Venezuela - Melhoria de vida para a população apesar da crise
IHU - Instituto Humanitas Unisinos
Fonte: Adital
A Revolução venezuelana é o título do mais recente livro de Gilberto Maringoni. Nele, o jornalista apresenta um histórico político deste país e contextualiza o atual momento, com suas possibilidades e limites, do governo de Hugo Chávez. Maringoni debateu, nesta entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line, algumas questões que tratou na obra e que são levantadas tanto em função da campanha midiática que se faz contra Chávez quanto com a chegada da crise financeira mundial e suas consequências para a economia petroleira do país. Por isso, Maringoni analisa as opções que Chávez tem dado aos venezuelanos, a capacidade de desenvolvimento que esse novo modelo trouxe para o país e, ainda, que pontos precisam ainda de mais ação governamental para se sustentarem. "A imagem de Chávez para a população é de um tempo de melhoria de vida", define nosso entrevistado.
Gilberto Maringoni é doutor em História Social, pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero. Também é editor de política e repórter especial da Agência Carta Maior. Além de A revolução venezuelana (São Paulo: Ed. Unesp, 2009), é autor de A Venezuela que se inventa - Poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez (São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004) e 20 anos da Constituição Cidadã: avaliação e desafios da seguridade social (Brasília: Associação Nacional dos Auditores Fiscais, 2008), entre outros.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Diante da história política da Venezuela, como o senhor vê as opções que o governo Chávez tem dado ao país?
Gilberto Maringoni - Nós completamos a primeira década de uma experiência que era tida no início como algo exótico na América Latina. Isso se deve ao fato de que naquela época o continente era governado pela corrente neoliberal, ou seja, Fujimori [1], Menem [2], Fernando Henrique Cardoso [3] etc. E Chávez surgiu como uma exceção, o que era exaltado pelo verbo cortante e pela maneira pouco ortodoxa de como se comportava na presidência. Dez anos depois, a exceção é quase regra no continente, pois o eleitorado tem se manifestado em vários países (notadamente na Bolívia, no Equador, na Argentina, no Paraguai e mesmo no Uruguai e Brasil, que têm governos mais moderados) contra aquele tipo de governante que privatizou e fez das relações estreitas com os Estados Unidos o mote do seu governo. Esse é o traço continental principal. Internamente, as políticas implementadas pelo governo da Venezuela dão conta de uma orientação de fortalecer o Estado, principalmente na segunda metade do seu governo, de 2004 para cá.
No ano de 2004, se fez o referendo revogatório que confirmou o mandato do Chávez no poder até as eleições de 2006. A partir daquele ano, o governo pôde implementar uma série de medidas internas. O ano de 2004 também foi marcado pelo fato de os preços internacionais do petróleo conhecerem uma ascensão vertiginosa, o que fez com que o governo tivesse muito dinheiro para implementar suas políticas na área de infraestrutura, de serviços públicos (saúde e educação, especialmente) e uma política externa muito ousada, fortalecendo laços com países do sul do mundo. É um balanço positivo que se faz. Embora a ação governamental seja pautada por um pragmatismo extremo, não existe um plano muito definido dos passos que Chávez dá adiante. Esses são sempre marcados pelas conjunções do momento.
A imagem de Chávez para a população é de um tempo de melhoria de vida, de aumento do crédito. O ingresso da renda petroleira inundou o país de dinheiro e as pessoas puderam investir em consumo pessoal - comprar carro, aparelhos eletrônicos, casa. É uma melhoria tipicamente capitalista. Ao mesmo tempo, os serviços públicos melhoraram em termos. Chávez conformou uma série de características ao Estado, criando quase que um Estado paralelo. Então, se a educação pública não teve uma melhoria significativa, houve um plano de alfabetização que eliminou o analfabetismo na Venezuela. Na área da saúde, os hospitais públicos continuam com sérios problemas. A máquina pública está emperrada, hospitais têm sérias carências de pessoal e equipamento, mas o atendimento básico ambulatorial foi feito bairro adentro, ou seja, os médicos adentram os bairros e atendem a população. Isso fez com que houvesse uma mudança substantiva no atendimento à população. Essas ações emergenciais também se deram no abastecimento, com caminhões do exército que se colocam em locais estratégicos para vender produtos de primeira necessidade a partir de estoques do governo. No entanto, a inflação na Venezuela continua muito alta. Ou seja, Chávez conseguiu, com uma série de ações, mostrar à população que o atendimento do Estado mudou, mas a sua estrutura continua muito semelhante ao que era antes.
IHU On-Line - O senhor aponta que houve, com o governo Chávez, elevação dos padrões de vida da população e a geração de empregos. Como está dividida, social e economicamente, a sociedade venezuelana hoje?
