Entrevista de Célia Hart ao El Militant em 2007.
Célia Hart, trotskista cubana, internacionalista e defensora da revolução bolivariana na Venezuela, participou neste país em diferentes reuniões organizadas pela "Fundación Federico Engels" e "El Militante" (organização ligada à Corrente Marxista Internacional, ou International Marxist Tendency).
Nos últimos anos, Célia publicou diferentes trabalhos na web de El Militante, como "La Bandera de Coayacan", "La Revolución Cubana y el socialismo en un solo país", e, recentemente, "El 15 de agosto tomamos el palacio de invierno", trabalhos que tiveram um forte impacto internacional. Membro do Partido Comunista de Cuba e filha de dois dirigentes históricos da Revolução Cubana, Armando Hart e Haydé Santamaría. No dia 17 de setembro de 2004, a redação de El Militante conversou com Célia sobre a atualidade da revolução latino-americana, a situação de Cuba após o colapso do stalinismo e as perspectivas para o socialismo. Quando Célia Hart esteve no Brasil participou do Congresso de fundação da CONLUTAS, realizado em janeiro de 2005 em Porto Alegre, e avaliou que a sua fundação "é uma experiência memorável" e que "tal organização classista será uma referência para a América Latina".
El Militante - Que balanço você faz dos acontecimentos políticos que têm sacudido o continente latino-americano nos últimos anos?
Célia Hart - Vivemos uma situação revolucionária em escala internacional, devido à globalização capitalista e à atitude do imperialismo. No continente latino-americano esta situação revolucionária percorre todo o território, na Venezuela bolivariana, na Bolívia, Peru... inclusive em países como o México, onde até pouco tempo parecia que o imperialismo tinha o país sob controle, observa-se uma ascensão revolucionária. Estamos em um ótimo momento para intervir, organizar e conduzir o continente onde queremos.
El Militante - Seu envolvimento com a revolução na Venezuela é muito grande. Você escreveu artigos e organizou atividades de solidariedade em Cuba. Que tipo de mensagem você daria como revolucionária que vive numa ilha onde a revolução triunfou, aos trabalhadores, aos camponeses, aos oprimidos da Venezuela e a todos aqueles que no mundo se mobilizam em defesa desta revolução?
Célia Hart - A primeira coisa é voltar-se completamente em defesa e pelo triunfo do processo revolucionário na Venezuela. Isso não quer dizer, algumas pessoas podem me interpretar mal, que há que fazer tudo que diga o comandante Chávez. Creio que todos os trabalhadores da Venezuela têm um dever que lhes transcende como nação, isto é, que pela primeira vez depois de muito tempo (talvez o antecedente pudesse ser a IIª República espanhola e a frustrada revolução espanhola), Chávez tenha ou não lido o marxismo, identificou com clareza o imperialismo e a oligarquia como o inimigo de classe. Isto significa que a única maneira de conseguir a libertação da Venezuela como nação da opressão do imperialismo é através da revolução social. Embora Chávez diga que isto não é uma revolução socialista, os fatos têm que ser interpretados não pelo que as pessoas dizem, mas pelo que são. Aí está o inimigo de classe, e é inevitável que a revolução social se dê vinculada a todas as reivindicações do povo oprimido. Internacionalmente, todos os que lutamos pela causa dos trabalhadores e acreditamos que a solução dos problemas deste planeta está na revolução socialista, temos que nos comprometer com esta revolução até a medula.
El Militante - Em um dos seus artigos, "A Revolução Cubana e o socialismo em um só país", que gerou uma polêmica pública muito positiva, você defende a revolução cubana a partir de uma perspectiva internacionalista e sua continuidade na revolução latino-americana e mundial. Além disso, você faz um balanço muito crítico sobre "o socialismo em um só país", questionando de maneira demolidora essa idéia anti-marxista de que é possível edificar o socialismo dentro das fronteiras nacionais num país isolado, algo que ficou manifestado após o colapso da URSS. Que balanço você faz deste debate e sua relação com Cuba?
