Simón Rodríguez: plantador de uma nova América
Por elaine tavares
Findava o século 18 quando nesse
continente dominado pela ocupação espanhola uma voz solitária propõe outra forma
de educar as crianças, para além do simplesmente escrever o nome e soletrar
algumas palavras. Era o jovem Simón Rodríguez, professor numa pequena escola da
cidade de Caracas, Venezuela. Num documento que entra para a história, ele faz
uma ácida crítica ao sistema educacional da época e expõe suas ideias. Segundo
ele, o estado tinha de investir na formação de professores e a educação não
podia mais ficar restrita aos jovens brancos bem nascidos. Era necessária uma
educação popular capaz de formar meninos, meninas, negros e índios. Essa
proposta, revolucionária para aquele então, o colocaria para fora da escola, mas
começava aí a incrível trajetória desse educador sem igual na América Latina.
O começo
Simón Rodríguez nasce em Caracas no
ano de 1771. Ele mesmo contava que fora um menino exposto, daqueles que são
colocados nas portas dos conventos. Foi criado por Caetano e Rosália Rodríguez,
embora sua educação estivesse a cargo do tio, que era sacerdote. Naqueles dias,
a cidade de Caracas era um lugar aprazível, de grandes solares onde viviam os
espanhóis e os criollos, servidos por escravos. Para essa sociedade, o
trabalho era basicamente uma desonra e aos filhos da classe dominante se
permitia unicamente a carreira militar além dos postos de mando da vida
cotidiana. Havia apenas três estabelecimentos de educação na cidade: o convento
dos Franciscanos, uma escola pública e a Universidade. Simón foi alfabetizado em
casa, pelo tio, mas era um garoto aplicado e observador. Amava ler e devorou
cada livro que encontrou na biblioteca do tio, que era bem servida. Na Caracas
daqueles dias chegavam os franceses da ilustração (Montesquieu, Voltaire,
Rousseau) e Simón os conhecia. Também tinha acesso aos escritos que chegavam dos
Estados Unidos e acompanhou o processo de independência daquele país, bem como o
da Revolução Francesa. Forjava-se nele o espírito da rebelião.
Em 1791, com apenas 20 anos, consegue
o cargo de professor na escola pública e tem sob seu comando 114 alunos. Simón
não tem experiência, mas observa que o ensino ministrado não tem um método e
começa a matutar sobre essa deficiência. Amante de Rousseau, quer estabelecer
outra relação com os alunos, mas fica prisioneiro das regras. Então, decide
ensinar alguns dos alunos em sua própria casa, que gradativamente torna-se uma
escola. A cidade olha curiosa para aquele garoto de aparência séria que dedica
sua vida ao ensino. E é essa pequena “fama” que faz com que o tutor de Simón
Bolívar peça ao educador que assuma a educação do garoto, então com nove anos.
Começa aí a relação dos dois Simóns que mudará a face da colônia.
No começo Simón atende o garoto
Bolívar na casa da família e passa a usar com ele as ideias de Rousseau. Uma
educação ao ar livre, repleta de brincadeiras e exercícios físicos. O ensino das
letras vai devagar. Com o passar do tempo, a família de Bolívar percebe que não
há muito avanço e exige mais. Então, Simón propõe que o garoto fique na escola
que mantém em sua casa, junto com os demais alunos. Já naqueles dias a escola de
Simón era bem diferente. Recebia, além de filhos da aristocracia, crianças de
famílias pobres, uma coisa praticamente inédita para a época. E lá se vai
Bolívar estudar com negros e índios, além de dividir o quarto, coisa até então
impensável para um herdeiro criollo. Há quem diga que foi aí que aquele
que seria o “libertador” forjou seu amor pelas gentes da América. Mas, isso são
especulações.
O certo é que Simón não se conformava
em ver a educação das crianças colocada nas mãos de gente sem formação e sem
método. Então se dispõe a registrar uma crítica avassaladora do sistema. Escreve
o texto: “Reflexões sobre os defeitos que viciam a Escola de Primeiras Letras de
Caracas e os meios para uma reforma por um novo estabelecimento”. Nele, o jovem
professor arrasa com o sistema vigente, critica o fato de só ser oferecida
educação às crianças brancas e aponta a necessidade de educar as crianças
pobres, aos agricultores, aos artesãos. “O regime deve ser de igualdade”, diz.
