"A LUTA DE UM POVO, UM POVO EM LUTA!"

Agência de Notícias Nova Colômbia (em espanhol)

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A violência do Governo Colombiano não soluciona os problemas do Povo, especialmente os problemas dos camponeses.

Pelo contrário, os agrava.


quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

As Guerrilheiras das FARC-EP: Parteiras da história



 por Chris Gilbert e Vilma Kahlo
 
 
Se os exércitos regulares são um mundo de homens, a guerrilha e as forças insurgentes são o oposto: um mundo onde a mulher sempre teve um papel central. Pensemos em Agustina de Aragón, Olga Benário, Tania Bunke, María Grajales e Celia Sánchez ou, inclusive, as amazonas lendárias. Tampouco é uma coincidência que Liberté – a figura representada por Delacroix nas barricadas da revolução de 1830 – seja uma mulher.
 
A Colômbia não é uma exceção a esta regra. Inclusive antes da independência, mulheres como Cacica Gaitana e Policarpa Salavarrieta tiveram um papel fundamental na luta insurrecional. Hoje em dia este legado de mulheres na resistência continua nas FARC-EP, a guerrilha de mais longa duração em nosso continente. Esta organização política e militar participa agora dos diálogos de paz em Havana, onde um em cada três membros da Delegação de Paz é mulher.
 
Quem são estas mulheres? O que as fizeram arriscar suas vidas pelos ideais do socialismo e da libertação nacional num país sob o tacão dos Estados Unidos? Qual é seu papel no atual processo de paz, que aponta a uma solução negociada nos 50 anos de conflito interno na Colômbia? De nossas visitas à Delegação em Havana regressamos com respostas interessantes a estas e outras perguntas acerca das mulheres da insurgência colombiana.
 
 
A pobreza e a injustiça
 
É um fato bem conhecido que a sociedade colombiana se caracteriza por uma desigualdade extrema (com um índice de Gini de até 0,89 em áreas rurais). No entanto, igualmente à pobreza em todo o mundo, o peso recai especialmente sobre os ombros das mulheres. Uma combatente chamada Marcela González se referiu à relação entre gênero, pobreza e opressão: “A mulher é quem leva a pior neste conflito... A maioria dos removidos são mulheres. A isto também se soma a violência sexual, a violência doméstica… A maioria dessas mulheres são chefes de família que perambulam com seus filhos pelo território nacional. Então, esta é a tragédia humana vivida pela mulher colombiana”.
Ainda que as mulheres levem a pior e representem uma grande porcentagem dos quase cinco milhões de removidos na Colômbia, as razões fundamentais que levam homens e mulheres a incorporarem-se à guerrilha são exatamente as mesmas: a pobreza, a injustiça e a repressão à oposição política da esquerda. “As mesmas necessidades, a mesma miséria”, Marcela continuou, “obrigam que a gente opte por buscar saídas para esta realidade”.
 
A falta de opções políticas é realmente a chave para determinar a forma que toma a luta. O último convite para constituir uma alternativa legal foi a União Patriótica, partido formado em 1985. A iniciativa gerou grande entusiasmo, porém os agentes da oligarquia massacraram sistematicamente os militantes da UP: em torno de 5.000 mortos em menos de uma década. A lição histórica, escrita nos muros com o sangue da oposição, é que onde não existe democracia é preciso lutar por ela. Por agora, só é possível opor-se ao regime oligárquico da Colômbia – armado até os dentes pelos EUA e seus aliados – portando armas.
 
Uma vez na guerrilha, os homens e as mulheres têm papéis idênticos. “Homens e mulheres têm os mesmos direitos, as mesmas tarefas”, explicou Bibiana Hernández, que se incorporou às FARC há trinta anos. “Assim como vamos transportar, vamos tirar a lenha, vamos dirigir as massas... também vamos ao combate, também vamos enfrentar o inimigo. Estamos nas mesmas condições [que os homens]”. Da mesma forma, as mulheres assumem funções de direção e liderança nas FARC-EP e sua igualdade é parte dos estatutos da organização.
 
