Maldito bolivariano!
Por Gilberto Maringoni
Pronto,
inventaram um novo xingamento.
Depois
de comunista e terrorista de um lado e de coxinha de outro, epítetos
que já entediavam a todos, a tendência do verão é chamar os
desafetos de “bolivariano”.
- O
que quer dizer?
-
Não sei muito bem, mas tá bombando.
-
Estão querendo transformar o Brasil num País bolivariano.
-
Bolivariano? Transformar o Brasil na Bolívia?
-
Não. Bolivariano, aquele troço do Chávez.
Aquele
troço do Chávez precisa ser mais bem definido, antes que se encha a
boca para berrar “bolivariano!” a plenos pulmões.
O
que é ser “bolivariano”, termo que tanta repulsa causa a Gilmar
Mendes, ao infatigável deputado Eduardo Cunha e aos soberbos
editoriais do Estadão, que dia sim, dia não, botam o
qualificativo para ralar?
O
presidente venezuelano Hugo Chávez não se cansava de repetir: o
ideário que movia seu governo era o legado político e histórico de
Simón Bolívar (1783-1830). O próprio nome do país foi alterado, a
partir da Constituição de 1999, para República Bolivariana da
Venezuela.
Chávez
não foi o único a reivindicar o personagem. O nome de Bolívar foi
apropriado por um sem número de lideranças e movimentos políticos
na América Latina nos quase 200 anos que nos separam de sua morte.
Seus seguidores estão espalhados pelas mais diversas vertentes do
espectro ideológico.
Até
que ponto as apropriações de tal legado são fiéis ao pensamento
original do chamado Libertador?
É
difícil dizer. A “ideologia bolivariana” tem contornos vagos e
imprecisos. Bolívar é possivelmente o personagem histórico mais
complexo e de maior influência no imaginário político continental.
Sua obra é colossal. Além de liderar guerras de independência e de
exercer influência direta em pelo menos cinco dos atuais países da
região – Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia -, ele
deixou vastíssima obra escrita, constituída por artigos, cartas e
discursos.
Culto,
refinado e viajado, Bolívar era sobretudo um intelectual de ação.
Estava longe de ser um líder oriundo das classes populares. Era
destacado membro da elite criolla, brancos e mestiços de
posses que, entre os séculos XVI e XIX, se opunham ao domínio
espanhol em diversos países do continente.
Bolívar
teve sua vida política marcada pela luta contra o colonialismo, pela
república, pelo fim da escravidão e pela defesa de um sistema de
educação pública, entre diversas outras iniciativas. Tendo
visitado a França por três vezes na primeira década do século
XIX, foi fortemente influenciado por correntes iluministas e
antiabsolutistas.
O
culto a Bolívar
O
historiador venezuelano Germán Carrera Damas escreveu um livro
fundamental para se entender não apenas o personagem histórico, mas
o Bolívar simbólico, que segue existindo. O título é preciso: El
culto a Bolívar, nunca lançado no Brasil. Carrera Damas destaca
que a admiração despertada por Bolívar em seu tempo e após sua
morte não é fruto apenas de laboriosa pregação. Os feitos que
liderou repercutiram concretamente na vida de milhões de pessoas.
Não sem razão, Bolívar tornou-se objeto de culto, realizado, ao
longo dos anos, com os mais diversos propósitos políticos.
Segundo
outro historiador, Domingo Felipe Maza Zavala, já no governo de
Eleazar López Contreras (1936-1941), na Venezuela, “o culto a
Bolívar foi elevado à significação de um fundamento político”.
Através
de variadas interpretações, a figura do Libertador foi
reivindicada por todas as classes sociais do país como uma espécie
de fator de unidade nacional ou até como símbolo da manutenção de
determinada ordem. Assim, existe um bolivarianismo conservador,
traduzido na profusão das estátuas equestres disseminadas nas
praças de praticamente todos os municípios venezuelanos, bem como
na sacralização estática de lugares e feitos do pai da Pátria.
Essa vertente tenta esvaziar a figura de Bolívar de seu conteúdo
transformador e anticolonialista, destinando-a à veneração
estéril.
E
há um bolivarianismo de esquerda, que busca nas lutas contra o
domínio espanhol a inspiração para ações tidas como
antiimperialistas. As duas visões envolvem um sem-número de
nuances. O ideário bolivariano sempre foi elástico e flexível o
bastante para permitir leituras de um lado e de outro.
O
culto a Bolívar não é uma criação ficcional, fruto de um
patriotismo exacerbado em alguns países. É mais do que isso. Ele se
constitui em uma necessidade histórica e em um recurso destinado a
compensar o desalento causado pela frustração de uma emancipação
nacional que não se completaria. Bolívar seria o elo histórico com
um ideal de soberania, liberdade e justiça. Daí sua força, tanto
política, quanto como veneração quase religiosa.
A
ignorância alheia
A
acusação de bolivariano feita por Gilmar Mendes e outras figuras do
mesmo nível parte de quem conta com a ignorância alheia. E é
bradado especialmente por aqueles que omitem um pequeno detalhe dessa
história: na Venezuela, o contrário de bolivariano é uma oposição
que não vacilou em patrocinar um destrambelhado golpe de Estado, em
2002, que retirou Chávez do poder por três dias e, de quebra, todas
as referências a Simón Bolívar dos símbolos nacionais. A
intentona foi um fracasso e, como se sabe, desmoralizou a oposição
por vários anos.
A
omissão é mais do que interessada.
*Gilberto
Maringoni é professor de Relações Internacionais da UFABC autor de
A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos
de Chávez (Editora Fundação Perseu Abramo) e ex-candidato a
governador de SP pelo PSOL.