Mostra também que o sistema não se preocupa com a formação dos professores e
insiste que esse deve ser o principal fator de mudança. Como proposta exige o
aumento do número de escolas, capaz de atender todas as crianças em idade
escolar, a formação de professores profissionais, salários dignos para os
educadores, jornada de seis horas, móveis adequados para o ensino e finalizava
exigindo que se tomasse a sério a escola de primeiras letras. “Uma escola até
pode ser superficial, mas não inútil. O aluno não pode esquecer o que aprendeu.
Há que ter cuidado e delicadeza para dar às crianças a primeira ideia de uma
coisa”. Dizia isso porque havia a tradição de ensinarem até nas barbearias,
enquanto afeitavam os clientes. Simón abominava isso. Defendia que como nessa
idade a criança se distrai com qualquer coisa, era necessário um ambiente
adequado e que o professor também prestasse atenção nas brincadeiras. “É
necessário saber ler em todos os sentidos e dar a cada expressão o seu próprio
valor”.
As reflexões de Simón não são bem
vindas, nem na escola nem na administração. Ele se indigna e deixa o cargo,
seguindo apenas com sua escola, em casa. Nesse meio tempo se engaja num
movimento conspiratório pela independência que já existia em Caracas. O grupo é
descoberto e Simón acaba fugindo para a Jamaica, visando escapar da justiça
colonial. No dia do embarque recebe a visita de seu aluno, Bolívar, do qual se
despede. Chegando à Jamaica Simón troca de nome, passa a chamar-se Samuel
Robinson. Não quer nenhuma ligação com a vida antiga e jura nunca mais voltar à
Venezuela. Pouco tempo depois vai para os estados Unidos onde fica por três anos
trabalhando numa gráfica. Lá, ele aprende a editar e inventa uma nova forma de
montar os textos, usando letras maiúsculas para destacar bem como criando
manchetes.
Tem 30 anos (1801) quando embarca
finalmente para a França. Lá abre escolas, ensina espanhol e inglês, lê como um
louco e vai consolidando seu pensamento educativo. Três anos depois encontra, em
Viena, seu antigo aluno, Bolívar, que passa a conviver com o mestre. Eles lêem,
estudam e viajam juntos. No ano de 1805 os dois seguem à pé até a Itália,
aproveitando para discutir a realidade do mundo e da velha pátria
colonizada. E é justamente no Monte Sacro que os dois fazem seu histórico
juramento: libertar a pátria ou morrer. A partir daí, Bolívar retorna para a
Venezuela, onde nos anos seguintes vai dar consequência a essa promessa. Simón
segue no velho mundo criando escolas por todo o lugar onde passa: Itália,
Alemanha, Prússia, Polônia e Rússia. O educador acompanha as façanhas de seu
aluno na colônia e percebe que a vida por ali está prestes a sofrer uma grande
transformação. Decide então, voltar para casa.
O retorno para a
América
Simón tem 52 anos quando desembarca
em Cartagena em 1823, disposto a dar todo o seu conhecimento para construir a
Pátria Grande, liberta do jugo espanhol. Vinha honrar o juramento que fizera com
Bolívar há quase 20 anos. As guerras de independência já estavam quase
consolidadas. Bolívar era o grande libertador e comandava os destinos de toda a
Gran Colômbia. Simón então viaja até Bogotá onde começa a pôr em prática a sua
proposta pedagógica, amadurecida por longos anos de estudo e prática. Todos ali
já sabem que ele é o grande mestre de Bolívar e todos os recursos são colocados
à sua disposição para a criação da Casa de Indústria Pública, o que vem a
ser o inovador método educativo de Simón. Nessa casa as crianças teriam ensino
por tempo integral e além de estudarem as matérias clássicas aprenderiam também
um ofício, aprendendo artes mecânicas. Seu foco eram as crianças mais pobres,
que precisariam enfrentar o mundo que nascia com uma formação adequada. O
educador entendia que o que estava nascendo era uma forma nova de ser nação e
por conta disso era necessária também uma nova educação. “Formar o povo deve ser
a única ocupação dos que se ligam a uma causa social”, dizia e, para ele, as
novas repúblicas eram essa causa social.
