"A LUTA DE UM POVO, UM POVO EM LUTA!"

Agência de Notícias Nova Colômbia (em espanhol)

Este material pode ser reproduzido livremente, desde que citada a fonte.

A violência do Governo Colombiano não soluciona os problemas do Povo, especialmente os problemas dos camponeses.

Pelo contrário, os agrava.


quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Um olhar diferente em torno da justiça transicional


Um olhar diferente em torno da justiça transicional
«Pode-se afirmar que, se a expressão econômica da globalização capitalista são os tratados de livre comércio, sua expressão jurídica é a justiça transicional»
A decisão de Juan Manuel Santos de pisar fundo o acelerador nas conversações que se adiantam em Havana tem relação direta com sua concepção mesma do processo de paz em geral. O verdadeiramente importante para o Estabelecimento é o relacionado com a deixação de armas e a reincorporação dos guerrilheiros à vida civil. Por esse grande momento esperaram dois anos, com tremenda impaciência, sim, porém com o propósito claro de exigir tudo das FARC agora mesmo. A seu ver, terminaram as jornadas nas quais era o Estado quem devia ceder, e é agora a insurgência quem está obrigada a responder as exigências da sociedade.
A mais elementar lógica impõe que, chegando-se a um acordo definitivo de paz, devam desaparecer as FARC como estrutura político-militar. Tal eventualidade deverá corresponder-se com sua inserção legal e ativa à política nacional. Nenhuma destas duas hipóteses se opõe à concepção estratégica da organização revolucionária em seu caminho ao poder. Porém, não cabe dúvida de que a segunda delas deve ser materializada num ambiente democrático e pleno de garantias. Tal é o espírito geral do Acordo Geral. No entanto, na hora da verdade, chegado o momento, se começa a observar que a contraparte não pensa do mesmo modo.
Para ninguém é um segredo, posto que se tornou público por parte de numerosos porta-vozes e funcionários oficiais que a posição governamental está fundamentada na apelação à chamada justiça transicional, o único marco de princípios e normas que considera idôneo para a definição dos temas mais difíceis e sensíveis objetos do processo. As FARC-EP somos uma organização revolucionária, marxista e bolivariana, que defende as bandeiras das classes oprimidas pelo regime vigente. É elementar, então, que, frente ao discurso sobre a justiça transicional, apresentemos um ponto de vista oposto ao das classes dominantes.
Poderíamos começar por uma afirmação categórica. Numa sociedade mundial caracterizada pela divisão em classes sociais, pela predominância de certos Estados ricos e poderosos sobre a imensa maioria pobre e dominada, pelo saqueio e imposições econômicas e políticas do grande capital transnacional sobre continentes inteiros, pelas abismais diferenças de toda ordem no interior de cada país e entre as nações mais opulentas e as demais, resulta uma verdadeira afronta aos povos sustentar que existem princípios universais aplicáveis a todos sem distinção.
Tal e como existem estratificações sociais no interior de qualquer cidade, as há também no mundo entre umas nações e outras. Reconhecer esse fato não significa aceitá-lo como justo ou necessário, mas sim atender objetivamente à realidade. Os Estados Unidos não significam o mesmo que o Haiti, do mesmo modo que Burundi não pode se equiparar à Suécia. A ordem internacional existente, apesar de todas as formalidades legais e belos princípios, não estabelece a igualdade e o respeito para todas as nações e povos, mas sim o domínio aberto e impune de uns Estados sobre outros.
Precisá-lo de modo amplo não é difícil, porém não constitui o propósito central deste artigo. Poderíamos, sim, sustentar que a atual ordem ou desordem mundial é o produto histórico de dois grandes acontecimentos sucedidos no século XX: a segunda guerra mundial e o desaparecimento da União Soviética. Mediante o primeiro deles, o mundo foi testemunha da emergência de um gigantesco poder alternativo ao sistema de dominação e exploração do capitalismo. Como resultado do segundo, nosso planeta ficou completamente exposto aos amos do capital.
Duzentos anos atrás, em emergência plena do capitalismo industrial na Europa e América do Norte, com projeção global, porém reduzidos fundamentalmente ao interior de cada um desses países, foram postos em prática princípios econômicos como a liberdade de empresa e de comércio que, na realidade, significaram a derrubada de todos os obstáculos ao enriquecimento da poderosa classe burguesa. Apagado do mapa o perigo da revolução mundial com a morte da URSS, renasceram os mesmos princípios, agora com toda a voracidade desbocada ao universo inteiro.
