Em entrevista exclusiva, o líder da Associação
Nacional de Zonas de Reserva Campesina, César Jeréz, analisa a questão rural no
país, tema prioritário dos diálogos de paz de Havana.
César Jeréz: Primeiro temos de ter claro que o conflito
social tem sido historicamente pela terra, pela sua formalização, pelo
desenvolvimento dos territórios campesinos. Um dos eventos mais importantes na
história recente é a guerra entre liberais e conservadores, nas décadas de 1940
e 50. Liberais, pequenos proprietários, e conservadores, latifundiários. Chamam
essa guerra de liberal-conservadora, mas, no fundo, foi uma guerra pela terra.
Essa guerra se soluciona com a chegada de uma ditadura militar, a última que
tivemos, e depois com um pacto entre liberais e conservadores que se chamou
Frente Nacional, para revezarem-se no poder, mas sem resolver o problema
agrário.
BRASIL DE FATO
Matheus Lobo Pismel e Rodrigo
Simões Chagas,
de San Vicente del Caguán,
Colômbia
O fim do conflito armado colombiano, que já
dura mais de meio século, passa necessariamente pela solução do problema
agrário. Para discutir um tema prioritário dos diálogos de paz de Havana,
organizações camponesas de todo o país reuniram-se em 22 e 23 de março, para o
3º Encontro de Zonas de Reservas Campesina (ZRC), em San Vicente del
Caguán, ao sul do país. A cidade, entrada da Amazônia colombiana, recebe cerca
de 3 mil camponeses que buscam fortalecer as iniciativas da Associação Nacional
de Zonas de Reserva Campesina (Anzorc).
As ZRC são resultado de décadas de acúmulo
político do movimento camponês. Em 1994, após uma série de marchas do setor
cocaleiro, o projeto – que foi construído pelos próprios camponeses – chegou ao
Congresso e virou lei. Desde então, a luta é para que sejam realmente
viabilizadas. “Atualmente, existem seis zonas de reserva oficializadas. Outras
sete já cumprem os requisitos e querem se constituir ainda neste ano. E há
várias que ainda estão se inteirando, convencendo-se de que a luta deve ser por
aí”, explica César Jeréz, porta-voz da Anzorc, que responde por 50 processos
organizativos e territoriais que pretendem tornar-se ZRC.
Em resumo, as Zonas de Reserva Campesina
servem para garantir a democratização da terra, um primeiro passo em direção à
reforma agrária. São instrumentos jurídicos para que o camponês não seja
forçado a se deslocar de seu território devido ao interesse de mineradoras multinacionais
ou de latifundiários. Os planos de desenvolvimento das ZRC preveem sistemas
produtivos sustentáveis, além de apoio técnico e financeiro que deem
estabilidade e segurança ao pequeno agricultor.
A proposta para o tema agrário das FARC em
Havana inclui a reivindicação de 9,5 milhões de hectares para a criação de 59
ZRC. Com o término de mais uma rodada de conversas na quinta-feira (21), o
chefe da delegação do governo, Humberto de la Calle, se pronunciou otimista em relação aos
avanços da mesa na questão rural. Mas, em relação às ZRC, disse que o governo
pretende reformulá-las e que, de maneira nenhuma, terão autonomia institucional
e política.
A mesma cidade onde hoje acontece o encontro
fez parte da zona desmilitarizada dos diálogos de paz de Caguán, entre 1999 e
2002. Como atividade do evento, os camponeses entregarão formalmente propostas
às partes da atual mesa de diálogos em Havana, Cuba. O governo enviará um
representante para receber o documento, enquanto as FARC participarão através
de videoconferência.
Na cerimônia de instalação do encontro,
estiveram presentes o prefeito de San Vicente del Caguán, Domingo Emílio Perez,
a diretora do Instituto Colombiano de Desenvolvimento Rural (Incoder), Miriam
Villegas, o representante do ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural
Andrés Bernal, e o porta-voz da Anzorc César Jeréz.
Tanto a diretora do Incoder, quanto o
representante do ministério da Agricultura, rechaçam a possibilidade de
autonomia às ZRC. Miriam Villegas reafirmou o compromisso com o fortalecimento
das Zonas de Reserva Campesina, independente do que ocorra nos diálogos de
Havana, “mas não o modelo proposto pelas FARC, e sim o que já existe e está
previsto em lei”.
Em seu discurso, Jeréz enfatizou que o país
vive um “momento chave para a paz” e que “apesar do que vem publicando a grande
mídia, o encontro não é financiado pelas FARC”. Também esclareceu que as
propostas sobre ZRC não foram elaboradas pela guerrilha, mas apenas
sistematizadas a partir de dezenas de fóruns populares sobre a questão agrária.