Gilberto Maringoni - A Venezuela é um país petroleiro, ou seja, um país pequeno que só tem o petróleo como pólo dinâmico de sua economia. Uma facilidade é o ingresso de dólares quando o preço do petróleo está alto. Isso é muito bom. Agora, essa abundância de capitais que entra na Venezuela não é capaz de promover o desenvolvimento por si só. Por vários fatores: o primeiro deles é que o petróleo tende a inibir a diversificação de outras atividades econômicas. Além disso, o petróleo provoca um fenômeno que já tinha sido detectado nos anos 1950, por um estudo pioneiro que foi feito por Celso Furtado [4] na Venezuela, que é a sobrevalorização da moeda nacional. Entra muito dólar, as reservas crescem muito, a moeda nacional se valoriza, as importações ficam muito baratas e a exportações, caras. Os custos de produção do petróleo quando a moeda está valorizada ficam muito altos e os produtos ficam muito caros. O terceiro aspecto é que o petróleo emprega pouca gente, pois não tem uma característica de se capilarizar da economia petroleira e não se espalha pela sociedade como um pólo dinâmico e agregador. Fora isso, as disparidades salariais do pessoal que trabalha e do pessoal que não trabalha com petróleo são enormes. A população economicamente ativa da Venezuela é de 7 a 8 milhões de pessoas, e 40 mil trabalham com petróleo. Essa economia funciona como uma economia de exportação e a riqueza só pode se espalhar pela economia com ajuda do Estado. Por isso, o neoliberalismo da Venezuela tem efeitos daninhos muito piores do que teve em países não petroleiros.
IHU On-Line - E como a crise financeira mundial chegou até o país?
Gilberto Maringoni - Especialmente com a queda do preço do petróleo, que chegou a 140 dólares em julho de 2008, vem caindo e chegou a 37 dólares em janeiro de 2009. Ele volta a subir agora: nesta semana, o barril está por volta de 60 dólares. O petróleo venezuelano é de qualidade inferior, apesar de o país ser um dos maiores produtores mundiais. Por isso o preço sempre fica 100% abaixo do petróleo leve, que é o que vemos na cotação dos jornais. Em todo o primeiro semestre deste início do ano se deu abaixo do que o governo venezuelano previa para o período. Ele previa, vendo a crise chegar, um preço de 90 dólares o barril, depois revisou para 60 dólares, mas o valor, em 2009, chegou a 37 dólares. As contas públicas entraram numa situação bastante difícil. Foram necessários vários cortes. Agora se espera que o petróleo suba até um patamar de 90 dólares, para que o governo volte a ter uma folga. As perspectivas, no momento, são bastante complicadas, pois os compromissos que o país assumiu (sociais e de metas da diplomacia) podem não ser cumpridos.
O governo, portanto, lida com três frentes de novidades: uma baixa de dinheiro para o governo via petróleo; uma mudança do perfil da oposição que abandonou a tática de tentar uma saída fora da institucionalidade, do golpe - então, o governo precisa ser mais político; e com a mudança no ambiente internacional do governo estadunidense, que se pauta muito mais pela articulação política do que pela agressão. Embora os Estados Unidos não mudem sua pretensão de serem hegemônicos, mudam o caminho para atingir esse objetivo.
A onda antiliberal parece que perdura porque tivemos agora as eleições em El Salvador e a Frente Farabundo Martí [5] foi vitoriosa. A situação interna da Venezuela depende muito desse quadro político latino-americano que eu, particularmente, espero que siga dando vantagem para esses governos de centro e de esquerda.
IHU On-Line - Existe, em toda a América Latina, uma forte campanha midiática antichavista. O apoio popular que Chávez possui hoje teve influência dessa campanha?
Gilberto Maringoni - Chávez tem sido vítima dessa campanha midiática que ora o retrata como um ditador, ora como um presidente folclórico. Eu não acho que todas as ações de Chávez no terreno político mereçam aplauso. Penso que ele alterna momentos de grande habilidade e de inabilidade. A cada tropeço que o governo tem isso é amplificado de maneira exponencial. Se Chávez resolve não renovar a concessão de canais de televisão golpistas, na mídia isso é colocado como se ele estivesse perseguindo a liberdade de imprensa. Quando ele tem ações positivas, como a de eliminar o analfabetismo na Venezuela, é totalmente ignorado pela grande mídia. A manifestação mais clara é na campanha midiática interna que se faz no Brasil contra o ingresso da Venezuela no Mercosul. Essa é uma atitude descabida porque o comércio entre a Venezuela e Brasil aumentou exponencialmente entre 2002 e 2009. Hoje, o Brasil tem um saldo comercial de quase cinco bilhões de dólares com a Venezuela, por exemplo.
IHU On-Line - E quem, além da imprensa, se coloca contra?
