A transição para a paz
Por
Horacio Duque Giraldo
O
processo de conversações da Mesa de Havana, entre o governo do
Presidente Santos e as Farc, colocou a Colômbia, com seus avanços,
numa transição política da violência para a paz. Hoje, já
estamos fazendo uma rota para deixar para trás, definitivamente, o
conflito social e armado de quase 60 anos. As Farc pensam em
construir um movimento político apoiados na construção de novas
realidades sociais a partir de uma Assembleia Constituinte, as
reformas institucionais, a erradicação do paramilitarismo, a
segurança para seus dirigentes, o trâmite dos “asteriscos” e a
referenda popular dos consensos alcançados.
Na
vida cotidiana dos colombianos, particularmente daqueles situados em
zonas de intenso conflito armado, a violência parece murchar como
reflexo da vigência da trégua unilateral determinada desde 20 de
julho pelas Farc e de uma desescalada recíproca que envolve aos
contendores da guerra no cessar de hostilidades, do desminado e dos
ataques à infraestrutura energética. Não se trata de algo
absoluto. Ainda persistem as violências institucionais dos grupos
dominantes no Estado. A máquina governamental conserva inalterada a
cultura despótica da arbitrariedade e do ultraje aos grupos
subordinados afetados pela carência de espaços de organização
sólidos em sua resistência frente ao desmando crônico das
oligarquias locais. O fascismo muda desde seu berço original, se
recria e se expressa com outras maneiras para manter a linha e
fulminar a quem o impede a partir da subalternidade campesina,
operária, indígena, afro ou da militância emancipatória e
libertadora. Por acaso não é essa a brutal mensagem da captura de
Feliciano Valencia, o líder nasa caucano, a quem integrantes do
corrupto sistema judicial regional, representado no Tribunal
estadual, condenaram a 18 anos de prisão por um recente ato coletivo
de rechaço à violência militar governamental que pretendia impedir
a reivindicação das terras ancestrais saqueadas por poderosos
terra-tenentes?
Não
se trata de um acontecimento isolado. Se repetirá para relembrarmos
que a violência persistirá como recurso essencial de poder de
minorias sociais e políticas locais.
Ainda
assim, a decisão de avançar para a superação do conflito é real.
Superar a violência requer muita paciência e inteligência para
evitar a provocação da ultra direita, quem mais vantagem saca com o
uso da força.
Recentes
avanços no trabalho da Mesa de conversações de paz de Havana estão
indicando que o processo se situa numa transição política. De que
transição se trata? É a pergunta que convém se expor.
A
transição como categoria analítica tem sido considerada ao longo
dos atuais diálogos. O governo aludiu a uma “justiça
transicional” e nesses termos elaborou um Marco jurídico para a
paz que não resultou adequado aos requerimentos do Acordo especial
para a terminação do conflito que serve de suporte às conversações
de paz. Sua visão unilateral das coisas jurídicas é o que explica
sua irrelevância. Hoje, com o funcionamento de uma subcomissão de
expertos, há sinais de que surgem consensos nessa matéria para
encerrar assim o prolongado debate do ponto das vítimas da agenda
temática.
Fazer
uso da transição como ferramenta de análise não implica excluir
outras de muito valor como a mudança, a ruptura e a revolução.
Ainda que em muitos casos não há que esquecer que nas transições,
ademais da esfera política, há que se referir à econômica,
institucional ou aquela outra que afeta a organização do Estado, e
cuja conjunção em alguns âmbitos especiais tem sido caracterizada
como de uma revolução sem precedentes históricos.
No
caso concreto que nos ocupa, a transição encaixa no modelo
escolhido para terminar a guerra civil nacional. Reflete umas
correlações de força e o sistema de consensos determinado para
esgotar os eixos do litígio.
Seu
conteúdo material reflete, inicialmente, um percorrido entre a
violência e a paz. Um passo a partir dos cenários densos da
violência [concentração latifundiária da terra, pobreza, miséria,
ausência de liberdades democráticas, regime autoritário,
constrangimento midiático etc], para os âmbitos da vigência certa
e plena dos direitos fundamentais das pessoas.
A
delegação plenipotenciária da resistência campesina
revolucionária na Mesa de Havana expressou recentemente sua
disposição de avançar na organização de sua ação política nos
termos “da reincorporação das FARC-EP à vida civil,... para
abordar e discutir os procedimentos para o trânsito de organização
levantada em armas a movimento político aberto.