Nada nem ninguém poderia se opor à avareza universal do capital. Tudo o existente no mundo tinha que organizar-se para servir a esse propósito fundamental. Nações e povos que não estivessem de acordo seriam submetidos. E, no interior de cada país, o poder político devia repousar em mãos dos defensores dos interesses das grandes corporações transnacionais. Democracias de mercado, tratados de livre comércio, planos de ajuste, doutrinas contra o terrorismo, guerras preventivas, intervenções humanitárias, um novo léxico se impôs.
A justiça transicional é um exemplo vívido da elaboração ideológica e jurídica neoliberal. Apesar de todos os esforços dos teóricos e expertos por apresentá-la como a culminação dos princípios mais avançados da humanidade em matéria dos direitos humanos e de guerra, é, na realidade, a expressão mais elaborada e perfeita da pretensão de impor, com elaborados e atrativos argumentos, a dominação implacável do grande capital transnacional e das nações capitalistas mais poderosas sobre as mentes dos povos explorados e da humanidade inteira.
Não em vão, a ascensão da burguesia como classe dominante veio acompanhada do discurso do constitucionalismo liberal e do estado de direito. Ainda que se intente fazer crer que a herança da revolução francesa de 1789 foi a declaração dos direitos do homem e do cidadão, o que verdadeiramente aplaudem os poderes dominantes foi a expedição por Napoleão dos códigos civil e comercial de 1804 e 1807, que, unidos à tradição jurídica escravagista de Roma, constituiriam o arquétipo do regime da propriedade privada universal burguesa.
O edifício jurídico burguês se levantou sobre a base idealista de considerar que todos os homens eram iguais perante a lei, possuíam os mesmos direitos e deveres frente à sociedade e ao Estado. A realidade material era completamente diferente. Uma classe de proprietários possuía a riqueza em abundância desmesurada, enquanto a grande maioria mergulhava na necessidade. Tratá-los como iguais equivalia a consagrar juridicamente a desigualdade e a dominação dos mais fracos por parte dos mais fortes. Se impôs a primazia da aparência formal sobre a verdade real.
E sobre essa base se elaboraram as construções teóricas, constitucionais, legais e jurisprudências vigentes até hoje. Todos os ensaios por superar o encanto da igualdade ante a lei com a igualdade real nos fatos foram considerados pelos poderes dominantes como infames e perversos. O século vinte é pródigo em exemplos. A revolução bolchevique foi qualificada em seu dia como o maior atentado contra a civilização e a ordem cometida por uma avalanche de mendigos ignorantes e fanatizados. E foi atacada sem piedade nem pudor algum.
Igual passaria mais tarde com as revoluções chinesa e cubana. O povo do Vietnã, que sacrificava dez de seus membros para dar baixa a apenas um soldado invasor norte-americano, era considerado pelo Pentágono como um punhado de macacos aos quais havia que massacrar. O povo da Nicarágua, que coroou com êxito sua Revolução Sandinista, imediatamente foi objeto da mais descarada agressão pelos Estados Unidos, que fundaram os grupos contrarrevolucionários de assassinos e sabotadores, e minaram seus portos para reduzi-lo pela fome e pelas doenças.
Venezuela é o exemplo da hora. Chávez, o buenaço e nobre Presidente adorado até o delírio por seu povo, foi convertido no pior dos monstros pelo mundo capitalista. Do mesmo modo que se havia demonizado a Fidel Castro. Não responde, por acaso ou coincidência, que Josef Stálin e Mao Tse Tung tenham sido elevados ao lado de Adolf Hitler como os maiores criminosos da história da humanidade. O deste último se explica por seu atrevimento ao disputar a hegemonia mundial. O dos primeiros responde à sua colossal obra revolucionária.
O pecado que, por sua transcendência, os poderes estabelecidos não estão dispostos a perdoar. E, para castigar o qual do modo mais exemplar, expediram o conjunto de normas que integram o direito da guerra e dos direitos humanos. Uma contradição em si mesma. Foram as mais impunes violações dos direitos humanos no capitalismo as principais responsáveis pelos levantamentos travados pelos povos e nações em diferentes rincões do planeta. No entanto, são as poderosas potências capitalistas quem determinam a responsabilidade e o castigo.
O regime jurídico internacional que sobreveio à segunda guerra mundial refletiu uma situação de equilíbrio temporária. Em seus inícios, as Nações Unidas foram concebidas como o esforço por instaurar um regime universal de acordo com os interesses do grande capital. Na mesma direção foram criados o FMI e o Banco Mundial. Ter encontrado a firme oposição soviética a essa pretensão representou um duro revés para as grandes potências ocidentais. O [fato de] não poder atacá-la diretamente constituiu a origem da guerra fria e de seu plano de destruição a longo prazo.