Célia Hart - Para mim sempre foi muito importante o pensamento de Trotsky, do mesmo modo que Marx, Engels ou Lênin. Depois de escrever "La Bandera de Coayacan" defendendo a necessidade de Trotsky, tive que dar um passo a mais em minha própria reflexão. Eu sou marxista e acredito na luta de classes, sou uma amante de minha revolução, creio que Fidel Castro e Che Guevara são uns internacionalistas tremendos, muito martianos, e, este último, José Martí, é um personagem que há de se estudar muito mais, pois ele odiava as fronteiras, e o único sentido que lhe dava à independência nacional no século XIX era com o objetivo de que o imperialismo ianque não tomasse o controle da América Latina e do mundo; ele tinha um forte instinto internacionalista. Portanto, para mim era essencial tomar as idéias de Trotsky e seu internacionalismo frente à minha revolução e em defesa dela. Evidentemente que há uma ligação, sou física e estou convencida de que isto é assim. Queria, além disso, que ficasse claro para meus camaradas em Cuba o porque de estar tomando Trotsky neste momento: precisamente pela revolução cubana e porque seu sentido é a revolução na América Latina e a revolução mundial. Se leres os textos de Fidel ou de Che, te darás conta de que o único sentido que pode ter a revolução cubana é a revolução no mundo. A solução à revolução cubana, em sua defesa e sua continuidade, depende do mundo, da revolução internacional. Aí estão as lições da história, por isso creio que Trotsky, no qual foi tão relegado e caluniado, algo que ninguém me explicou, neste momento é ainda mais necessário. Já me perguntei em inúmeras ocasiões por que lemos Gramsci, Mariatégui, Rosa Luxemburgo e por que não Trotsky? A ligação entre minha revolução e Trotsky é evidente.
El Militante - Você acaba de dizer que temos que nos basear nos fatos e não apenas nas definições. Che não é apenas um símbolo da revolução cubana, mas também da revolução internacional. Além disso, foi Karl Marx quem explicou a necessidade da revolução mundial, do internacionalismo e quem cunhou o termo de "Revolução Permanente" em seus escritos sobre a revolução alemã de 1848. Lênin, que não fez mais do que aplicar na prática o programa marxista, sempre teve como sua primeira prioridade a organização internacional dos trabalhadores, a IIIª Internacional e a revolução mundial, à qual considerava mais importante que a própria revolução russa. Neste sentido, a figura de Che tem relação com isto que estamos dizendo?
Célia Hart - Absolutamente. Além disso, à medida que o tempo transcorre, as coisas tornam-se mais claras, os fatos vão se clareando. Eu digo que Che iniciou a era da revolução permanente na América Latina, mas não somente isso. Acredito que ele foi o continuador dessas idéias até converter-se no símbolo da juventude mundial. A mim não me importa, sinceramente, que Che tivesse lido ou não Trotsky, e sim que ele foi um internacionalista que participou incondicionalmente da revolução cubana. Era um revolucionário do mundo, liberando a batalha onde houvesse oportunidades revolucionárias. Para mim, a afirmação de Che de fazer da América Latina muitos Vietnams, o converte no melhor discípulo de Trotsky. Ele renunciou a responsabilidades muito importantes em Cuba, com a convicção de que era necessário para o triunfo da revolução internacional. Faltaram-lhe algumas coisas seguramente, os comunistas da Bolívia o traíram, porém, ele deu o passo, se comprometeu, por isso Che tem que ser nosso símbolo.
El Militante - Neste momento, todos os trabalhadores conscientes, todos os comunistas temos a obrigação de nos comprometermos firmemente com a defesa das conquistas da revolução cubana e contra o bloqueio criminoso dos EUA, que pretende acabar com a economia planificada e a revolução, e pretende restabelecer o capitalismo em Cuba. Entretanto, nós marxistas entendemos que o futuro da revolução cubana se resolverá não somente pelas próprias forças revolucionárias que existe em Cuba, mas pela arena da luta de classes internacional. Sem a extensão e o triunfo da revolução socialista na América Latina, a ameaça da restauração capitalista em Cuba se tornará cada dia mais real. Qual é a sua opinião a respeito?
