De Lilith, da rebeldia e das mudanças
Por
Gabriel
Ángel
Segundo
lendas antigas, pouco difundidas entre nós, Adão teve uma primeira
mulher chamada Lilith, com a qual definitivamente não pôde conviver
porque ela sempre queria impor sua vontade. Seu problema adquiriu
dimensões maiores quando ela exigiu ir sempre por cima em suas
relações sexuais. A grave contradição obrigou à intervenção
divina.
Anjos
enviados por Jehová se apresentaram ante ela para manifestar-lhe que
era sua obrigação obedecer a vontade de Adão, argumento que ela
não aceitou. Passaram então a explicar-lhe que era uma disposição
de Deus, ao que a mulher respondeu dignamente que não estava ali
para cumprir ordens de ninguém, muito menos a um Deus. O final pode
ser imaginado.
Lilith
terminou devorada pela terra e passou a representar a encarnação de
todos os vícios e maldades, muito ao gosto das religiosidades
hebreia e cristã. Como símbolo da rebeldia da mulher, estava
destinada à condenação. Nenhuma conduta desprezível deixou de lhe
ser atribuída, desde as mais infames perversões sexuais até a de
roubar e alimentar-se de crianças.
Mitos
milenares como esse dão conta de como, desde os inícios da chamada
civilização, com sua carga de opressão social e dominação
política, os poderes estabelecidos dedicaram boa parte de seus
esforços à demonização dos que se atrevem a pronunciar-se contra
eles. Lilith encarna muito mais que a rebelião da mulher contra a
opressão masculina, representa a eterna luta da humanidade contra os
poderes fundados na obediência cega e na divindade.
A
razão e as bondades de Lilith comovem não somente pela firmeza
irredutível com que as sustentou, senão que pela forma em que foram
massacradas, pela sevícia desatada na difamação de sua memória.
Definitivamente, não é certo isso de que a verdade e a razão
sempre triunfam. Às vezes, muitas vezes, quase na maioria das vezes,
resultam arrasadas e vencidas pela força da sem-razão. No entanto,
sempre voltam a brotar e crescer, num eterno renascer impossível de
evitar. Se morressem, a humanidade e a vida estariam perdidas para
sempre.
Uma
dessas tantas Liliths que despertam incessantemente num e noutro
lugar da Terra está representada em Colômbia pelas FARC-EP. Basta
ver e ouvir os bispos castrenses e capelães das unidades do Exército
Nacional bendizendo as aeronaves e as armas das tropas cuja missão é
sepultar as guerrilhas, para recordar aos anjos enviados pela
divindade para fazer Lilith desistir e castigá-la exemplarmente por
sua desobediência.
Quem
não escutou ao Presidente Santos, de Londres, identificar-se com a
posição do governo britânico, segundo a qual esta é a última, a
única e verdadeira oportunidade que as FARC têm para
desmobilizar-se e entregar suas armas? Não é a primeira vez que o
regime terrorista da Colômbia ameaça do mesmo modo. Matar-nos a
todos, destroçar-nos a todos, apunhalar-nos a todos, e não só
física, como também política e moralmente a todos. Nenhum se
salvará. Sempre o mesmo.
Se se
mirar bem, todos teremos finalmente que abraçar-nos com a terra um
dia. Assim que o verdadeiro dilema não consiste em pensar de que
modo e quando nos chegará a morte, senão de que modo e a que causa
os seres humanos dedicamos a vida.
A
Grã-Bretanha se chamou alguma vez Império porque seu poderio
militar e econômico se estendeu alguma vez pela África, Índia,
sudeste da Ásia, Oceania e boa parte da América. Milhões de seres
humanos foram submetidos de modo brutal pela força, com o único
propósito de saquear de seus territórios as riquezas que deram
brilho ao Reino Unido. O Príncipe de Gales e o Primeiro-Ministro
inglês ainda falam como se nada houvesse mudado. Estão errados.
Assim
sucedeu também com o Império Espanhol, ao qual seus admiradores
aplaudiam porque sobre suas extensões o sol nunca terminava de
pôr-se. Bourbons e Rajoys esquecem que essas velhas glórias
alimentadas pela escravidão e pelo genocídio desapareceram com a
passagem dos exércitos patriotas de San Martín e Bolívar.
O
Presidente Santos tampouco o adverte, quando se escuda neles buscando
amedrontar as FARC. Faz propositadamente, para dissimular que seu
real respaldo vem de mais perto, dos Estados Unidos, o império que
estende sua mão ensanguentada ao regime colombiano, do mesmo modo
que o fez no passado com Trujillo na República Dominicana, Batista
em Cuba, Pinochet em Chile, e muitos outros tiranos do continente.
Pouco
ou nada resta de tais ditaduras, posto que os povos conseguiram, por
fim, livrar-se delas. E hoje apontam ao estabelecimento uma ordem
completamente diferente.
Por
isso, não se pode dizer que sejamos as FARC as fracassadas. Ainda
que o digam uma e mil vezes, como fazem diariamente e repetem
alvoroçadamente nos grandes meios de desinformação e da calúnia.
Quando em Havana se busca por nossa parte uma saída pacífica e
democrática à longa confrontação, mais recrudesce a abundância
de infâmias a atribuir-nos. Uma solução política como a proposta
por nós significará sua derrubada.
Um
verdadeiro e silencioso estremecimento se produz no mundo de hoje.
Algo está passando. Os velhos impérios morreram e o atual não está
em seus melhores dias. Seu sonho de Novo Século Americano faz águas
a seus pés. Já não podem controlar tudo como queriam. Apesar de
suas mil bases militares dispersas pelo mundo. Apesar de seus
mísseis, drones e forças especiais. Agora, até o Papa Francisco
lhes resulta surpreendente. Condena o capital, a exploração e a
guerra.
É
como se Deus começasse a ver que a razão estava do lado de Lilith,
que a razão pertence aos povos rebeldes e não aos poderes
estabelecidos. Que há que repensar as coisas. Em boa hora.
Montanhas
de Colômbia, novembro de 2014.
--
Equipe
ANNCOL - Brasil