Em meio a aflição permanente, a presença soviética significou profundas mudanças no concerto internacional. Pela primeira e talvez única vez na história da humanidade, a soberba e a violência imperialistas tiveram que prestar contas ao mundo por seus feitos, se viram pressionadas e limitadas por um adversário formidável, que, de um ou outro modo, assumia posições favoráveis às lutas dos povos que sonhavam em libertar-se do colonialismo e do saqueio. Pela natureza de seus interesses, o ódio tinha que aninhar-se na alma dos capitalistas do ocidente.
Isso teve reflexo na legislação internacional. Esta não podia assumir plenamente seu papel de codificação dominante por parte dos grandes poderes ocidentais. Talvez tenha sido a melhor época do direito internacional, há que ver como se multiplicaram as declarações de direitos de uma e outra ordem e como se foi estabelecendo na consciência universal uma espécie de critério moral, capaz de distinguir o justo do injusto em meio às maiores pressões. Os grandes movimento pela dignificação humana reverdeceram na segunda metade do século XX.
O que não impediu o capitalismo imperial dos Estados Unidos sufocar por todos os meios possíveis os avanços dos povos. Está demonstrado historicamente que grandes corporações desse país, assim como de várias potências europeias, alimentaram com seus créditos e cooperação técnica a máquina de guerra nazista. Como não necessita de nenhuma demonstração, já que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha assumiram durante a segunda guerra mundial a mais assombrosa tranquilidade ante o terceiro Reich e o Japão, à espera de que devorassem a URSS.
Foi esta última quem carregou sobre seus ombros o peso fundamental da guerra. E quem, após repor-se do ataque germânico inicial, finalmente conseguiu expulsá-los de seu extenso território, para passar, em seguida, a libertar o leste europeu do jugo fascista. Só as certezas de que o terceiro Reich já não conseguiria vencer a URSS e de que, se não intervissem diretamente na guerra, esta última se encarregaria de libertar toda a Europa e originar um mar de países socialistas ou democracias avançadas, precipitaram os EUA e a Grã-Bretanha a cumprirem seu desembarque na Normandia.
E entrar jogando um papel de alguma significação no último ano da confrontação. Vencida a Alemanha, a incerteza de derrotar o Japão obrigou os norte-americanos a recorrerem ao apoio da União Soviética, fato que resultou decisivo para a rendição nipônica, porquanto o grosso do exército japonês de Kuangtung instalado na Manchúria foi demolido pelo Exército Vermelho, que penetrou até as ilhas Kuriles e Coréia. O Japão capitula, por isso, a 2 de setembro de 1945, ainda que todas essas verdades tenham sido apagadas da bibliografia ocidental.
Os Estados Unidos lançaram as bombas atômicas sobre populações civis e não sobre objetivos militares de significação. Apesar disso, os aliados ocidentais, envergonhados patrocinadores do nazifascismo, se auto proclamaram campeões da democracia, dos valores cristãos e da liberdade. Teorias como a doutrina de segurança nacional, concebidas imediatamente por eles, beberam sua inspiração das fontes nazifascistas e viriam a ser aplicadas ao pé da letra nas escolas de formação militar e policial na América Latina, com suas sequelas de sangrentas ditaduras.
Com o propósito exclusivo de aniquilar o despertar dos povos do continente e manter o status quo de dominação e saqueio permanentes. Para o qual se fez necessário sustentar que a União Soviética se encontrava por trás da mais mínima manifestação de inconformidade social ou política em qualquer parte do mundo. Revolucionários e democratas passaram, por isso, a ser considerados como inimigos internos, agentes infiltrados do comunismo soviético e, consequentemente, objetivos militares na guerra contra a obsessão totalitária dos comunistas.
O heroísmo da classe operária, do campesinato, dos distintos estratos marginalizados e discriminados, assim como dos setores médios e intelectuais que levantaram as bandeiras da reivindicação social e política alcançou, então, contornos sobre-humanos, enfrentando os brutais regimes civis ou militares, que, animados pela teoria da guerra preventiva, empreenderam as campanhas de extermínio e terror que comoveram o mundo. Apesar da fúria do capital, não lhe era possível conseguir a condenação ao movimento revolucionário, o impedia a existência do campo socialista.
Outro foi o panorama ao desaparecer este último. Todos conhecemos a reação combinada das burguesias do mundo inteiro cantando a vitória, advertindo entre grunhidos que as ideologias nem as lutas no universo da globalização capitalista triunfante nada tinham que fazer. Fomos testemunhas do gigantesco movimento mundial desencadeado com o objetivo de conseguir a desmobilização de todas as lutas contra o capitalismo. E de como foram arriando as bandeiras em muitos lugares aqueles que se deixaram absorver pelo discurso dominante.