(http://bit.ly/1gDmNhe).”
Sintoma
da potência alcançada pelo processo. A vontade de paz o baliza, o
empurra, o direciona para deixar para trás a violência, à qual se
agarram os grupos da ultra direita mais radicais porque sabem que é
o terreno apropriado de seu auge e reprodução política.
Porém,
a transição para a paz é mais que isso, por ser importante. Ela
implica de maneira imediata assumir outros problemas álgidos. Me
refiro aos seguintes:
Primeiro.
Ao compromisso do governo Nacional de revisar e adiantar as reformas
e os ajustes institucionais necessários para fazer frente aos
desafios da construção da paz. O que, a partir da minha apreciação,
implica uma aproximação ao tema do Estado e seu papel na construção
da paz mediante reformas transcendentais que deixem para trás o
modelo neoliberal de ajustes promovidos nas últimas décadas a
partir do ângulo do que se conhece como Nova gestão pública.
Aproximação que deve assumir o debate sobre a natureza das
instituições estatais e as tensões que se derivam do choque de
visões contrapostas ao redor da organização do Estado e da
administração pública.
Segundo.
“Assumir o mandato da Agenda para esclarecer o fenômeno do
paramilitarismo, e, o que é mais urgente para o futuro da paz, sua
desarticulação, porque guerra suja no pós acordo constituiria um
contrassenso. Essa ameaça deve se desmontar se queremos a
reconciliação”. Eliminar o paramilitarismo captura a reforma das
Forças Armadas como dispositivo chave da violência. Os militares a
promovem à sua maneira, segundo dados recentes que dão conta de
trabalhos expertos. No entanto, não convém a distorção insinuada,
pois evita o consenso na projeção de uns novos institutos armados
para as épocas de paz e defesa da integralidade territorial da
nação, função primordial das mesmas na visão clássica. Aos
oficiais e expertos que tratam do tema da reforma militar lhes convém
criar canais de comunicação e interação com outras vozes e
opiniões; não só têm transcendência os olhares desde o que
sucede ou ocorreu nos exércitos dos Estados Unidos ou Chile, como
expôs Pedro Javier Rojas Guevara, há pouco em uma coluna de El
Tiempo. (http://bit.ly/1V33qvr).
Terceiro.
“Retomar a discussão sobre ‘asteriscos’ ou assuntos cuja
discussão foi adiada como, por exemplo, o estabelecimento da
quantidade de hectares que conformarão o Fundo de terras, necessário
para a execução da Reforma Rural Integral, também é tempo de
tirar do freezer as 28 ressalvas para arejá-las e buscar consenso em
torno delas”.
Quarto.
Determinar os procedimentos de legitimação dos consensos mediante
sua referenda popular e a realização de uma Constituinte soberana,
que bem termine de assumir-se com o debate propiciado pela reforma
apresentada com o Ato legislativo que pretende criar uma Comissão
legislativa e dar faculdades de paz ao Presidente da República, pois
são tantos seus vazios e suas potenciais inconsistências que o
risco de seu naufrágio no exame óbvio da Corte Constitucional pode
tornar-se uma realidade nos meses vindouros, uma vez se surta seu
trâmite nas Câmaras legislativas. Não creio tanto no
fantasmagórico “golpe de Estado” sugerido pelo delirante
uribismo para distorcer a proposta do Presidente Santos, senão que é
tal o emaranhado de envolvidos que dessa gestão não creio que saia
algo positivo no articulado, salvo um acordo nacional inclinado pela
Constituinte como ponto de corte e de partida para uma nova etapa
histórica da Colômbia.
Quinto.
Implementar e executar os consensos suficientes alcançados de
maneira que se evite enganos e frustrações coletivas no povo.
Sexto.
Num plano mais geral, não resulta irrelevante abordar os desafios
que para a esquerda, o movimento social e o campo da oposição
democrática tem a transição para a paz. À esquerda corresponde a
maior carga na construção da mesma. Fazê-lo com solvência quer
dizer apresentar novas formas de organização, novas linguagens,
novos símbolos, novas maneiras de relacionamento com a multidão.
Nota.
Grave a crise da saúde em Cali e no Vale do Cauca. As finanças do
emblemático Hospital Estadual não dão mais. A única saída é a
mobilização cidadã exigindo urgentes soluções fiscais ao governo
em todos os seus níveis, começando pelos Ministérios de Fazenda e
Saúde.