As mulheres participantes da Delegação de Paz são de origens diversas. Camila Cienfuegos nasceu numa família campesina e muito jovem viu a pobreza extrema com seus próprios olhos. Laura Villa estudou medicina em Bogotá. Ela mencionou a privatização da educação e da saúde como os fatores que pesaram em sua decisão de unir-se à luta revolucionária das FARC, onde agora contribui com sua experiência médica. Alexandra Nariño, nascida Tanja Nijmeijer na Holanda, conseguiu um trabalho como professora de inglês na Colômbia em 1998 e, num processo gradual de aprendizagem sobre a opressão e a injustiça política, acabou por ingressar à guerrilha.
 
Estas mulheres continuam uma longa tradição nas FARC: a organização foi fundada em 1964, quando 48 camponeses em Marquetalia enfrentaram e superaram o ataque de mais de 10 mil efetivos governamentais. Entre os “Marquetalianos” havia duas jovens mulheres heroicas: Judith Grisales e Miriam Narváez.
 
 
No território livre da América
 
As doze mulheres da Delegação de Paz das FARC são sobreviventes de um conflito brutal, porém ante seu falar suave e suas roupas de civil é possível esquecer as duras realidades da guerra. Pode-se sentar e tomar um sorvete com elas na Coppelia (¹) ou juntar-se na busca de livros usados nas inúmeras livrarias de Havana. É que, apesar de suas tarefas políticas, estas mulheres buscam tempo para a leitura. Diana Grajales, uma guerrilheira do sudoeste da Colômbia, nos disse que está imersa nos livros de Che Guevara.
 
Um dos projetos destas mulheres – além de “rearmar-se” com livros e participar das conversações de paz com os delegados do governo – é fazer contato com organizações de mulheres: “Estamos escutando as propostas que nos chegam das organizações de mulheres na Colômbia”, explicou Alexandra, acrescentando que também objetivam estabelecer relações com grupos internacionais de mulheres. A comandante Yira Castro observou que os movimentos de mulheres são praticamente invisíveis, porém o processo de paz permitiu que as guerrilheiras participantes da delegação conhecessem mais de perto as lutas outras mulheres, compartilhando experiências com elas. As mulheres da Delegação também mantêm uma página na Internet (www.mujerfariana.co) e uma conta no Facebook.
 
Apesar da tranquilidade de Havana, a realidade da guerra irrompe quando se está em companhia da Delegação. A cicatriz no braço de uma companheira ou a lesão de outra nos recorda que o governo colombiano viola sistematicamente os direitos humanos em sua condução da guerra. O da Colômbia é um conflito desigual e imperialista no qual – assim como no Vietnã ou na Argélia – tudo cabe para manter a ordem neocolonial.
 
Muitas destas mulheres sobreviveram a bombardeios com tecnologia de ponta que tanto se parecem às tentativas ianques e israelenses de assassinatos “cirúrgicos”. Algumas perderam amigos próximos e familiares – assassinados a sangue frio ou desaparecidos em valas comuns como a da Macarena (a maior vala comum da América Latina, onde as forças especiais da Colômbia depositaram aproximadamente 2.000 cadáveres) – e pelo menos uma companheira da delegação foi vítima de torturas e violação por parte dos soldados do exército.
 
Laura Villa fala das duras realidades da guerra: “Uma guerra é uma guerra... É uma guerra para conquistar a liberdade dos povos e, nessa guerra, se dão mortos e se dão feridos. Existem mortos que nos sensibilizam demais”. Entre as perdas mais sentidas se encontra a do comandante Alfonso Cano, que iniciou o atual processo de paz e foi assassinado pelo exército há dois anos. Camila Cienfuegos denunciou os abusos sexuais e os desaparecimentos forçados por parte dos militares: “Lembre que temos um episódio bastante palpável que são as madres de Soacha, cujos filhos foram apresentados como falsos positivos (²). Isso também é terrorismo de Estado”. Camila fala do terror do Estado a partir de sua experiência: tem queimaduras de cigarros nas mãos e nos braços ao ter sido torturada durante um interrogatório empreendido pelo exército colombiano.
 