Toda a sua linha de agir pedagógico
já tinha sido eternizada num escrito chamado: “Sociedades Americanas”, que ele
só conseguirá editar em 1828. Nele, Simón defendia que o aluno dessa nova forma
de ser nação tinha de ser um sujeito pensante. “O que pensa, procede segundo sua
consciência. O que não pensa, só imita”. Sua preocupação não era formar letrados
e sim cidadãos, pessoas capazes de compreenderem seu espaço geográfico e
político. Por isso insistia que em vez de papagaiar sobre os persas e os
egípcios era necessário entender os índios. Simón queria tomar para si a tarefa
de educar os jovens pobres que estavam pelas ruas, os abandonados, os
ilegítimos, fazendo com eles se tornassem homens cientes de seus direitos na
nova sociedade. “Deixemos a França e vejamos a América”, bradava. Sua proposta
era de educação popular para que todos pudessem viver sem amos. “Na educação
popular o filho do sapateiro se educa como o filho de um negociante. Ambos
aprendem a faculdade do pensar. A instrução é para o espírito assim como o pão é
para o corpo”. Simón tinha plena certeza de que se todos fossem instruídos, os
ignorantes de então poderiam vira a ser conselheiros e os ladrões, companheiros
de viagem. Certo de que a ignorância era a causa de todos os males, seu remédio
era a educação. “A América é original, original hão de ser suas
instituições e seus governos, e originais os meios de fundar um e outro. Ou
inventamos ou erramos”.
Simón Rodriguez não podia conceber
que a nova nação se erguesse sob bases antigas, sob imitações da Europa. Queria
saídas originais e sabia que isso era possível. Queria homens e mulheres capazes
de gerir sua própria história sem precisar de heróis ou mitos. Um homem que
pensa é um homem livre, afirmava. E, para isso, era preciso investir tudo na
formação de professores. Depois, com eles, criar as condições para que o ensino
fosse um fazer-se compreender e não o velho estilo de trabalhar a memória. A
proposta era formar homens úteis à República. Também insistia que era necessário
educar e ensinar as mulheres “para que elas não se prostituíssem por
necessidade, nem buscassem o casamento para garantir sobrevivência”. Toda a base
de sua pedagogia era mesclar o ensino social, corporal e científico. “O
fundamento do sistema republicano está na opinião do povo. Ninguém faz bem o que
não sabe, então não se pode fazer uma república com gente ignorante”.
Seu conceito original de escola, a
escola social, é o que ele tenta pôr em prática na Colômbia, mas não encontra
eco. Ele queria formar pessoas que atendessem a uma autoridade social e não
pessoal. Foi o precursor da Escola de Artes e Ofícios, da Universidade Popular.
Na época, comandava a Colômbia aquele que viria a trair toda a proposta de
Bolívar: Santander. E obviamente esse tipo de ensino não lhe era favorável.
De novo com Bolívar
Quando Simón finalmente encontra
Bolívar, depois de mais de ano de sua chegada, decide que não é mais possível
ficar na Colômbia e segue com seu antigo aluno rumo ao Peru. Bolívar quer que o
velho mestre se incorpore ao esforço de construir a grande pátria americana e
não mede esforços nem recursos para que ele consiga colocar em prática suas
ideias educativas. Simón segue então para a cidade de Cuzco onde cria um colégio
já dentro do seu padrão: para crianças pobres, com ensino de ciências, arte e
trabalho. Para isso usa os espaços e o dinheiro das congregações religiosas, o
que também já coloca uma boa parte do clero contra ele. Mas, como está com
Bolíviar, tudo vai se fazendo conforme as regras ditadas por Simón. Em várias
cidades peruanas surgem colégios desse tipo. Logo em seguida eles partem para a
Bolívia aonde vão se encontrar com Sucre. Na cidade de La Paz Simón estrutura
uma biblioteca e Bolívar decide nomear o professor para comandar todo o processo
de Educação no nascente país. Assim, no ano de 1825, Simón é nomeado Diretor de
Ensino e prepara um Plano Educativo para o governo de Sucre. Entendia ele que o
primeiro dever de um governo é dar educação ao povo e, assim, monta uma proposta
semelhante a que tinha tentado trabalhar na Colômbia: uma escola social. Para
isso buscou recolher todos os órfãos que andavam vagando pelas ruas e os colocou
em ambiente adequado para o ensino das artes, da ciência e do ofício. Também
procurou acolher as meninas, as quais acreditava mereceriam também receber
educação. Da mesma forma que no Peru, também usou propriedades da igreja.