Recordou o prejuízo que representou o governo do ex-presidente Álvaro Uribe
para os movimentos sociais colombianos e reiterou a importância de participação
das organizações camponesas na mesa de diálogos de paz em Havana.
Na última sexta-feira (15), entrevistamos
César Jeréz em Bogotá.
Além de porta-voz da Anzorc, Jeréz é um dos líderes da
Associação Campesina do Vale do Rio Cimitarra (ACVC), que recebeu o Prêmio
Nacional de Paz em 2010. Confira abaixo:
Gostaríamos que você começasse com
um resgate histórico das mobilizações campesinas até chegar à elaboração das
Zonas de Reserva Campesina.
Nesse processo, foram formadas algumas
guerrilhas liberais para responder à agressão dos conservadores. Reivindicavam
fundamentalmente a terra. Um aspecto muito importante foi a influência das
revoluções russa e cubana. Isso dá dois enfoques sobre o problema da terra: o
enfoque dos comunistas e o da teologia da libertação. Os comunistas, nas zonas
rurais do partido, começam a influenciar os guerrilheiros liberais. Começa uma
transição política ideológica.
A ditadura de Rojas Pinilla [1953-1957] faz
acordos para desmobilizar guerrilheiros, mas não os cumpre, como sempre.
Assassinam guerrilheiros liberais e isso gera muita desconfiança nos
guerrilheiros que ainda estavam nas montanhas. Essa é a história de Manuel
Marulanda [principal idealizador das FARC]: não se desmobiliza porque fica
desconfiado de que não cumpram o acordo e o matem.
No começo ele era liberal...
Neste momento, era liberal e vinha nesta etapa
de influência comunista. Há um momento de contradição entre os guerrilheiros
liberais e alguns já se tornam comunistas, guerrilheiros comunistas. É a origem
das FARC. Essas guerrilhas eram de autodefesa de massas e se concentram em
certos territórios, como Marquetalia, El Pato, Rio Duda, zonas de colonização
camponesas, e se estabelecem aí para resistir.
A teoria dos conservadores diz que são
repúblicas independentes de comunistas e aí vem toda a agressão. Na resposta é
que realmente se configura a guerrilha das FARC. Prestem atenção: eles se
concentram em um território para ter terra e começar uma economia campesina,
mas chegam até lá e são atacados.
Há uma tendência história entre movimentos
guerrilheiro e campesino. As guerrilhas, como as FARC e o ELN, sempre
influenciaram os movimentos sociais. Tem existido uma relação e isso não se
pode negar. Uma relação política. A única diferença são as formas: armada ou de
movimentos.
O movimento campesino sempre esteve na
história do país por esse mesmo contexto: problema da terra não resolvido, uma
reforma agrária que nunca foi feita e exercício de violência a todo o tempo
para despojar campesinos, proporcionar deslocamentos. Isso sempre foi funcional
ao modelo de desenvolvimento, porque este campesinato se tornou mão de obra
barata nas cidades. Percebam que esse problema da terra é funcional ao modelo
de desenvolvimento do país. Ou seja, para “eles” este status quo não
é somente normal, é beneficiário. Por isso que não querem resolver.
O movimento campesino da Colômbia sempre teve
como bandeira histórica a reforma agrária. Sempre foi um movimento dinâmico,
mas sempre foi perseguido. O maior acúmulo dos movimentos sociais foi nos anos
70 e, nos anos 80, já vêm todas essas práticas de contra-insurgência, doutrina
de segurança nacional, “inimigo interno”... Pensavam que a influência das
revoluções cubana e soviética ia fazer triunfar revoluções na América Latina.
O impacto nos movimentos sociais foi forte:
ciclos repressivos que se repetem, um mais forte que o outro. Isso explica a
situação atual do movimento campesino. Está em recomposição, sobretudo depois
dos dois períodos de Uribe que foram muito repressivos. Existe uma correlação
de forças desfavorável nas Zonas de Reserva, onde já não podemos impor reforma
agrária. É parecido com o Brasil: o MST é grande, mas não tem força suficiente.
Então começam a ser criados mecanismos para garantir ao menos certos níveis de
reforma agrária.
Com o acordo de paz firmado em La Uribe, nos anos 1980,
começa-se a falar de ZRC. Depois nos 1990, com a mobilização dos campesinos
cocaleiros, é quando se assume essa proposta de ter territórios campesinos que
se chamam Zonas de Reserva Campesina.