E foi precisamente nesse momento histórico, ao calor das absurdas teorias pseudocientíficas do fim da história, do choque das civilizações e das ondas democratizadoras quando fizeram aparição no mundo do direito as teses da justiça transicional e restaurativa como mecanismos ideais para desvertebrar os movimentos que pudessem conter alguma dose anti sistêmica. Seus elaboradores não tardariam em buscar raízes diferentes a fim de dissimular sua verdadeira natureza, achando-as em Nuremberg e até na antiga Grécia.
Fazê-lo possível significou a assunção de um papel assombrosamente cínico por parte das grandes potências capitalistas e em especial dos Estados Unidos. Eles, que haviam soltado sem nenhuma razão justificável sobre o pequeno e heroico povo vietnamita mais bombas que todas as lançadas por todos os exércitos no curso da segunda guerra mundial, que bloquearam Cuba de maneira inumana, que invadiram Granada e acabavam de ocupar o Panamá, assumiram, de um momento para outro, o título de campeões na defesa dos direitos humanos no mundo.
E se dedicaram a cozinhar em suas universidades e centros de pensamento as mais rebuscadas interpretações acerca do que significam os direitos humanos e suas violações, até o ponto de saturar o ambiente acadêmico com suas aventuradas teorias. De um momento a outro começaram a florescer em todas as esquinas do planeta organizações não governamentais de defesa dos direitos humanos e se outorgou à Cruz Vermelha Internacional um papel destacado na multiplicação dos princípios e normas do direito internacional humanitário.
A Universidade de Harvard se constituiu no grande gerador de ideias nessa direção. Com um enfoque abertamente canalizado a legitimar as políticas agressivas dos Estados Unidos, em seu novo papel de polícia mundial autorizado para intervir em qualquer lugar do planeta onde sua obsessão pelos recursos energéticos o exigirem. Um atado teórico de dimensões universais, com sucursais e agências em todo o mundo, fundações e corporações privadas, oenegês financiadas com generosidade e conferencistas prestigiosos se dedicaram a impulsionar o novo credo.
Que não oculta, por isso, sua natureza predadora. Para os efeitos práticos e visíveis, a justiça transicional, ainda para seus mais fervorosos crentes de boa-fé, se se trata de materializar de algum modo a justiça, deixa poucas satisfações, melhor dizendo, muito poucas, em quaisquer das experiências cumpridas em distintos lugares do mundo. Ante tão opressiva realidade, saltam em seguida as explicações fáceis próprias do mundinho acadêmico: interessante experiência, se criou consciência sobre a necessidade, se reafirmaram publicamente normas e valores essenciais etc.
Nenhum poder dominante foi alcançado graças à justiça transicional. Talvez um que outro dos executores de importância ou muitos subordinados na escala de mando chegaram a ver-se afetados por julgamentos ou condenações, porém a responsabilidade dos grandes poderes saiu sempre incólume. Ainda admitindo que os membros da junta militar argentina tenham sido castigados após uma longa luta, não propriamente da justiça transicional mas sim das vítimas e doridos, cabe pensar que se lhes cobrou mais bem seu ataque à Grã-Bretanha nas Malvinas.
De outro modo, estiveram gozando de alguma deputação vitalícia ou um tranquilo retiro. Não é difícil deduzir quando se observa que, por outro lado, essa mesma potência se negou a entregar Augusto Pinochet para que fosse julgado. O capital transnacional paga muito bem e defende até os máximos extremos aos que lhe servem fielmente. Luis Posada Carriles é um excelente exemplo. Não conhecemos de nenhum tribunal internacional de justiça reclamando-o para submetê-lo a julgamento, nem de reclamações em massa por parte de oenegês. Cuba e Venezuela ficaram sozinhas nisso.
Por outro lado, recordamos que em 2002 a oposição venezuelana reclamava com urgência falar de transição nesse país. E de como, uma vez dado o golpe de Estado de abril, diferentes porta-vozes políticos e de oenegês defensoras de direitos humanos saíram a exigir o julgamento de Hugo Chávez pelos supostos crimes contra a humanidade cometidos por ordem sua no dia onze. O qual nos vai necessariamente situando em torno da origem do termo transicional que adjetiva esta nova justiça. É uma justiça para processos de transição.
E essa palavra, sim, que tem duplo gume. Escutamo-la quando se falou da Líbia e depois com relação ao caso sírio. Não se pode evitar pensar que tal expressão tem uma relação íntima com toda encruzilhada histórica onde os interesses do imperialismo estão em jogo e se requer aplacar a oposição a suas políticas. Se nos dirá que tal semelhança resulta inconcebível quando se examinam casos como o da África do Sul e do apartheid, porém não se pode esquecer que o final deste último se conseguiu ao preço de conservar intocáveis os poderes econômicos que o sustentaram.
