigida a despossuir aos camponeses de seus meios de vida, descabeçar o protesto social e privar aos seus cidadãos dos direitos democráticos. Em seguida, Colômbia foi o único país latino-americano que enviou tropas à guerra de Coréia, sem dúvida um conflito “extracontinental”. Em 1954, um país membro da OEA organizou o derrocamento violento do governo legítimo da Guatemala – que tinha ensaiado medidas populares como fazer uma reforma agrária – e a implantação ali de uma ditadura criminal. A OEA não condenou ao país agressor. Tudo ficava claro. Os Estados Unidos controlava completamente o novo órgão internacional dos países deste continente, porque depois da Segunda Guerra Mundial tinha desbancado a qualquer concorrente dentro do campo capitalista e era líder e máximo beneficiário do imperialismo. Os países da região deviam se subordinar ao seu poder. Como era a hora do neocolonialismo, o centro das atividades e das decisões estava em Washington, como também a sede, e dois terços das despesas as assumiam os Estados Unidos, mas, todos os Secretários Gerais da organização seriam latino-americanos.
Ninguém sabia, porém, que o conveniente anticomunismo da guerra fria, muito pronto seria colocado a prova por um acontecimento transcendental: a Revolução cubana. Esse povo se liberou de uma ditadura neo-colonizada, apoderou-se de sua ilha e derrotou as tentativas do imperialismo de destruir a Revolução. Nossa América voltou a reconhecer sua identidade em uma epopéia política de libertação, em um momento muito particular de sua história. Nas décadas prévias, numerosos processos de modernização tentaram consolidar certo desenvolvimento econômico com graus de autonomia, e alguns Estados fortes com políticas próprias. Agora os Estados Unidos estava afogando essas experiências. Desde elas, mas, sobretudo mais à esquerda que elas, Cuba aparecia como um exemplo vitorioso que movia ao entusiasmo, à atuação e a uma esperança nova: se se era mais radical nos fins e nos meios, podia-se mudar a vida e as sociedades, e obter a liberação dos povos e os países região.
O imperialismo e as classes dominantes do continente advertiram o perigo. Era necessário derrotar Cuba. Nesta nova situação, um trás outro tiveram que definir-se as instituições e os organismos políticos e sociais: com os povos ou contra os povos. A OEA viu-se frente a esse desafio, e obedeceu aos Estados Unidos. A condena contra Cuba, por “seguir uma ideologia extracontinental”, selou o destino dessa organização. Não me deterei nos detalhes que se estão lembrando nestes dias. Só quero chamar a atenção sobre o fato de que os Estados da região tinham possibilidades de resistir que não utilizaram. América Latina possuía uma antiga implantação de Estados independentes, uma gesta revolucionária independentista compartida em sua história, uma multidão de afinidades culturais, e práticas e idéias recentes de afirmação dos seus interesses e seus projetos que eram reprimidos pelos Estados Unidos. E naquela conjuntura tinham sobretudo a necessidade de mostrar-se unidos como latino-americanos, para defender-se melhor e ter mais capacidade negociadora.
Prova de que era possível outra atitude são as dificuldades que confrontou o imperialismo para conseguir a condena contra Cuba. Em 31 de janeiro de 1962 por fim foi excluído o Governo Revolucionário, quando os Estados Unidos chegou à maioria necessária de 14 votos, depois de somar os governos uruguaio e haitiano; ao ditador Duvalier o comprou com a promessa de financiar um novo aeroporto na capital do Haiti. Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Equador e México se abstiveram. Só em julho de 1964 se aprovaram sanções contra Cuba suspensão de relações e cesse de todo tipo de comércio-, com os votos contra da Bolívia, do Chile, México e o Uruguai.
Cuba foi excluída da OEA porque a maioria dos governos e grupos de poder da América Latina e o Caribe decidiram serem cúmplices do imperialismo ou se acovardaram ante sua foca e agressividade. Seu horizonte burguês, seus interesses de exploradores ou parasitas, seu temor a desatar forças populares ou permitir protestos sociais, foram decisivos. Depois certo número de indecisos ou mesquinhos sofreu as conseqüências da ascensão impossível de deter da grande reação que derrocou muitas democracias das que se exibiam como o modelo que Cuba não tinha querido seguir, quando essa forma capitalista de governo foi abandonada em nome da “segurança nacional” e se estendeu pelo continente a onda das ditaduras repressivas e inclusive genocidas. “Depois de Girón, todos os governos da América Latina foram um pouco mais livres”, disse com razão Fidel na década seguinte. Mas, os “modernos” que dominavam na América Latina resultaram entreguistas, e do capitalismo nacional subordinado se deslizaram à submissão. Cuba foi um teste para a opção burguesa latino-americana, e ante esse teste escolheram ser antinacionais e verdugos de seus próprios povos. Uma geração depois, a miséria se senhoreava do continente e a América Latina tinha perdido muito peso na economia internacional.