Conquistam a lei 160 em 1994 e, dois anos
depois, conseguem que se crie uma regulamentação. As ZRC são efetivamente um
acumulado e têm duas linhas: político-social, que é a parte organizativa e,
desde 1994, a
linha administrativa que é a interlocução com o Estado, exigindo o cumprimento
da lei. Por isso há zonas de reserva formalmente reconhecidas pelo Estado e há
uma maioria que são de fato, mas que o Estado não quer constituir juridicamente.
Durante os dois governos de Uribe, a repressão
foi tão forte que muitas organizações deixaram isso quieto. A nossa foi uma das
que conseguiu manter a luta pelas ZRC.
Anzorc ou a Associação Campesina
do Vale do Rio Cimitarra (ACVC)?
A ACVC. A Anzorc havia sido criada há 12 anos,
antes de Uribe, mas pela pressão, não tinha condições de consolidar-se. Quando
muda o governo e Santos tem que atender à pressão do movimento campesino, fazer
acordos de novo e reativar as ZRC (ao mesmo formalmente), começamos a
reconstruir a Anzorc.
O certo é que é a expressão mais importante
agora. A Anzorc conseguiu fazer que o Estado a reconheça como interlocutor
político, que faça acordo com a gente. Existem diferentes relações com setores
sociais, instituições, Igreja, partidos políticos, guerrilhas. Ou seja, Anzorc
pretende ser um interlocutor com todo o espectro para fazer valer sua proposta,
para legitimá-la.
O acumulado pode se resumir no que está
acontecendo neste momento, no qual há um movimento campesino que está se
recompondo e há um processo de paz onde se toma esse ponto como uma
possibilidade de começar a solucionar o problema da terra.
Neste momento, em Havana, estão sentados para
falar sobre as ZRC. Esse é o tema mais conflitivo, porque a guerrilha exigiu que
se começasse a solucionar o problema com 9,5 milhões de hectares. O Estado e os
meios de comunicação dizem que isso é descabido, mas a Colômbia tem 35 milhões
de hectares para as vacas, para a pecuária. Este ano vão entregar para as
multinacionais, para a grande mineração, mais 20 milhões de hectares. É um
problema de uma negociação em que o governo quer que as FARC se desmobilizem e
as FARC fazem propostas de reformas. Reformas que, no tema da terra, são
estruturais. Começariam a resolver o problema da terra.
Nesse sentido, as organizações campesinas
estão em grande destaque. Um reflexo disso é o escândalo midiático. Todos os
dias atacam as zonas, atentados, agressões... Este momento é histórico, mas
também muito perigoso. Se firmam acordos de paz, pode haver uma dinâmica
progressiva. Se não, volta um ciclo repressivo muito forte. Esse é o risco.
Pode ser que tenhamos que ir para o Brasil... A coisa fica complicada.
E quanto ao Plano de
Desenvolvimento Econômico. Existem estudos para que se viabilizem as Zonas?
Sim. Todos os planos de desenvolvimento já têm
os programas, projetos, planos de investimento... Tudo está formulado. O
problema é que o governo diz que não tem dinheiro para financiar.
Outro problema é que, durante os oito anos de
governo de Uribe, se desmontou a pouca institucionalidade agrária que havia.
Agora se quer fazer acordos e o governo não conta com as ferramentas, nem com
gente, nem com dinheiro. Os planos de desenvolvimento são multimilionários, porque
são “aqui não tem nada e vamos começar a pôr educação, saúde, infraestrutura”.
Mas, se há um acordo para o fim da guerra com
as FARC, não se justifica ter um exército de 500 mil homens, nem investir 7% do
orçamento nacional em
guerra. Esse dinheiro tem que ser revertido em um plano de
desenvolvimento rural que garanta o desenvolvimento dos territórios camponeses
com um fundo de terras, com um fundo de financiamento, que pode vir do que se
economize com o investimento na guerra, mas também dos recursos que tem o país.
Está comprovado que a economia camponesa em
todo o mundo é um motor de desenvolvimento. Então nós dissemos “pronto,
territórios para economia campesina, territórios para agroindústria, cadeias
produtivas, mas com condições, para que se redistribua o benefício”. Não
estamos em uma postura fundamentalista: “reforma agrária, socialismo”. É uma
questão de tática e estratégia. Quando você está fraco, não pode querer impor
algo que não é capaz... Nós dizemos que, se há processo de paz e há um impulso
nas Zonas, nós podemos nos recompor e avançar mais, porque aí sim teremos
garantias.
Queremos ir para Havana para expor diretamente
nossas propostas. Já mandamos uma carta aberta, que foi o que suscitou todo
este escândalo midiático, porque nós dissemos “vamos para Havana, queremos ir
para Havana!” e todo mundo reagiu. As FARC responderam e quando falam é como se
falasse o diabo. Ficamos nós tendo que lidar com toda essa questão.