Simplesmente, a situação interna da África do Sul e a pressão internacional faziam insustentável a permanência de tão odioso regime, assim que todos os poderes se combinaram a fim de alcançar seu desmonte do modo menos traumático para os grandes proprietários da riqueza sul-africana, que não eram precisamente os negros humilhados. Em situações assim surge com enorme ruído a justiça transicional para limar as asperezas que afetem os interesses das transnacionais. Os determinadores de todas as violências não serão nunca os grandes malvados.
Lá, resultava inconcebível sentenciar a Nelson Mandela e aos demais líderes da luta contra a discriminação. Se impunha obrigatoriamente a convivência. Então, tomou toda sua força o discurso teológico e moral sobre o perdão e a reconciliação como elementos indispensáveis para a conservação da paz no sul da África. Claro, os que estavam obrigados a perdoar eram os negros chutados e cuspidos. Não faltou o bispo oportuno. Por se as dúvidas, também houve sérias murmurações acerca da responsabilidade criminal dos grupos anti apartheid.
Era melhor pactuar. Como mostram alguns telenoticiários internacionais de vez em quando, ali as autoridades continuam assassinando em massa a negros que reclamam seus direitos trabalhistas contra as grandes companhias mineiras, e algumas polícias locais ainda torturam e assassinam negros ao estilo dos velhos tempos. O campeonato mundial de futebol não conseguiu ocultar o rosto da discriminação e da desigualdade. Porém, que caralho, Mandela foi Presidente e se conseguiu evitar uma explosão revolucionária de consequências imprevisíveis na África. Há que aplaudir e calar.
Os amos e seus negócios continuaram sendo os mesmos. Assim como as inumanas condições de vida da imensa maioria negra. É a mesma lógica que se nos pretende impor em Colômbia. Porém, sobre uma base muito mais arrogante e perigosa. Se se examina com algum cuidado as experiências centro-americanas de desmobilização e entrega dos grupos rebeldes, é fácil concluir que havia demasiados elementos que envolviam a responsabilidade do governo e dos militares norte-americanos na execução de tanto crime infame contra esses povos.
Igualmente sucedia nas brutais ditaduras sul-americanas. Resultava impossível ocultar a mão do Pentágono e da CIA nas aventuras das forças militares do cone sul. Talvez isso explique que nos diferentes arranjos para o desmonte dos regimes de terror militar na América Latina dos anos oitenta e noventa se privilegiaram saídas excepcionais de ordem jurídica que, de alguma maneira, impediram chegar ao fundo do assunto. As leis de perdão em Argentina e Chile, seu desmonte e demais incidências pareceram encaminhados a atar a responsabilidade a certos níveis.
Ao fim e ao cabo, os movimentos revolucionários tinham sido defenestrados e destruídos em sua quase totalidade. E do que se tratava não era de instalar democracias abertas, mas sim a modalidade restrita das democracias de mercado absolutamente a serviço da globalização capitalista. Com o aplauso ardente de todas essas organizações não governamentais e fundações criadas para a defesa dos direitos humanos, que pouco a pouco foram arrogando-se para si o ostentoso título de sociedade civil. E, tudo bem, conseguiram-no.
Outra coisa distinta é que resulte impossível extinguir a luta dos povos, como continuam demonstrando os novos movimentos políticos e sociais em pé de luta ao sul do continente. Que, de algum modo, estragam a festa do neoliberalismo de suas classes dominantes. A experiência colombiana é muito diferente. Começando porque os movimentos insurgentes estão muito longe de serem vencidos pela via da força. E porque o que estes questionam, em coincidência com crescentes setores da luta popular, é precisamente o modelo econômico imposto ao país.
Que não é outro que o saqueio generalizado das riquezas naturais e de sua força de trabalho pelo grande capital transnacional. Porém, sobretudo, a diferença radica em que agora está presente uma nova etapa na dominação internacional. O imperialismo perdeu qualquer sintoma de decência e exibe uma ostentação demencial de sua força militar para massacrar a oposição a suas políticas em qualquer rincão do mundo. Com as bandeiras da guerra contra o terrorismo e as intervenções militares preventivas, exige obediência total sem discussões.
Por isso, o perigo da guerra como uma ameaça para a humanidade está hoje mais presente que nunca. Os EUA requerem dominar por completo as fontes energéticas do Oriente Médio e nesse empenho utilizam seu aliado incondicional de Israel. Ameaça Coréia do Norte e China. Sua atitude habitual não é outra que a intolerância com a oposição aos desígnios das corporações financeiras transnacionais. E deu o passo correspondente na ordem normativa. Soberania, garantias do estado de direito e autodeterminação dos povos terão que desaparecer.
Acordos Internacionais estabelecem princípios e artigos que não podem ser desconhecidos por ninguém, e que autorizam inclusive os poderes internacionais a intervirem onde se desconheçam. Na atual fase desesperada da expansão capitalista, fizeram emergência o Tribunal Penal Internacional e as chamadas obrigações de cada Estado com as vítimas dos conflitos e dos regimes antidemocráticos, que os mais expertos juristas aplaudem como gloriosos avanços da civilização, desconhecendo seu aberto caráter de classe e de submissão dos povos.