Tivemos algo para lhe agradecer à OEA, e é justo lembrá-lo. Quando nos expulsaram, já o povo cubano tinha empreendido o longo caminho de mudar sua vida e seu mundo, de apoderar-se de uma modernidade para todos, ao tempo que combatia o caráter explorador, colonialista e depredador da modernidade. Em 1961 – o mesmo ano de Girón – tinha feito a primeira campanha na América para erradicar o analfabetismo. Para ela criou-se uma cartilha na que o primeiro dia de atividade dos adultos que deixavam de ser iletrados e as crianças das brigadas alfabetizadoras compartiam as três primeiras vocais – O,E,A – com a conscientização acerca dos servidores do imperialismo disfarçados de organização internacional.
II
Como organização internacional, a OEA tem contado com a usual estrutura de Secretarias, Conselho, Conferências e outras reuniões periódicas, meia dúzia de comissões permanentes e outras para temas e problemas especiais, relações, publicações e tudo mais. Mas, nunca se ocupou de promover relações econômicas equitativas entre o gigantesco país membro e os demais, nem completamente benéficas entre as economias, nem se lhe deu por alentar uma integração latino-americana e caribenha. Também não defendeu o respeito à autodeterminação destes últimos povos e a soberania de seus Estados, nem lutou contra a ingerência permanente dos Estados Unidos em suas vidas e assuntos. Haverá que esclarecer que também não se interessou jamais seriamente na miserável ou desvantajosa situação social das maiorias? Nem sequer exibiu vitórias como garante da paz entre os Estados da região ou mediadora eficaz em seus conflitos. Além da justiça de condená-la, há que reconhecer que a OEA não podia fazer nada do que escrevo, por padecer um vício de origem: seus países membros não constituem uma região, mas duas, e uma delas, a América Latina e o Caribe, teve nos Estados Unidos o seu principal inimigo, explorador, opressor e dominante.
O fogo das revoluções e combates populares fazia crescer nos anos sessenta o conhecimento social e a consciência das questões principais. Então ficava claro que o panamericanismo, que ao nascer angustiava José Martí e o fazia denunciar o imperialismo nascente e reclamar uma segunda revolução latino-americana, tinha se reduzido a um instrumento político, repressivo e militar dos Estados Unidos. Até o New York Times, hoje tão pequeno em seus critérios, dizia em 14 de abril de 1965; “Cuba tem sido excluída de participar na OEA… O Sistema Interamericano é, por acordo, anticomunista e democrata, ainda quando alguns regimes não tem sido excluídos em que pese a que dificilmente podem ser considerados democráticos”. E o presidente demo-cristiano do Chile, Eduardo Frei Montalva, declarava em 8 de janeiro de 1966 que “a OEA não satisfaz as exigências do hemisfério e tem deixado de ser útil.”
Nos quarenta seguintes anos a OEA deixou passar todas suas oportunidades de retificar-se a respeito de Cuba e tratar de apagar a mancha de ter sido cúmplice do agressor estrangeiro contra um povo irmão. Nos primeiros anos setenta vários países tomaram a iniciativa de reiniciar relações com Cuba –o México nunca as rompeu-; em 1975 tentaram de convidar Cuba a uma sessão, e na Conferência de Chanceleres de julho dezesseis países votaram por deixar livre a cada membro de restabelecer ou não relações com Cuba. Mas deixaram passar a conjuntura favorável sem ir mais longe. Na década seguinte foram se impondo governos civis na região, levaram-se a cabo iniciativas por grupos organizados de Estados, para mediar em conflitos ou de corte integracionista, e o papel da OEA foi declinando. Cuba foi aumentando consistentemente suas relações estatais latino-americanas. Entre 1989 e 1991 desapareceram a URSS e os regimes do socialismo europeu, demônio invocado quando se expulsou Cuba em 1962, e nos noventa cresceram muito as relações de numerosos países da região com Cuba. Mas, a OEA não renunciou à sua condena. Os regimes da democratização podiam ter pensado nesse passo para melhorar sua imagem e parecer mais autônomos, mas, estavam demasiado ocupados com os ajustes, as privatizações, o neoliberalismo e a sujeição aos Estados Unidos.
Hoje é tarde demais para a OEA. A América Latina e o Caribe estão vivendo transformações profundas. Vários países têm poderes populares, crescem sem cessar as relações econômicas e políticas entre os países e a vontade de integração como região autônoma. Cuba desempenha papéis importantes neste processo. Os novos órgãos internacionais latino-americanos e caribenhos ocupam todo o espaço significativo na região e protagonizam as iniciativas que interessam aos Estados e os povos. Pelo modo geral com que vieram se produzindo essas transformações, convivem numerosas instituições, práticas e normas que não têm verdadeiras relações entre si, que representam o passado, viabilizam o presente e esboçam o futuro. Os mesmos atores podem encontrar-se em dois ou mais delas, impulsionando tarefas, tecendo com paciência ou alternando com o que não está em sua natureza nem desejam. Faz seis meses, tudo era júbilo no Grupo de Rio ao ingressar Cuba. Faz seis semanas, na V Cúpula das Américas, todo um continente de pé lhe exigia ao presidente dos Estados Unidos que, mais do que tímidos gestos e boas intenções, liquide esse país sua sistemática agressão, o bloqueio a Cuba. E faz dois dias temos recebido a retificação, o desagravo por uma ofensa inferida em outra época, por parte de um cadáver.
Versão em português: Raul Fitipaldi, de América Latina Palavra Viva.