Uma nova Guerra-Fria
por Juan Diego García
A dissolução do Campo Socialista pôs fim à Guerra Fria entre Oriente e Ocidente. No entanto, o que parecia ser o início do reinado hegemônico das potências capitalistas (em particular dos Estados Unidos) durou pouco e no atual panorama mundial surge uma nova correlação de forças que de certa forma reproduz a antiga disputa.
O motivo é simples: antes e hoje não se trata apenas da luta entre dois sistemas de pensamento, mas também (e muito particularmente) dos interesses estratégicos das potências mundiais envolvidas. Nem a política da URSS se limitou a praticar o Internacionalismo Proletário, nem – menos ainda – o Ocidente pode alegar que se dedicava tão somente à promoção da democracia e do bem-estar dos povos pobres do planeta.
A nova Guerra Fria reproduz a anterior entre as tradicionais potências de Ocidente e as antigas potências comunistas, a Rússia e a China, agora transformadas em grandes sociedades capitalistas, apesar da relativa lentidão do gigante asiático e das dificuldades temporárias de Moscou. Os estrategistas do Ocidente o sabem e não cessam de indicar o “perigo” que representam tanto esses dois países como a pujança dos países emergentes (a Índia, o Brasil, a África do Sul) e outros de menores dimensões, mas igualmente desafiantes, como o Irã. Um perigo em termos econômicos, isto é, de concorrência por recursos, feiras livres, territórios e zonas de influência, e também um risco em termos militares. É que, se as guerras locais na Ásia esgotaram perigosamente o potencial bélico de Ocidente (começando pelos Estados Unidos), a única alternativa que resta é a chantagem atômica, impossível de se exercer contra a Rússia e a China, mas ainda possível contra os demais - se é que se consegue impedir que eles também acessem esse tipo de armamento. Nada mais assusta tanto os ocidentais quanto a proliferação nuclear que eles simplesmente não podem controlar.
Como na Guerra Fria, as armas atômicas de Ocidente foram ultrapassadas não só pelo poder efetivo de russos e chineses, mas pela tecnologia bélica desenvolvida em países aliados como a Coréia do Norte, Irã, Síria e outros, criticados - ou temidos - por Washington e seus aliados.
A América Latina não está alheia a essa dinâmica, e, assim como nos melhores momentos da Guerra Fria, quem desejar fazer reformas no seu país, submetê-lo às oligarquias locais e sobretudo pôr limites aos saques das multinacionais, deve contar de antemão com a hostilidade aberta dos Estados Unidos e a Europa que não economizarão meios para impedir que estes governos se firmem institucionalmente, como comprovam os recentes eventos na Venezuela, no Equador e na Bolívia (e ainda, talvez, a espionagem contra o presidente Colom, da Guatemala?) e toda a polêmica da IV Frota no litoral brasileiro. Da mesma forma, parece óbvio que a maneira mais prática de fazer frente a tais ameaças está na força de uma unidade regional e na abertura paralela da maior quantidade de aliados e contatos externos a essa mesma área. Isso permitirá alcançar equilíbrios razoáveis e contrapesos diplomáticos para um exercício efetivo das soberanias nacionais.
Desse ângulo, é fácil entender por que o Brasil deu impulso à criação de um Conselho de Segurança Regional - sem a participação dos Estados Unidos - com a finalidade de coordenar as políticas de defesa como resposta a uma renovada concorrência mundial que afeta em cheio a região. O Brasil, uma potência em ascensão com claros interesses de expansão e necessidades de defesa, jamais esqueceria essa questão. Aliás, não é por acaso que o presidente Lula (nada propício ao radicalismo) vincule a renovação da IV Frota gringa na área com o descobrimento de imensas jazidas de petróleo no país, multiplicando muitas vezes sua importância estratégica. Também não parece um dado menor que tanto o Brasil como a Argentina tenham declarado abertamente a sua decisão de continuar a produção de energia atômica. A solene promessa de utilização para fins pacíficos não tranqüiliza Washington. Menos ainda os rumores que evidenciam a intenção dos militares de Brasil de apoderar-se de armamento nuclear.
Entretanto, o novo Conselho de Defesa Regional só poderá ser crível se tiver força intimidatória suficiente. Assim parecem entender não só Lula e os argentinos, mas o próprio Hugo Chávez, que assinou acordos de assistência militar com Moscou e preparou agora manobras conjuntas no Caribe para testar a capacidade defensiva do armamento adquirido (o mesmo que os gringos se negaram a lhe vender). Hoje a imprensa informa a aterrissagem de aviões militares russos em solo venezuelano. Como ocorreu na Geórgia, os gringos e seus aliados terão que pensar duas vezes antes de começar qualquer aventura contra Caracas.
O mecanismo militar por meio do qual Washington controlava os governos latino-americanos na área da defesa esfacelou-se. O Tratado Interamericano de Assistência Recíproca morreu na Guerra das Malvinas. Da mesma forma, debilita-se a penetração do Pentágono nas Forças Armadas de muitos desses países, que haviam sido transformadas em exércitos de ocupação dos seus próprios povos. E se os Estados Unidos ou a Europa se negam a vender armas aos governos que não gozam de suas simpatias ao mesmo tempo em que armam até os dentes àqueles que consideram seus aliados (a Colômbia, por exemplo) é natural que os atingidos busquem apoios em outras latitudes, agradando ou não às potências ocidentais. Por isso, da mesma forma que durante a Guerra Fria, no novo confronto mundial seria ingenuidade negar-se a buscar sócios como a Rússia ou a China; não por identificação ideológica, mas pela razão fundamental de formar aliados objetivos e compartilhar interesses mais imediatos. Como nos velhos tempos da Guerra Fria, os países débeis buscam apoiar-se no maior oponente do seu inimigo imediato. E os latino-americanos sabem muito bem quem conspira contra seus interesses, quem está por trás das oligarquias que lhes oprimem e contra qual frota devem preparar os seus zagueiros. Também sabem que, se o Ocidente impor-lhes um bloqueio como o existente em Cuba, a nova correlação mundial de forças permitirá encontrar outros aliados, e, sobretudo, fortalecer-se mediante a formação de um bloco regional.
A Guerra Fria entre o comunismo e o capitalismo terminou com o colapso da URSS, mas a luta pela hegemonia mundial persiste, incluindo a ameaça atômica. A nova Guerra Fria promete momentos tão ou mais dramáticos que aqueles. Que o digam os iranianos, que vêem o sionismo preparando o bombardeio atômico de seu país; também o sabe Morales, que acaba de expulsar o embaixador gringo por conspirar aberta e descaradamente contra o seu país; o sabe Correia, que decidiu tirar as tropas norte-americanas da base militar de Manta; o sabe Chávez, que não deseja ver-se surpreendido pela soldadesca gringa e se prepara ao combate. O sabe Lula, cujo país, por suas enormes dimensões e possibilidades, é a maior pedra no sapato das ambições expansivas dos Estados Unidos na região.
A propósito: Como reagiriam as autoridades norte-americanas se, por exemplo, os embaixadores da Bolívia ou da Venezuela em Washington tivessem organizado uma conspiração contra o presidente Bush, com o assassinato deste incluído?