Memórias reveladas
Por Frei Betto
Na data simbólica de 13 de maio – comemoração da libertação oficial dos escravos –, o presidente Lula tomou uma decisão de inestimável relevância em prol da liberdade de informação e da verdade histórica: enviou ao Congresso projeto de lei para que se tornem públicos todos os documentos e informações concernentes ao período da ditadura militar (1964-1985).
A decisão resulta do meritório empenho do ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, e a cerimônia contou com a significativa presença do ministra chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, e do governador de São Paulo, José Serra. Ela, ex-presa política, com quem convivi no Presídio Tiradentes, na década de 1970; ele, ex-exilado político. Os dois, virtuais candidatos à presidência da República em 2010.
Na solenidade, Vannuchi frisou que a presença de Dilma e Serra chancelou o acesso à verdade histórica como política de Estado - e não apenas de governo, sujeita a alternâncias eleitorais. Lula caracterizou o ato como “mudança de página na história do Brasil, não para esconder o que está no verso da página, mas para que a história seja contada como ela é ou foi.”
A aprovação do Congresso permitirá que se fomente um portal na internet, e qualquer pessoa poderá acessar os documentos disponíveis, o que já ocorre com os arquivos do SNI, do CSN (Conselho de Segurança Nacional) e da maioria dos DOPS estaduais. O cidadão poderá ainda encaminhar ao governo documentos e informações referentes ao período. Assim, se fará luz sobre os anos de trevas que vitimaram milhares de brasileiros(as) com perseguições, prisões, torturas, exílio e banimento, dos quais mais de 500 assassinados e/ou desaparecidos.
Falta as Forças Armadas quebrarem o silêncio quanto à sua atuação nos anos de chumbo. Não é justo que a ação criminosa de militares nos DOI-CODI, nos porões dos quartéis e no combate à guerrilha do Araguaia, seja confundida, hoje, com o conjunto da corporação. Nossas Forças Armadas precisam seguir o exemplo do Chile, da Argentina, do Uruguai e de El Salvador, governados por ditaduras na década de 1970, e que não temeram revelar e apurar as graves violações dos direitos humanos cometidas por oficiais, contribuindo assim para o fortalecimento da democracia. A verdade liberta, diz o Evangelho.
A presidência da República faz a sua parte. Espera-se que o Legislativo e o Judiciário façam a que lhes concerne. Ao Congresso, transformar em lei, o quanto antes, o projeto encaminhado pelo presidente Lula. Ao Supremo Tribunal Federal, julgar se a lei de anistia, de 1979, torna ou não inimputáveis os crimes cometidos, em nome do Estado, pelos algozes do regime militar.
O Brasil inventou uma aberração jurídica: tentar apagar, por um decreto de “anistia recíproca”, o período da ditadura. Como se a memória nacional pudesse eclipsar-se por milagre. Os algozes permanecem impunes, enquanto as vítimas carregam o doloroso peso de, até hoje, conviver com danos morais e físicos, ignorar o paradeiro dos desaparecidos e ver seus torturadores debochadamente orgulharem-se dos males causados.
Ainda que setores das Forças Armadas insistam em tapar o sol com a peneira, a memória das vítimas, como frisou Walter Benjamin, é inapagável. Passados 60 anos, as atrocidades do nazismo continuam a vir à tona. No Brasil, cada vítima tem procurado dar a sua contribuição: eventos, mobilizações, efemérides, filmes, minisséries, palestras etc. Incluo-me entre os que fazem da literatura a guardiã da memória.
Neste mês de junho chegará às livrarias um documento histórico, inédito, que esperou 36 anos para vir a público: “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco). Trata-se do diário do frade dominicano Fernando de Brito, redigido ao longo dos quatro anos (1969-1973) em que foi submetido a torturas e removido para diferentes cadeias. Não se conhece similar entre as obras publicadas sobre o período.
Em papel de seda, em letras microscópicas, e sob risco de punição, Fernando anotava, dia a dia, o que via e vivia. Em seguida, desmontava uma caneta Bic opaca, cortava ao meio o canudinho da carga, ajustava ali o diário minuciosamente enrolado e remontava-a. No dia de visita, trocava a caneta portadora do diário por outra idêntica, levada por um dos frades do convento.
Nos últimos três anos, cuidei de dar às anotações tratamento literário. Nos episódios relatados, a trajetória dos frades encarcerados se mescla à de personagens que são, hoje, figuras de destaque na história brasileira, como Carlos Marighella, Carlos Lamarca, Caio Prado Jr., Apolônio de Carvalho, Paulo Vannuchi, Franklin Martins e Dilma Rousseff, para citar apenas alguns.
Está tudo ali: as torturas, os desaparecimentos, a greve de fome de quase 40 dias, e também a convivência dos prisioneiros marcada por momentos de inusitada beleza: as festas de Natal, as noites de cantoria, a solidariedade inquebrantável entre eles.
“Diário de Fernando” revela a saga de uma geração que não se dobrou à ditadura e à qual o Brasil deve, hoje, a sua redemocratização.
Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais, autor de “Batismo de Sangue” (Rocco), entre outros livros.