Noam Chomsky: "Os EUA estão torturando o Irã há 60 anos"
A seguir a entrevista dos jornalistas Amy Goodman e Nermeen Shaikh
Amy
Goodman e Nermeen Shaikh: Noam, poderia referir-se ao Irã
e sobre o que o conflito na Síria significa para esse país? O que
os EUA poderiam fazer para mudar a dinâmica do Oriente Médio?
Noam
Chomsky: O fato crucial sobre o Irã, pelo qual devemos começar, é
que nos últimos 60 anos, não passou um único dia em que os EUA não
tenham torturado iranianos. Faz agora 60 anos. Começou com um golpe
militar, que derrubou o regime parlamentar, em 1953, e instalou o Xá,
um ditador brutal. A Anistia Internacional descreveu-o como um dos
piores e mais extremistas torturadores do mundo, ano após ano.
Quando ele foi derrubado, em 1979, os EUA quase imediatamente se
viraram para apoiar Saddam Hussein num ataque contra o Irã, que
matou centenas de milhares de iranianos, usando extensivamente armas
químicas. Claro que, ao mesmo tempo, Saddam atacou a sua população
curda com terríveis armas químicas. Os EUA apoiaram isso tudo. A
administração Reagan ainda conseguiu evitar punições para o
Iraque. Os EUA ganharam, essencialmente, a guerra contra o Irã por
meio do seu apoio ao Iraque. Saddam Hussein era um favorito da
Administração de Reagan e da primeira administração de Bush, a
tal ponto que George H.W. Bush, o primeiro Bush, logo após a guerra,
em 1989, convidou engenheiros nucleares iraquianos para virem aos EUA
para terem formação avançada na produção de armas nucleares. Era
esse o país que havia devastado o Irã, com um terrível ataque e
guerra. Logo depois disso, o Irã foi submetido a duras sanções. E
isso continua até hoje. Portanto, temos agora um registro de 60 anos
de torturas a iranianos. Não prestamos atenção a isso, mas pode
ter certeza de que eles o fazem, com razão. Essa é a primeira
questão.
Porquê o ataque contra o Irã?
Porquê o ataque contra o Irã?
Voltamos
ao princípio da Máfia. Em 1979, os iranianos levaram a cabo um ato
ilegítimo: derrubaram um tirano que os Estados Unidos havia imposto
e apoiado e que tomou um rumo independente, desobedecendo às ordens
dos EUA. Isso entra em conflito com a doutrina da Máfia, que de fato
governa o mundo. A credibilidade deve ser mantida. O “padrinho”
não pode permitir a independência e o sucesso dos que o desafiam,
como no caso de Cuba. Portanto, o Irã tinha de ser punido. O
pretexto atual é que o Irã tem um programa de armas nucleares. Bem,
segundo o jornal New York Times, o Irã está desenvolvendo armas
nucleares, mas os serviços de informação nos EUA, por outro lado,
desconhecem esse fato. Dizem que “talvez estejam”. Se, de acordo
com os sistemas de informação dos EUA, com os seus relatórios
periódicos ao Congresso, o Irã está a desenvolver armas nucleares,
seria parte de sua estratégia de dissuasão, ou seja, parte da sua
estratégia para se defender de um ataque externo. Como os serviços
de informação dos EUA apontam, o Irã tem pouca capacidade de se
impor pela força. A sua despesa militar é baixa, mesmo para os
padrões da região, mas tem uma estratégia de dissuasão e com
razão. Está cercado por potências nucleares, que são apoiadas
pelos Estados Unidos e recusaram assinar o Tratado de Não
Proliferação. Israel, a Índia e o Paquistão desenvolveram armas
nucleares com a assistência dos EUA. A Índia e Israel continuam a
ter um apoio substancial dos EUA para os seus programas de armas
nucleares e outros programas, tais como a ocupação de parte da
Síria, em violação das ordens do Conselho de Segurança. E o Irã
está constantemente ameaçado. Os Estados Unidos e Israel, duas
grandes potências nucleares (quero dizer, um é uma superpotência,
o outro uma superpotência regional), estão constantemente a ameaçar
o Irã com um ataque. Novamente, isso é uma violação da Carta da
ONU, que proíbe a ameaça ou o uso da força, mas os EUA são
relativamente imunes ao direito internacional, e os seus clientes
herdaram esse direito. Assim, o Irã está sob ameaça constante.
Está cercado por estados hostis com capacidade nuclear. E talvez
esteja a desenvolver uma capacidade de dissuasão. Não sabemos. O
New York Times sabe, mas os serviços de informação não. Esse é o
pretexto.
Existe alguma coisa que possamos fazer?
Existe alguma coisa que possamos fazer?
Os EUA
encaram o Irã como “a mais grave ameaça à paz mundial”. Esse
foi o relatório de imprensa após o debate presidencial final sobre
política externa e, descrevendo com bastante precisão o consenso, o
acordo entre Obama e Romney sobre as ameaças no Oriente Médio: o
Irã é a maior ameaça à paz mundial, a maior ameaça na região,
por causa dos seus programas nucleares. Essa é a posição dos EUA.