Bolívar segue seu caminho e deixa
Simón na Bolívia. Sem a proteção do libertador, Simón vai perdendo apoio no seu
projeto. As autoridades locais, os padres e até mesmo Sucre não conseguem
entender os métodos de caraquenho. É que ele insistia em proporcionar aos alunos
aquilo que havia de melhor. Os melhores móveis, as melhores máquinas para o
trabalho, os melhores professores. Tudo isso custava dinheiro e, no meio da
guerra, os que estavam no comando acreditavam que havia coisas mais urgentes
para investir. Seis meses depois de estar no cargo de Diretor Geral, ele sai de
Chuquisaca e vai para Cochabamba criar mais uma escola. Aproveitando a ausência,
o prefeito da cidade fecha a sua Escola Modelo que abrigava mais de 200
crianças. “Essa é uma escola para cholas e filhos de putas”, dizia o prefeito, e
pregava a necessidade de ter uma escola apenas para “gente decente”. Intrigado
com os padres que não queriam ver os bens da igreja sendo dispensados aos
garotos pobres e aos índios, Simón vai sendo derrotado. Até mesmo Sucre o
repreende pelo alto valor dos gastos e Simón se sente insultado. Então, renuncia
ao cargo e sai da Bolívia. “Por querer ensinar mais do que todos sabem, não me
entenderam, muitos me depreciaram, e alguns me ofenderam. Entretanto, para fazer
republicanos é preciso gente nova”.
Derrotado na Bolívia ele volta ao
Peru, vai para a cidade de Arequipa onde escreve seu livro “Sobre o Projeto
Popular” que é a sistematização das experiências que ele havia dado início na
Colômbia e na Bolívia. Ali orienta, mais uma vez, o ensino da ciência, das
letras e de ofício, defende a educação das meninas, dos índios e dos pobres.
“Todos devem ser bem alojados, bem vestidos e alimentados”. Sua proposta era de
educação integral. Além disso, preocupava-se com a situação dos pais das
crianças. Acreditava que era preciso garantir trabalho a eles, e socorro se
fossem inválidos. “Há que formar homens úteis, dar-lhes terras e auxiliar nos
seus negócios”. Não é sem razão que o método de Simón é visto como assustador
pelos novos dirigentes criollos. Sua proposta educativa era também uma
revolução social e econômica.
Educação colonizada
Naqueles dias em que a independência
se consolidava não eram poucos os educadores europeus que vinham oferecer seus
serviços a Bolívar e aos outros dirigentes das repúblicas. Um deles foi
Lancaster. Seu método aparecia como muito mais interessante para os novos
governadores porque era bem mais barato do que o de Simón. Lancaster propunha
que os alunos mais adiantados fossem os professores dos menores, o que para
Simón era uma vilania. Afinal, o pilar de sustentação do seu método era
justamente a formação dos professores, a qualificação dos mesmos. “Instruir não
é educar, nem instrução pode ser equivalente à educação, ainda que instruindo se
eduque”, dizia, mostrando que aluno não podia educar aluno. Acreditava que na
primeira escola as crianças, mais do que aprender a pintar as palavras,
precisavam aprender a pensar e a raciocinar. E isso era tarefa para gente
capacitada a educar. Simón trabalha com uma pedagogia prática: expõe como
ensinar lógica, o idioma, o cálculo, a história, sempre por princípios e “como
os princípios estão nas coisas, se ensinará a pensar”. Esse era seu mantra. “Ler
não será estropear palavras para ganhar tempo, mas sim dar sentido aos
conceitos. Assim, quem não entende o que está lendo, não deve ler”. E assim
esgrimia sua crítica ao método lancasteriano. “O que pode ler aquele que não tem
ideias?” Simón acreditava que ensinar mal era um crime que se cometia contra
aqueles que deveriam ser os novos dirigentes na nova América.