E os acordos que já se conseguiram
anteriormente com o governo, como estão?
A maioria não está sendo cumprida. O único
ganho da lei, da regulamentação, que é muito restrita, é um mecanismo que
limita a propriedade nos territórios campesinos, que se chama UAF (Unidade
Agrícola Familiar): um limite de terra mínimo para garantir sua renda básica
familiar. Na teoria, deve impedir que as pessoas concentrem mais que esse
limite, mas se viola em todo o país. Faz parte do problema que temos que
solucionar.
E a influência dos militares.
Terrível. Militares, narcotraficantes, Álvaro
Uribe, grandes empresas, agronegócio, tudo isso que é muito próximo. Eles são
esse núcleo que todos os dias, de maneira coordenada, estão lançando ataques.
Querem arrebentar o processo de paz aqui neste tema das Zonas de Reserva
Campesina. É toda uma estratégia dos meios. “Aqui é o ponto onde vamos romper,
porque não podem entregar as zonas de reserva às FARC” (risos). É um ponto de
inflexão. Caso passe desse ponto pode haver continuidade.
Santos demonstra vontade política?
É difícil falar de vontade política desses
caras. São muito pragmáticos. O enfoque do governo é negócio, negócio para
desmobilizar. E o enfoque das FARC é: “não estamos derrotados, não estamos
fracos, estamos em todo país. Sofremos golpes, mas queremos o processo e temos
estas propostas, que são de caráter reformista”. São reformas. Levar o
capitalismo ao campo (risos). O campo na Colômbia é feudal. Tem que se pensar
por onde se abre a autonomia territorial de maneira transitória, uma transição
democrática, porque revolução não vai ter. Aqui há muito dinheiro investido em armas. Temos os
gringos aqui...
Um horizonte dos movimentos camponeses pode
ser brigar por uma autonomia territorial, onde nós mandamos, administramos,
ordenamos o território e a economia. Mas eles não querem saber disso. Os indígenas,
os afrodescendentes já têm, mas os campesinos não podem ter. Identificam-nos
como um opositor político muito mais forte. O campesinato que tem sido um
problema histórico.
Qual o tamanho da esperança para
que o governo convide a Anzorc à mesa?
Muito difícil. Hoje as FARC soltaram um
pronunciamento no qual dão a entender que por eles não há problema. Mas o
governo... Tem que haver acordo entre as duas partes.
Pode ser que cheguem a um acordo
sobre as ZRC sem ter escutado a Anzorc?
Pode ser que sim, porque às FARC interessa
manter a mesa. Ao governo interessa rompê-la. Inclusive podem deixar isso como
que em suspensão, como dizem os gringos, “stand by”. Porque se eles se fecham,
o governo diz “pronto, não querem? Levantemos”.
O que esperar do Encontro de Zonas
de Reservas Campesina?
Pode ser um fato político. Primeiro, o debate,
encontramo-nos, recolher insumos, propostas, mostrar gente e mostrar força.
Fazer alguns acordos com instituições, amigos. Isso pode ser importante. Mas,
além disso, só nos resta brigar. Ou seja, mobilizar milhares de camponeses.
Para impor um fato político aqui tem que paralisar parte do país.
E não é uma maneira de pressionar
para ir à Havana?
Não somente ir, mas pressionar para que lá
haja um acordo imposto por nós. Temos que medir as forças e, por enquanto, é
muito difícil.
O que você conhece do MST? Mantém
relações?
É uma referência importante. Um movimento que
tem muitas coisas para ensinar, porque carrega um grande acumulado de luta. Eu
estive no Brasil várias vezes reunido com o MST. Sabemos que há diferentes
linhas políticas, por isso, o fato de que se manterem unidos em torno da
reforma agrária é uma referência importante. O modelo de escola própria, o
modelo de formação nos assentamentos, a agroecologia que conseguiram
desenvolver, a coordenação a nível internacional, o papel importante na vida do
camponês. Toda essa parte simbólica, as místicas, o papel das mulheres. Aqui,
por exemplo, ainda há muito machismo político na esquerda a ser superado.
Nós mantemos uma relação importante com o MST.
Agora a iniciativa da ANZORC vai ser ingressar na Via Campesina. Há vários
líderes do MST que conhecem o processo das ZRC e estiveram presentes no
primeiro Encontro em Barrancabermeja [em 2011, que reuniu mais de 30.000 pessoas].
Também nos interessa fortalecer essa relação e esse respaldo tão importante.
BRASIL DE FATO