Francisco e as mudanças na Igreja Católica
Frei Betto
A inesperada renúncia do Papa Benedito XVI surpreendeu ao mundo, especialmente aos fiéis católicos. Há 600 anos que um Papa não renunciava. Foi um gesto de humildade de quem entendeu que não podia seguir no timão do barco de Pedro nos mares agitados dos escândalos: pedofilia, corrupção no Banco do Vaticano, rede de prostituição masculina que implicava a seminaristas em Roma, redução do número de católicos no Ocidente etc.
Se
elegeu ao cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio. Ele havia sido o
segundo mais votado no conclave que entregou as chaves de Pedro em
mãos do Cardeal Ratzinger.
Surpreendeu
também o nome adotado pelo cardeal Jorge Mario Bergoglio: Francisco.
Nunca antes um Papa havia rendido uma homenagem ao santo de Assis
[1182-1226], considerado a maior celebridade no último milênio. Da
mesma maneira que nunca um Papa se fez chamar Pedro II nem tomou os
nomes dos evangelistas Mateus e Lucas.
Quem
é Jorge Mario Bergoglio? Um sacerdote da Companhia de Jesus, cuja
vida se caracterizou por ocupar funções de governo entre os
jesuítas, o que o projetou ao episcopado. Não há evidências de
que Bergoglio tenha procedido como tantos sacerdotes e bispos
argentinos que deram apoio explícito à ditadura militar
[1976-1983], responsável pela morte de mais de 30 mil cidadãos e
pelo sequestro e desaparecimento de aproximadamente três mil bebês,
filhos de supostos terroristas.
Bergoglio
nunca se destacou por denunciar violações de direitos humanos
cometidas pelos militares, como o fizeram os bispos Novak e
Angelelli; este último morreu num acidente de tráfico, em 1976, que
muitos creem tenha sido provocado pelos militares. O superior dos
jesuítas argentinos e atual Papa preferiu atuar detrás dos
bastidores a favor dos perseguidos.
Bergoglio
é doutrinariamente conservador. Não se espere dele que admita a
união civil dos homossexuais e o fim do celibato obrigatório. No
entanto, a eleição do nome de Francisco simboliza quatro dimensões
características do santo de Assis:
- A crítica do sistema produtivo que gera desigualdades sociais. Até o século XIII, na Europa, a pobreza andava em meio a guerras e pestes. Toda família, ainda estando submetida à servidão, tinha sua parcela de terra para cultivar alimentos e criar uns poucos animais que lhe garantia o sustento.
Bernardone, pai de Francisco, introduziu, graças à manufatura, a produção em série de têxteis, cujas tinturas importava da França [o que lhe levou a homenagear no filho a nação estrangeira, batizando-o como Francisco: aquele que vem da França].
O
novo sistema de produção barateou os têxteis, conduzindo à
miséria e ao desemprego numerosos artesãos do ramo têxtil.
- A opção pelos pobres [fundamento da Teologia da Libertação]. Francisco, quando se encontra com os pobres gerados pelas novas relações de produção, arranca suas próprias roupas fabricadas por seu pai e, nu na praça de Assis, manifesta seu rechaço ao capitalismo nascente e sua adesão à defesa dos direitos dos pobres.
- O amor pela natureza. Francisco é o santo padroeiro da ecología. Se destacou pelo amor aos animais e por seus cânticos amorosos para o Sol e a Lua.
- A reforma da Igreja. Francisco escutou na capela de São Damião que Jesus o convocava para reconstruir a igreja que estava em ruínas. Com efeito, nas cercanias de Assis havia uma igreja em ruínas, a Porciúncula [agora dentro da catedral]. Ele e seus amigos se propuseram reconstruí-la. Até que entenderam que o chamado de Jesus tinha um significado muito mais amplo: o de reconstruir a Igreja Católica, então distante do povo e identificada com a nobreza europeia.
Se
o Papa Francisco, ao adotar esse nome, também pensou em Francisco
Xavier [1506-1552], o santo jesuíta que predicou o Evangelho aos
orientais, então o nome do novo pontífice expressa todo um programa
de renovação da Igreja Católica, começando pela reforma da Cúria
Romana, pela formulação de uma nova moral sexual e por uma nova
evangelização que implemente as propostas do Concílio Vaticano II,
como o ecumenismo e o diálogo inter-religioso, admitindo que também
fora da Igreja há salvação.
O
fato é que, em menos de um ano de pontificado, Francisco reforma o
papado, despojando-lhe de pompas e símbolos nobres; cria uma
comissão de oito cardeais para que o assessorem na condução da
Igreja, castiga os sacerdotes e bispos corruptos, combate a
homofobia, autoriza o batismo para filhos de mães solteiras e se
posiciona em favor dos pobres.
Francisco
e a economia de mercado
Francisco
divulgou em 26 de novembro de 2013 o documento “Alegria do
Evangelho”, no qual expõe claramente seu ponto de vista. Sua voz
profética incomodou a CNN, poderosa rede de comunicação dos
Estados Unidos, que lhe concedeu a “Medalha de Papelão”,
destinada para aqueles que, em matéria econômica, falam
besteiras...
