Direitos humanos, uma verdade desconfortável
por elaine tavares
Pode
parecer um paradoxo, mas o fato é que o mundo precisou, há 64 anos,
criar uma declaração de direitos humanos. Isso porque, ao final da
segunda grande guerra na Europa, as pessoas perceberam, estarrecidas,
que havia seres humanos capazes das coisas mais atrozes contra outros
seres humanos. Foi o caso do holocausto judeu imposto pelo nazismo. Mas,
não só isso, houve também o massacre de Hiroshima e Nagasaki, com a
bomba atômica lançada pelos estadunidenses, num momento em que o Japão
já estava praticamente rendido. E, em vários outros pontos do mundo
também havia gente capaz de torturas e outras violências indizíveis.
Então, todo esse terror fez com que a nascente Organização das Nações
Unidas, criada em 1945, estabelecesse uma norma para evitar que as
gentes no planeta seguissem sendo vítimas da violência e da dor. Assim,
no 10 de dezembro de 1948, a ONU lança a Declaração Universal dos
Direitos Humanos.
Ali,
os países membros assumiam o compromisso de garantir à família humana o
direito de viver com dignidade, liberdade e paz. Também declaravam que
esses direitos deveriam ser protegidos pelo Estado sob pena de as
pessoas serem compelidas, como último recurso, à rebelião contra a
tirania e a opressão.
Assim,
nos 30 artigos que conformam a declaração estão elencados os direitos
que devem ser gozados por qualquer ser humano, seja ele branco, negro,
amarelo, azul ou vermelho. Seja bom ou seja mau, pobre ou rico, ou de
qualquer religião. A cada um deve ser assegurada a igualdade de
direitos, a fraternidade, liberdade, segurança pessoal, igual proteção
da lei, proteção contra a discriminação, garantia de um tribunal
independente e imparcial quando responder qualquer acusação criminal,
ser considerado inocente até que seja provado o contrário, proteção
contra qualquer interferência na vida pessoal que signifique ataque à
honra, direito de locomoção, à nacionalidade, a buscar exílio se
perseguido, direito à liberdade de pensamento, opinião e expressão,
direito à livre associação, à segurança social, ao trabalho, ao
salário justo, repouso, lazer, alimentação, vestuário, educação,
cultura.
A
declaração também garante que ninguém pode ser mantido em escravidão ou
servidão, ninguém pode ser submetido à tortura nem tratamento cruel, e
ninguém poderá ser arbitrariamente preso. O texto, de certa forma,
ampara a pessoa em praticamente tudo o que é essencial á vida. E mais,
garante o direito de receber dos tributos nacionais o remédio efetivo
para os atos que violem esses direitos fundamentais.
É
com base nisso, portanto, que as famílias dos desaparecidos da ditadura
militar seguem exigindo do governo os corpos de seus entes queridos,
entendendo, inclusive que eles não cometeram crime algum. Pelo
contrário, aqueles que se levantaram contra a ruptura da ordem provocada
pelos militares em 1964, estavam exercitando o seu direito inalienável
de rebelião contra a tirania, como a própria declaração dos direitos
humanos assegura. Naqueles dias em que o poder militar rasgava a
Constituição e a própria Declaração dos Direitos Humanos, meninos e
meninas, professores, camponeses, sindicalistas, militantes sociais
foram presos, torturados, mortos ou desaparecidos. Sofreram as
violências mais vis e muitas famílias sequer tiveram o direito de chorar
os seus mortos. Os corpos nunca foram encontrados, não há sepultura,
não há certezas. Só a dor profunda que, hoje, segue exigindo o direito
humano de exigir do estado "o remédio efetivo para os atos que violaram esses direitos".
Aqueles
que compactuaram com a violência e a tortura da ditadura militar, ou os
que são capazes de desejar todas essas crueldades aos "outros" seguem
disseminando o discurso de que os que padeceram sob o jugo do estado na
ditadura militar eram bandidos. E se fossem, mereceriam a tortura? Cabe a
um homem infligir dor a outro? Já não foi superada a lei do talião, do
olho por olho, dente por dente? Pois parece que não, uma vez que a
tortura e a violência seguem sendo praticadas nas prisões, nas guerras, e
nas periferias.
É,
porque também pode ser torturante não ter casa para morar, não ter
comida, segurança ou um trapo para cobrir o corpo. Tudo isso é
violência, da mais atroz. Mas, ao que parece, muitos dos que gozam da
possibilidade de ter um trabalho, um salário, uma casa e vida digna,
preferem imputar ao outro, ao que nada tem, a etiqueta de "vagabundo",
"bandido" , "baderneiro", "terrorista" e, assim sendo, estaria liberado a
ele toda a sorte de sevícias.
Mas,
para os que militam pelos direitos humanos, mesmo o bandido, o
vagabundo, o caído, ainda segue sendo humano e, portanto, merece ser
tratado como tal. Seus crimes, se houverem, serão punidos. A violência, a
tortura, a sevícia não trará de volta os que morreram, não mudará os
fatos, não aplacará a dor. É certo que ainda é longo o caminho para a
beleza, para um mundo onde não seja necessário que exista uma lei que
puna aqueles que violentam seus irmãos. Só que enquanto esse tempo não
chega, as famílias de desaparecidos, os sem casa, sem terra, sem
trabalho, sem espaço no mundo capitalista, seguirão lutando, esgrimindo a
lei, que é o que se pode ter agora.
E
àqueles que insistem em achincalhar a luta pelos direitos humanos,
dizendo que só se defende bandido, que fiquem alertas, porque como diz a
canção do Chico, uma belo dia podem se ver na condição daqueles que
tanto discriminam. A vida é uma roda, que gira sem parar, ora estamos
aqui, ora ali, ora em cima, ora em baixo. Por isso, o melhor é defender a
vida, seja de quem for, homens, mulheres, animais, plantas. Porque só
vale a pena viver se todos a nossa volta têm vida plena. É bom para nós e
para eles. Então, ainda que tantos não queiram, seguiremos em caravana
no deserto dos amores humanos...
Conheça a declaração, na íntegra: http://portal.mj.gov. br/sedh/ct/legis_intern/ddh_ bib_inter_universal.htm
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