Gilberto Maringoni - O presidente do Senado, José Sarney, que diz que Chávez é antidemocrático e aprendiz de ditador. Engraçada é a figura de Sarney, que foi presidente do partido da ditadura, governador biônico no Maranhão, se colocou contra as eleições diretas e hoje vem falar, sem autoridade alguma, que a Venezuela vive um regime ditatorial. Justiça seja feita: a mídia brasileira não está sozinha nisso. Ela é acompanhada pela mídia conservadora dos Estados Unidos, da França, da Espanha, da Itália e de outros países. Não podemos aplaudir tudo o que Chávez faz, ou seja, não podemos perder o senso crítico. De qualquer modo, também não podemos perder de vista o balanço desses dez anos de administração de Hugo Chávez na Venezuela.
IHU On-Line - E quais são os limites da Venezuela?
Gilberto Maringoni - O primeiro limite é estrutural, em função do fato de ser um país não industrializado. Foram feitas várias tentativas de se diversificar a matriz produtiva da Venezuela, antes mesmo de Chávez, mas a dependência do petróleo acaba dificultando. A Venezuela tem um mercado interno muito reduzido para a instalação de uma indústria extensiva, de largo porte. Uma indústria automobilística, para dar certo na Venezuela, não pode atender só ao mercado interno, mas sim a um mercado regional. O mesmo acontece com a indústria de outros produtos, ou seja, só se viabiliza numa economia de escala. Com a crise, isso está mostrando seu lado perverso. Caiu o preço do petróleo e a Venezuela cai junto. É muito diferente da economia brasileira.
A segunda dificuldade da Venezuela é a baixa organização popular. Embora isso tenha melhorado, os partidos têm pouca representatividade social. Vendo isso, o governo tentou criar, de cima para baixo, a central sindical, partido e etc., mas com dificuldade, porque são criações artificiais. Por isso, se houvesse um atentado contra Chávez, o processo político venezuelano estaria em xeque, porque depende quase de uma pessoa só.
Além disso, a Venezuela é um país pequeno, embora tenha tido um papel decisivo no apoio a Cuba e aos países mais pobres da América Central. Agora, essa política está em xeque, se o preço do petróleo não subir.
Notas:
[1] Alberto Ken'ya Fujimori é engenheiro agrônomo e político nipo-peruano que ocupou a presidência do Peru durante dez anos. A Fujimori se credita ter logrado restaurar a estabilidade macroeconômica do Peru e restaurar a paz e seguridade interna depois do colapso do último governo. Durante os últimos meses do ano de 2000, Fujimori foi encurralado por uma serie de escândalos em seu governo. Durante esses fatos, saiu do Peru na qualidade de presidente para assistir à convenção da APEC, em Brunei, de onde depois viajou ao Japão, onde renunciou à presidência e pediu asilo político.
[2] Carlos Saúl Menem Akil foi presidente da Argentina durante dez anos. Foi muito criticado por um governo de corrupção, o seu perdão a ex-ditadores, o fracasso das suas políticas econômicas que levaram à taxa de desemprego de mais de 20% e uma das piores recessões que a Argentina já teve.
[3] Fernando Henrique Cardoso é sociólogo que foi presidente do Brasil por oito anos. Atualmente, é copresidente do Inter-American Dialogue. É membro dos Conselhos Consultivos do Institute for Advanced Study, da Universidade de Princeton, e da Fundação Rockefeller, em Nova Iorque.
[4] Celso Monteiro Furtado foi um importante economista brasileiro e um dos mais destacados intelectuais do país ao longo do século XX. Suas ideias sobre o desenvolvimento e o subdesenvolvimento divergiram das doutrinas econômicas dominantes em sua época e estimularam a adoção de políticas intervencionistas sobre o funcionamento da economia.
[5] A Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional é um partido político socialista de El Salvador. Foi fundada como um grupo guerrilheiro em 1980 a partir da fusão das outras cinco organizações políticas. Em março de 1980, o assassinato do arcebispo de San Salvador, Oscar Romero, defensor dos Direitos Humanos, marca o começo da guerra civil no país. No mesmo ano, em dezembro, o cristão-democrata, José Napoleón Duarte, membro da junta civil-militar que havia tomado o poder em 1979, através de um golpe de estado, assume o poder, tornando-se presidente. As ações da guerrilha, capitaneadas pelo partido, desestruturaram vários serviços do país, como transporte, energia e comunicações, fazendo com que o mesmo termine a década de 1980 dominando ¼ do território salvadorenho. Em novembro de 1989, a FMLN chegou a dominar partes de San Salvador, mas falhou na tentativa de derrubar o governo central. Em abril de
1991, as negociações com o governo para a assinatura de um acordo de paz foram retomadas. Em março de 2009, a FMLN conseguiu eleger Mauricio Funes presidente no primeiro turno com 51,32% dos votos.