Quais
são as “besteiras” pronunciadas pelo Papa Francisco? Julgue o
leitor: “hoje temos que dizer ‘não a uma economia da exclusão e
da iniquidade’. Essa economia mata. Não pode ser que não seja
notícia que morre de frio um ancião congelado e que o seja a queda
de dois pontos na bolsa de valores. Isso é exclusão. Não se pode
tolerar mais que se desperdice comida quando há gente que passa
fome. Isso é iniquidade.
“Hoje,
tudo entra do jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o
poderoso devora o mais fraco. Como consequência desta situação,
grandes massas da população se veem excluídas e marginalizadas:
sem trabalho, sem horizontes, sem saída.
“Se
considera ao ser humano em si mesmo como um bem de consumo, que se
pode usar e depois jogar fora. Demos início à cultura do ‘descarte’
que, ademais, se promove. Já não se trata simplesmente do fenômeno
da exploração e da opressão, mas sim de algo novo: com a exclusão,
fica afetado em sua própria raiz o pertencimento à sociedade na
qual se vive, pois já não se está nela abaixo, na periferia, ou
sem poder, senão que se está fora. Os excluídos não são
‘explorados’ mas sim descartados, ‘excedentes’.
Ademais,
Francisco condena a lógica de que o livre mercado pode, por si
mesmo, promover a inclusão social: “Esta opinião, que jamais foi
confirmada pelos fatos, expressa uma confiança grosseira e ingênua
na bondade dos que detêm o poder econômico e nos mecanismos
sacralizados do sistema econômico imperante.
Enquanto
isso, os excluídos seguem esperando.
“Para
poder sustentar um estilo de vida que exclui aos outros, ou para
poder entusiasmar-se com esse ideal egoísta, se desenvolveu uma
globalização da indiferença. Quase sem advertir para isso, nos
tornamos incapazes de compadecer-nos ante os clamores dos outros, já
não choramos ante o drama dos demais nem nos interessa cuidar deles,
como se tudo fosse uma responsabilidade alheia que não nos incumbe.
“A
cultura do bem-estar nos anestesia e perdemos a calma se o mercado
oferece algo que ainda não compramos, enquanto todas essas vidas
frustradas pela falta de possibilidades nos parecem um mero
espetáculo que de nenhuma maneira nos altera”.
O
Papa destaca que os interesses do capital não podem estar acima dos
direitos humanos: “Uma das causas desta situação se encontra na
relação que estabelecemos com o dinheiro, já que aceitamos
pacificamente seu predomínio sobre nós e nossas sociedades. A crise
financeira que atravessamos nos faz esquecer que em sua origem há
uma profunda crise antropológica: a negação da primazia do ser
humano!
“Criamos
novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro [cf. Ex
32,1-35] encontrou uma versão nova e impiedosa no fetichismo do
dinheiro e na ditadura da economia sem um rosto e sem um objetivo
verdadeiramente humano. A crise mundial que afeta as finanças e a
economia traz à luz seus desequilíbrios e, sobretudo, a grave
carência de sua orientação antropológica que reduz o ser humano a
apenas uma de suas necessidades: o consumo”.
Sem
citar o capitalismo, Francisco defende o papel do Estado como
provedor social e condena a autonomia absoluta do livre mercado:
“Enquanto
os lucros de uns poucos crescem exponencialmente, os da maioria ficam
cada vez mais distantes do bem-estar dessa minoria feliz. Este
desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia
absoluta dos mercados e da especulação financeira. Daí que neguem
o direito de controle dos Estados, encarregados de zelar pelo bem
comum.
“Se
instaura uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe,
de forma unilateral e implacável, suas leis e suas regras. Ademais,
a dívida e seus interesses distanciam os países das possibilidades
viáveis de sua economia e aos cidadãos de seu poder aquisitivo
real. A tudo isso se acrescenta uma corrupção ramificada e uma
evasão fiscal egoísta, que assumiram dimensões mundiais. A
obsessão de poder e de ter não conhece limites. Neste sistema, que
tende a faturar tudo de maneira a acrescentar benefícios, qualquer
coisa que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa ante os
interesses do mercado divinizado, convertidos em regra absoluta”.
Enfim,
um profeta que põe seu dedo na ferida, porque ninguém ignora que o
capitalismo fracassou para dois terços da humanidade: 4 bilhões de
pessoas que, segundo a ONU, vivem abaixo da linha de pobreza.
-
Frei
Betto
é escritor, autor de "La Mosca Azul - Sobre Reflexión
el poder"
(Ocean Sur, México, 2009; Ciencias Sociales, La Habana, 2012 )
, entre
otros libros.
Fonte:-
- - Servicio Informativo "Alai-amlatina" - - -
Tradução:
Joaquim
Lisboa Neto