Morre Bolívar
O ano de 1830 é particularmente
triste para todo o continente sul-americano. A proposta de Bolívar de criar uma
grande pátria, compostas por províncias interdependentes, fracassa. Traído pelos
velhos companheiros, doente, Bolívar vê seu sonho desmoronar como um castelo de
cartas. Certos de que a enfermidade vencerá o libertador, os novos dirigentes
vão dando fim a qualquer rastro da Pátria Grande idealizada por ele. Sucre, que
seria o braço direito do libertador e seu natural sucessor, é assassinado em uma
emboscada. Pouco depois, Bolívar morre, abandonado e degredado. Para Simón, tudo
aquilo também significaria a derrota de seu projeto de educação. Sem seu velho
amigo e marcado como um dos homens de Bolívar, Simón terá seu caminho
sistematicamente travado a partir daí.
Abandona Arequipa e segue para Lima,
onde recomeça a dar aulas. Mas, não consegue avançar no seu método. As famílias
“de bem” o chamam de louco e imoral, porque ele insiste em educar as meninas e
os índios. Ainda assim, insiste na crítica à educação da época, escrevendo num
jornal local: “Para ser uma república há que se investir em educação popular.
Com homens já formados só se pode fazer o que se faz hoje: desacreditar a causa
social”.
Simón permanece em Lima até o ano de
1834, quando completa 60 anos. Recebe o convite de um amigo para ir ao Chile ser
reitor de um Colégio Provincial. Apesar de todos os ataques que sofre, ainda
restam muitos seguidores de Bolívar, muitos homens dispostos a dar outra cara
para as repúblicas nascentes e é aí que ele se ampara. Che ao Chile e prefere
dirigir uma pequena escola, onde seu método pode vingar. Lá, ele ensina a partir
de quatro quadros, que desenha na lousa. O primeiro era o fisionômico, no qual
repassava as noções acerca das matérias e dos ofícios. O segundo era o
fisiográfico, no qual repassava o conhecimento mais aprofundado sobre os temas.
O terceiro era o fisiológico, no qual ensinava as ciências e o quarto era o
econômico, no qual ensinava filosofia. Sua maneira de ensinar era expositiva.
Não usava textos, apenas os quadros sinópticos, sempre apontando explicações que
estivessem ao alcance dos alunos. “Encontrem vocês as suas ideias, para fixa-las
e retê-las na memória. Procurem armazenar as ideias e se perguntem sobre o que
fazer”.
Um homem sem raiz
Quando tudo parecia caminhar bem,
alguma coisa acontecia e obrigava o velho educador a se mover. Era como se ele
fosse predestinado a não encontrar guarida. Um ano depois de estar no Chile, um
grande terremoto destrói a escola e faz com que Simón mude-se outra vez. Segue
agora para Santiago onde abre uma escola e uma fábrica de velas, para dar aos
alunos a possibilidade de aprender um ofício. Continua tentando imprimir uma
educação transformadora, ainda acredita na possibilidade de um mundo novo. “A
educação pública no século XIX pede muita filosofia. O interesse geral está
chamando por uma reforma e a América está chamada pelas circunstâncias para
empreendê-la. A América não deve imitar servilmente e sim ser original. Ideia,
ideias, primeiro que letras”.
Naqueles dias, apesar de todos os
infortúnios, Simón era muito procurado por educadores de todo o mundo. Vinha
gente da Europa para conhecê-lo e aprender seu método. Mas, na América mesmo,
sua voz era como pérolas aos porcos. Tanto que as escolas que criava acabam se
fechando por falta de recursos. Não havia quem bancasse. E os que bancavam
exigiam mudanças, queriam baixar os custos. Simón não aceitava. Foi o que se
passou em Valparaíso, onde foi também obrigado a desistir da escola, embora
seguisse com a fábrica de velas. Com sua fina ironia, dizia: “A liberdade me é
mais querida que o bem estar. Vou continuar iluminando a América, sigo fazendo
velas”.
A experiência chilena logo se desfaz
e Simón volta para Lima onde permanece até o ano de 1843. Lá, aproveita o tempo
para escrever seus livros. Tem 72 anos quando desde o Equador, um velho amigo o
chama para ensinar na cidade de Latagunga. Atravessa os Andes no lombo de uma
mula, mas não fica por lá muito tempo, em função da instabilidade política. O
chamam da Venezuela, mas ele se nega a voltar. Segue então para a Colômbia outra
vez. Apesar da idade, está forte e continua abrindo escolas por onde passa.