Qual é a posição do mundo?
Qual é a posição do mundo?
Bem, isso
é fácil de descobrir. A maioria dos países do mundo pertence ao
Movimento de Países Não Alinhados, que acabara de ter, de fato, a
sua reunião ordinária, em Teerã, no Irã. E, mais uma vez, apoiou
vigorosamente – vigorosamente - o direito do Irã de enriquecer
urânio, como signatário do Tratado de Não Proliferação, ao
contrário de Israel e da Índia. Este é o Movimento dos Não
Alinhados.
E quanto ao mundo árabe?
E quanto ao mundo árabe?
Bem, no
mundo árabe, não gostam do Irã, não gostam nada. As tensões
existem há muitos séculos. Mas o Irã não é considerado como uma
ameaça. Uma porcentagem muito pequena no mundo árabe encara o Irã
como uma ameaça. No mundo árabe, eles reconhecem de fato as ameaças
graves: os EUA e Israel. Isso é revelado por pesquisa atrás de
pesquisa, feitas pelos principais órgãos ocidentais. Aqui, a
informação é de que os árabes apoiam os EUA contra o Irã. Mas a
referência não é feita relativamente às populações árabes, que
são consideradas irrelevantes, mas aos ditadores. Uma das ditaduras
mais extremistas, e a mais importante, do ponto de vista dos EUA, é
a Arábia Saudita. A Arábia Saudita é o estado fundamentalista mais
extremista no mundo. É também um estado missionário. Despende
enormes esforços, de há muitos anos, para divulgar sua versão
extremista Wahhabista-salafista do Islã, tudo com o apoio dos EUA. É
uma ditadura, não há por lá a chamada Primavera Árabe. E os
ditadores, ali e noutros emirados árabes, provavelmente apoiam a
política dos EUA em relação ao Irã. E, para os EUA, para a mídia
norte-americana e para os comentarista do país, basta que os
ditadores nos apoiem. Não importa o que a população pensa. Bem,
isso quanto ao mundo árabe. E é o mesmo no resto do mundo. A
obsessão com o Irã é uma obsessão dos EUA, e talvez atraia alguns
dos seus aliados.
O que poderemos fazer sobre a alegada ameaça?
O que poderemos fazer sobre a alegada ameaça?
Bem, há
coisas que podem ser feitas. Assim, por exemplo, em 2010, chegou-se a
uma solução para o problema das armas nucleares iranianas. Houve um
acordo entre Irã, Turquia e Brasil para o que o Irã pudesse expedir
todos os seus recursos de urânio para outro país, para a Turquia,
para armazenamento. Não continuaria a enriquecer urânio. E, em
contrapartida, o Ocidente iria fornecer o Irã com os isótopos de
que necessita para os seus reatores de investigação médica. Era
esse o acordo. Assim que o acordo foi anunciado, foi duramente
condenado pelo presidente Obama, pela imprensa, pelo Congresso; houve
duras condenações ao Brasil, em particular, e à Turquia, por
concordarem com isto. Obama apressou-se a decretar sanções mais
duras. O ministro das Relações Exteriores brasileiro estava
bastante irritado com isso e lançou para a imprensa uma carta do
presidente Obama em que este havia sugerido exatamente este programa
ao Brasil. Obviamente, tinha sugerido no pressuposto de que o Irã
nunca iria aceitá-lo e então teria outro motivo para propaganda.
Bem, o Irã aceitou, portanto, o Brasil tinha de ser condenado e a
Turquia tinha de ser parcialmente condenada, e ameaçados, de fato,
pela implementação da política que Obama tinha sugerido. Isso
poderia ser reinstituído, talvez, com alguma modificação. Isso
seria uma forma de abordar o problema. Houve uma proposta, desde
1974, para estabelecer uma zona livre de armas nucleares na região.
Essa seria a melhor maneira de mitigar, talvez pôr um termo a
qualquer que seja a ameaça que o Irã é acusado de constituir. E
isso tem um enorme apoio internacional, tão grande que os EUA foram
obrigados a concordar formalmente, mas acrescentando que não pode
ser feito. Essa é uma questão muito atual agora. Em Dezembro
passado, haveria uma conferência em Helsinque, na Finlândia, uma
conferência internacional para levar esta proposta adiante. Israel
anunciou que não iria participar. O Irã anunciou, no início de
Novembro, que iria participar da conferência, sem condições.
Então, Obama cancelou a conferência. Nada de Conferência de
Helsinque. A razão que os EUA deram foi, quase textualmente, a razão
de Israel: Nós não podemos ter um acordo de armas nucleares até
que haja um acordo geral de paz regional. E isso não vai acontecer
enquanto os EUA continuarem a bloquear uma solução diplomática
para o conflito Israel-Palestina, como fazem há 35 anos. É nesse
ponto que estamos.
Fonte: O
Diário.info