Além das violações aos direitos humanos, existe a constante difamação midiática sobre as combatentes das FARC. Inventam histórias sobre guerrilheiras, histórias que são um simples reflexo da sociedade exterior: uma sociedade que pressiona a mulher a entrar em todo tipo de relações de exploração no trabalho e na vida privada e, às vezes, aceita a ideia equivocada de que as mulheres se veem forçadas a ingressar às FARC. Ainda assim as mídias colombianas dizem falsamente que as guerrilheiras, que desfrutam de condições de igualdade de gênero muito superiores às da sociedade exterior, são meras cozinheiras e acompanhantes sexuais dos comandantes.
 
 
Olhando para a paz
 
Uma das razões de fundo deste tipo de difamação é tentar dividir e cooptar membros das FARC-EP, separando as mulheres dos homens. Essa, dizem as mulheres da Delegação, é uma tentativa fútil, que não impede o número cada vez mais crescente de mulheres que tomam a decisão de mudar o mundo, em lugar de apenas contemplá-lo. Estas manobras midiáticas tampouco fazem com que as mulheres que já estão nas FARC alterem sua visão dos problemas sociais ou abandonem um projeto que reconhecem essencialmente como luta de classes pela justiça social.
 
Este último ponto é importante. As mulheres nas FARC veem a dominação patriarcal como parte da luta de classes e não estão dispostas a separar as causas, erro em que caem algumas feministas. As farianas lutam não apenas pelas mulheres colombianas, mas pela Colômbia em seu conjunto. Assim, a paz que tratam de construir – uma paz com justiça social, uma paz que erradicará as raízes da desigualdade social – será uma paz para toda a sociedade.
 
Como entender, então, a importância das mulheres na luta das FARC-EP? Por que é que, para citar Victoria Sandino, “sem a participação da mulher no processo revolucionário não existe revolução”? Talvez a chave esteja na velha ideia de que esses grupos, os que a estrutura da sociedade coloca entre a espada e a parede, são precisamente os convocados pela história para mudar a sociedade em sua totalidade. Isto é o que se chama uma missão histórica e é uma descrição perfeita da posição da mulher colombiana, cuja situação não se pode melhorar sem mudanças fundamentais em toda a sociedade. Por isso o setor mais consciente das colombianas muitas vezes tomou as armas para mudar as condições que operam em seu país.
 
Hoje esta mesma missão histórica pode conduzir a novas táticas. Com as mudanças profundas que estão sendo vividas em muitos países da América Latina e o ressurgimento do movimento popular colombiano, se abre a possibilidade de que os homens e as mulheres da insurgência pensem numa paz dialogada para conquistar os mesmos objetivos pelos quais sempre lutaram. Porém, isto apenas ocorrerá se o Estado colombiano mudar radicalmente sua atitude e permitir que as forças da mudança participem no âmbito da política legal. A partir deste ponto de partida – uma “janela democrática” obtida com as vidas de muitos guerrilheiros e guerrilheiras –, a força política mais abnegada e comprometida poderia iniciar o processo de desmantelamento das injustiças estruturais do país e a construção de uma paz duradoura.
 
Chris Gilbert é professor de Estudos Políticos na Universidade Bolivariana de Venezuela. Vilma Kahlo está trabalhando em Rosas y Fusiles, un documentário sobre as mulheres das FARC-EP.

Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)

Notas da tradução:
(¹) – Coppelia é uma popular sorveteria estatal numa das principais praças do centro de Havana;
(²) – Falso positivo é uma prática comum das forças de repressão colombianas, que consiste em assassinar jovens, principalmente na periferia, e vesti-los como guerrilheiros, para aumentar a estatística e os assassinos receberem prêmios em dinheiro, por “produtividade”.