Célia Hart - A revolução cubana converteu-se, sem dúvida, em um símbolo, e se eu a defendo não é por ser cubana ou haver nascido na Ilha, mas pelas mesmas razões às quais também defendo a revolução de outubro na Rússia. Para mim, têm o mesmo valor. Alguns compatriotas podem pensar: como é que uma martiana pode defender estas proposições? Eu lhes respondo com o que sempre defendeu Martí, a independência de Cuba era um meio para conseguir resolver os problemas do mundo e acabar com a dominação imperialista. Alguns colocam José Martí num plano patriótico vulgar. Minha revolução surgiu na década de sessenta, com um claro compromisso de classe e a única maneira de triunfar era como revolução socialista. O próprio Castro, em uma carta que enviou à revolucionária Célia Sánchez (me chamo assim por causa dela), afirmava: "quando esta guerra terminar, para mim começará uma guerra que não acabará jamais". Pode-se ler nas entrelinhas o que Fidel queria dizer. Também é verdade que as revoluções quando triunfam tendem a estabilizar-se, necessitam assegurar a vida cotidiana das pessoas e se consolida um aparato administrativo. Lembro-me de que minha avó paterna dizia a meus pais, ao cabo dos três ou quatro anos da revolução: "Mas olhe Armando, já ganhamos; agora vamos viver, não?", e minha mãe dizia: "quando ganhamos?", demonstrando o instinto revolucionário de não parar, de não se acomodar.
A verdade é que o problema que supôs o desenvolvimento do stalinismo impregnou os processos revolucionários em todo o mundo. A vitória de Stalin sobre a internacional, sobre as idéias comunistas, foi a maior traição da história contra as idéias revolucionárias. Tratou-se de arrebatar o internacionalismo às idéias e o programa do comunismo, e agora estamos vivos para recuperar o autêntico conteúdo do internacionalismo para os comunistas. Inclusive em Cuba tínhamos, antes da revolução, o velho Partido Comunista (o Partido Socialista Popular) integrado por bons militantes, porém, com um corte político stalinista tremendo. É uma autocrítica que nós comunistas temos que fazer, pois levamos durante muito tempo o peso morto do stalinismo em nossas costas, ou não o combatemos o suficiente, ou não fizemos o que tinha quer ser feito e, portanto, ele ganhou.
Nessa situação, a revolução cubana fez frente ao imperialismo norte-americano e triunfou. Muitos dizem que sem a URSS isso não teria sido possível. Eu, ao menos, não vejo nada claro nesse raciocínio, não é nada evidente que fosse assim. Acredito que ninguém conseguiria parar Fidel e, na melhor das hipóteses, é possível que ainda estivéssemos lutando. O certo é que num determinado momento a URSS nos forneceu petróleo, armas, um fluxo muito importante de recursos materiais que nos permitiu fazer obras maravilhosas em muitos terrenos, mas esse não foi o único papel que desempenhou em meu país. Penso que analisando criticamente, podíamos ter prescindido disso. A URSS nos traiu durante a crise dos mísseis. O povo cubano estava disposto a tudo naquele momento e, quando finalmente chegou-se ao acordo entre a URSS e os EUA, nenhum cubano participou da celebração. O stalinismo e a burocracia são um mal que persiste em toda revolução triunfante e a única maneira de combatê-lo é através da revolução mundial.
A história em Cuba nem sempre foi muito bem explicada. Eu tive que ler Trotsky casualmente e quando conheci suas idéias, eram semelhantes às minhas. A burocracia em meu país também calou em núcleos do Partido Comunista com suas tendências conservadoras, buscando a tranqüilidade, o "status quo". Agora, dado o momento no qual se encontra a revolução cubana, é mais necessário continuar a luta e, para mim, a defesa de Cuba e suas conquistas revolucionárias passa pela revolução mundial e em primeiro lugar, pelo triunfo da revolução socialista na América Latina!