Agora, se nos diz que na última década a justiça transicional deixou de ser uma justiça para tempos de transição e passou a converter-se numa justiça permanente e universal. E que, graças a seus inovadores mecanismos, as democracias serão intocáveis e se castigará exemplarmente aos que se levantem contra elas. Há tratadistas que honestamente reconhecem que a justiça transicional permanente representa, na realidade, a proscrição de qualquer tipo de resistência popular aos regimes políticos. O que não lhes impede de aplaudi-la por sua sã intenção.
Basta hoje com que qualquer dos poderes dominantes ao interior de um país ou no campo internacional acuse a seus opositores de perpetração de um crime de guerra ou de lesa-humanidade para fazê-los merecedores da condenação aos mais profundos infernos. É a isto o que os iludidos acadêmicos e inumeráveis organizações defensoras de direitos humanos atribuem a mais alta dose de civilização e justiça. O imperialismo e seus agentes determinaram o que se pode chamar democracia e o que não, qual guerra é justa e admissível e qual não.
Partindo de uma auto qualificação democrática derivada do simples fato de estar do lado das políticas que interessam ao grande capital transnacional, e da mais odiosa atribuição de justiça a todas as guerras empreendidas contra os povos em defesa dos interesses das mesmas corporações. E o fazem no mesmo momento em que o mundo inteiro se horroriza pelas atrocidades cometidas por suas tropas em múltiplos cenários como Afeganistão, Paquistão ou Iraque, ou por seus aliados incondicionais, como faz Israel impunemente contra a Palestina.
Expõem-no simultaneamente com o patrocínio dos golpes de Estado em Honduras e Paraguai e as tentativas desestabilizadoras contra Venezuela, país ao qual os poderes imperiais e vizinhos ajoelhados ante os ianques qualificam como a mais repudiável ditadura, por cima da atuação permanente e massiva do povo venezuelano em defesa de sua revolução. No momento em que financiam e dotam de armas ao terror fabricado em Síria, Iraque, Irã, África e na própria velha Europa. As grandes cadeias televisivas reproduziram as imagens de Kadafi sodomizado antes de assassiná-lo. Sua intenção não foi a denúncia, mas sim a advertência.
Nenhuma dessas maquinações contra o mais elementar sentido da justiça merece a objeção ou a condenação de tão respeitáveis instituições internacionais, centros de produção do pensamento civilizatório ou oenegês defensoras dos direitos humanos. As mesmas que, nas mais absolutas condições de desconhecimento das realidades do conflito armado colombiano, que não é um assunto de agora e sim de meio século de perduração, não vacilam em somar-se ao coro dos que qualificam a insurgência pátria como umas forças degradadas e envilecidas.
Às quais há que impor as mais humilhantes condições no caso de chegar a combinar com elas algum tipo de pacto amigável com vistas a pôr fim ao conflito. Se trata de exemplarizar ante o conjunto dos povos o custo que tem sustentar a rebelião na situação de domínio global imperialista. Por isso se repete que as conversações em curso têm de ser entendidas como a última oportunidade que resta às FARC, para entender-se de boas migalhas não só com o estabelecimento colombiano como também com a comunidade internacional.
A qual se pretende entendamos como um corpo único, sólido e impermeável a nossas razões. A simples pretensão é ridícula. Apesar da propaganda midiática e dos discursos das classes dominantes, uma das características do mundo atual é precisamente a multipolaridade, como que o tempo da solitária arrogância imperial norte-americana começa a declinar ante novas realidades. Uma grande parte da comunidade mundial observa com crescente desconfiança a mania dos Estados Unidos e seus aliados de situar-se à margem dos efeitos da lei internacional.
Apesar de que as teorias jurídicas que sustentam a globalização capitalista atual surgem da Universidade de Harvard e outras prestativas instituições de educação superior na Europa, para ninguém resulta indiferente que as primeiras nações que se declaram eximidas de qualquer responsabilidade penal ante a juridicidade internacional sejam precisamente essas grandes potências. O Estado colombiano, tão profundamente preocupado pelos direitos das vítimas, não vacilou em exonerar de qualquer tipo de responsabilidade penal os militares gringos agasalhados aqui.
Em abjeta sujeição às imposições do governo dos Estados Unidos, quem, ademais, exigiu o compromisso de abster-se de recorrer a qualquer tribunal internacional em busca de justiça pelos mesmos fatos ilícitos. Semelhantes patentes de flibusteiro concedidas de antemão ao principal violador dos direitos humanos no mundo falam por si sós acerca da seriedade do discurso sobre direitos humanos das classes dominantes em Colômbia e da vontade real de respeito e sujeição às normas internacionais cujo cumprimento sagrado se exige das FARC.