Quando completa 80 anos de vida retorna para o Equador onde permanece por três
anos ainda ensinando no Colégio São Vicente.
No final do ano de 1853 decide voltar
para o Peru com o filho José e um amigo. Leva com ele tudo o que tem. Uma muda
de roupa e duas caixas de livros. Sem recursos, eles decidem ir por mar, numa
balsa. O mar encapelado, tempestades e eles se perdem. Quase naufragam. Acabam
batendo numa pequena comunidade de pescadores. Simón está muito fraco e tem
problemas de intestino. Os pescadores temem que seja doença contagiosa e
expulsam os viajantes. O amigo vai até a aldeia, buscar ajuda junto ao padre.
Explica quem é Simón, sua situação e o padre decide ajudar. Mas, depois,
informado de quem era Simón, chamado de louco e imoral, não deixa que o velho
venha para a aldeia. O confina numa propriedade fora do povoado. Simón vai
definhando. Apenas uma caridosa mulher leva comida, apesar de ter sido proibida.
Dois dias antes de morrer, manda chamar o padre. Ele vai, achando que o velho
vai se confessar. Não o faz. Segundo o amigo, Camilo Gomez, ele apenas disserta
uma arenga materialista e diz que a única religião que teve na vida foi o
juramento que fez, junto com Bolívar, no Monte Sacro, de libertar a América. No
dia seguinte, morreu. Foram 83 anos de caminhada pelo mundo, incompreendido,
amaldiçoado. Mas nunca traiu seus princípios.
O legado
Simón foi, em tudo, um homem
original. Casou-se cedo, teve um filho, mas não viveu para ser um pai de família
tradicional. Seu destino era o de ser um plantador de escolas por todo o lugar
onde passou. E não foram poucos. Saiu da Venezuela, por conspirador, e nunca
mais voltou. Mas nunca deixou de mandar dinheiro para a esposa, apesar de nunca
mais vê-la. Forjou seu pensamento acerca de educação na crítica sistemática e
seu maior legado foi ter pensado a América desde a América. Não foi capaz de se
oportunizar das novas possibilidades do mundo novo que se abria. Insistiu no seu
método de ensinar a pensar os meninos, as meninas, os negros e os índios, a quem
chamada de “os donos do país”. Queria formar gente capaz de ser sujeito de
sua própria vida. “Dos brancos não espere nada. Mais vale entender os índios que
a Ovídio”. Acreditava que a escola devia ser um lugar de acolhimento, com espaço
para a educação e a brincadeira, tirando as crianças da rua. Queria seres
pensantes: “Que aprendam as crianças a serem perguntadoras, para que pedindo o
porquê se acostumem a obedecer a razão, não à autoridade como os limitados, nem
aos costumes como os estúpidos”.
Simón também ensinava a partir da
realidade local, da observação da realidade da criança. “Se ensinamos ciências
exatas e de observação, os jovens aprenderão a apreciar o que pisam”. Ministrava
uma educação social, não individual. Propunha-se a tirar o pobre da ignorância.
“O homem não é ignorante porque é pobre, senão o contrário. Ensinem e terão quem
saiba, eduquem, e terão quem faça. A América não deve imitar servilmente, deve
ser original”.
Aquele que forjou Bolívar par a
libertação tinha tanto amor pela educação que, apesar de toda a sisudez, foi
capaz de produzir poesia. “Ler é ressuscitar ideias sepultadas no papel. Cada
palavra é um epitáfio. Chamá-las à vida é uma espécie de milagre e, para
fazê-lo, é necessário conhecer o espírito das palavras”. Tratado como louco ele
ficou esquecido por longo tempo. Agora, tal qual as palavras que amava, ele
também ressuscita, para assumir seu lugar no panteão dos grandes sábios dessa
Abya Yala.
Simón Rodriguez, Samuel
Robinson,
presente!
Referências
Obras completas de Simón Rodríguez –
Tomos I e II. Presidencia de la República. Venezuela, 1999