Vistas assim a generalidade das coisas em torno da justiça transicional, convém lançar um olhar sobre a maneira como nos estão expondo o assunto. Em primeiro lugar, a justiça transicional nos é apresentada como o produto de diversas experiências de saídas negociadas a regimes ditatoriais ou a situações de guerra interna, isto é, como o simples produto do trabalho consciencioso de muita gente preocupada em pôr fim a situações de crises em matéria de direitos humanos e direito humanitário, sem nenhuma intenção econômica ou política oculta.
Um esforço por encontrar a fórmula extraordinária de conciliação e salvação, a saída mais prática a uma situação de conflito onde não existem vencedores nem vencidos. Porém, em seguida se acrescenta, desde logo, que girando em torno a uns pressupostos que todo o mundo está obrigado a reconhecer, certos princípios universais indiscutíveis. Consistem em leis internacionais fixadas em tratados bilaterais ou multilaterais que exigem a punição para uma série de delitos. Ainda que não há que alarmar-se, pode-se chegar a acordos acerca dessa punição, espécies de penas alternativas.
Que, ademais, se aplicarão de modo seletivo, para os casos mais graves e os mandos mais importantes. Obviamente, se fala das duas partes do conflito, o que conduz necessariamente a concluir que a suposta generosidade para [com] os opositores do regime aponta na realidade a beneficiar aos agentes criminais do Estado. Já está montada toda a parafernália midiática para sustentar que mal poderiam os guerrilheiros desfrutar de sua liberdade pessoal enquanto os heroicos militares e policiais envolvidos nos piores crimes pagam longas penas de prisão.
Como se se tratasse de um assunto menor, também se adverte que os sentenciados por esse tipo de crimes terão que pagar suas penas, isso não terá remédio. Haverá que entendê-lo como algo semelhante aos mortos em combate, já não se poderá fazer nada por eles. Desta maneira, vai se apertando a corda que indica a salvação para os que ainda podem se salvar. Se compreende que terá que acrescentar algo mais, a confissão plena do crime, suas motivações e detalhes. E, desde logo, como é natural, expressar o arrependimento e pedir perdão publicamente.
Haverá outros detalhes alternos, como a integração de uma comissão da verdade que produzirá seu veredito final para a história. E reparações para as vítimas. Claro, compreendendo de antemão que se trata de atender realidades mais que desejos, isto é, calculando cuidadosamente o alcance das finanças estatais. A grande massa de reparações será bem mais de índole moral. Museus da memória, atos públicos, edição de cartilhas. O importante é compreender que, graças a tudo isso, se terão conquistadas a paz e a democracia.
Bem, há um ponto que propiciará a estocada de morte às violências de todos os extremos. Se chama as garantias de não repetição, uma série de medidas encaminhadas a que todo o horror passado não voltará a se produzir. Quanto se tem, como sucede em Colômbia, a perspectiva de contar com uma democracia respeitável e um plano de desenvolvimento para a prosperidade geral, se considera facilmente que todas as violências são responsabilidade dos alçados em armas. E que a melhor garantia de que não se repitam será sua desmobilização efetiva. Assim veem eles as coisas.
E é a essas, nem mais nem menos, as concepções a que nos devemos enfrentar. O Estado em Colômbia, como sucede no conjunto da órbita capitalista, afirma representar os interesses de todos os cidadãos e nisso alicerça seu direito a exercitar a violência. É questão de concepção, de enfoque dominante, se reproduz no campo local a dimensão guerreirista e intolerante do grande capital em escala mundial. Comove no mais profundo que os que se chamam implacáveis defensores dos direitos humanos se acoplem a essa lógica e a legitimem sem pudor.
A violência e o terror de Estado não lhes parece um grande problema, quando na realidade são o verdadeiro problema. Nenhuma das violências que se sucedem na sociedade, e com maior razão a violência política com que reagem os povos, é alheia à máquina de repressão estatal e ao sistema explorador e injusto em que esta se alicerça. Em Colômbia, e podemos afirmar após meio século de confrontar ao regime com armas, tem sido o Estado, seu regime político, suas classes econômica e politicamente dominantes os responsáveis diretos de todas as violências políticas.
E se é obrigação internacional do Estado garantir os direitos das vítimas, a solução mais franca e plausível consiste na assunção de todas as violências como responsabilidade do Estado, de seu regime político, das relações de produção impostas. Foram os interesses políticos da oligarquia bipartidarista colombiana aliada com o imperialismo os geradores do crime de Gaitán, do 19 de abril, da violência partidária, do ataque a Marquetalia, a Casa Verde, do extermínio da União Patriótica e do movimento popular.
Eles criaram o monstro paramilitar e mergulharam a pátria na barbárie do horror, decretaram o Plano Colômbia, o Plano Patriota, a Espada de Honra, os falsos positivos, os assassinatos e desaparecimentos de hoje. Martirizado e heroico o povo colombiano, que tem resistido a todas as agressões e se mantém de pé. E que, na voz das FARC-EP, propende por uma saída política diferente da guerra e da morte. E que não vai se considerar satisfeito com uma justiça transicional senão com uma verdadeira justiça, cuja fórmula tem que aparecer da discussão na Mesa.
Discussão na qual o país inteiro tem que participar. Porque todos somos vítimas deste regime antidemocrático e violento. Não só os mortos, os desaparecidos, os torturados, os prisioneiros políticos, os deslocados e desterrados, não só suas famílias. Mas sim todos os colombianos, que não vivemos um dia de paz pelo menos nos últimos 65 anos. A soga oligárquica expediu uma lei de vítimas visando defender só seus interesses, para alegar depois que o Estado já se havia ocupado delas e que a Mesa deve discutir unicamente sobre as vítimas da guerrilha.
Semelhante pretensão resulta inaceitável de cabo a rabo. Porque se esquiva do verdadeiro problema. Por trapaceira. Por inútil. Ao enfrentar na Mesa a explicação da justiça transicional, as FARC e os colombianos devemos impedir que o governo circunscreva o assunto aos marcos preestabelecidos de antemão para render e humilhar a insurgência. Para tocar a badalada de queda da luta popular. Pelo contrário, a obrigação internacional de escutar e atender as vítimas há de ser a porta de acesso ao clamor do povo colombiano por tanta injustiça.
Do mesmo modo, se queremos deveras estabelecer garantias para a não repetição dos massacres e crimes seletivos tão usuais em nosso país, das frequentes montagens policiais e judiciais, do longo catálogo de crimes de Estado praticados impunemente por décadas, é necessário levantar as bandeiras da democratização, da participação popular livre em todos os cenários de adoção de políticas públicas, incluindo desde logo as relacionadas com o emprego da força e da violência contra o povo e suas aspirações.
Os colombianos estamos obrigados a pôr em evidência as desastrosas consequências econômicas, sociais, ambientais, culturais e políticas do modelo econômico imposto pelas classes dominantes. Esse capitalismo selvagem das locomotivas, dos tratados de livre comércio, da entrega de nossos recursos naturais, da confiança inversionista e da desregulação trabalhista se relaciona intimamente com a intranquilidade, a angústia e a violência, como demonstram as frequentes paralisações e protestos e as agrupações de polícias moendo a pau e chumbo a inconformidade.
Assim que as garantias de não repetição da barbárie devem começar por aí, por isso que o governo nacional e as classes dominantes se empenharam em proscrever da Mesa de Conversações o debate aberto sobre a política econômica do Estado. Dela somos vítimas milhões e milhões de colombianos, e vitimários não só a classe política no poder, como também todos esses setores empresariais, financeiros e agropecuários que faturam fabulosos lucros à custa da fome, do despojo e da perseguição de imensos contingentes de compatriotas.
É esse o principal combustível do conflito, o primeiro gerador de vítimas. É a todas elas a quem as FARC propomos sair às ruas, a reclamar seu direito a serem ouvidas e atendidas, a exigir a verdade, a justiça e a reparação. As garantias de que a negra noite da violência não voltará se repetir jamais. Estamos convencidos de que esse deve ser o verdadeiro conteúdo da discussão pela paz em Colômbia. Assim se expôs e ficou acordado no preâmbulo da Agenda de Havana. Não estamos alterando-a.
Por último, caberia a referência a um conceito que se costuma pôr em desuso por todo o discurso da globalização. Se trata da antiquíssima noção da soberania, da independência e autonomia pátrias que cada povo tem considerado sagrado desde a mais remota antiguidade. É completamente falso que a soberania nacional se encontre condenada ao museu da história. Pelo contrário, a libertação de todos os povos começa pela reivindicação desse direito fundamental, pela condenação à intervenção em seus assuntos internos, à ingerência estrangeira.
Nesse, como em muitos outros aspectos, retoma plena vigência a luta pela independência nacional. Está claro que se trata da segunda e definitiva independência, da luta contra a dominação imperialista norte-americana que se apresenta com a máscara do direito internacional. E, falando de museus, movem ao riso as pretensões burguesas. Após matar, desaparecer e perseguir a luta popular, agora propõe repará-la com a justiça transicional, edificando-lhe o belo lugar que sempre sonhou para ela, o museu da história, o rincão para os dinossauros.


Montanhas de Colômbia, janeiro de 2015.