Para entender a luta do povo da Síria
Recordar os
acontecimentos do Irão há 60 anos ajuda a compreender a atual estratégia dos
EUA para o Médio Oriente. O discurso em que Obama anunciou que decidira
bombardear a Síria inseriu-se numa política de dominação universal concebida no
final da II Guerra Mundial.
Inseguro quanto à atitude do
Congresso e ciente de que a maioria do seu povo condenava um ataque militar à
Síria, o presidente recuou. Mas seria uma ingenuidade acreditar numa viragem da
estratégia agressiva dos EUA para a Região. Nesta, o derrubamento do governo de
Bashar al Assad é somente uma etapa do projeto que tem por alvo numa segunda
fase o Irão, o grande país muçulmano que não se submete ao imperialismo
norte-americano.
É útil lembrar que foi ainda em vida de Roosevelt que um grupo de sábios da Casa
Branca e do Pentágono elaborou o War and Peace Program, ambicioso plano que
visava a longo prazo estabelecer o domínio perpétuo dos EUA sobre a Humanidade,
a partir da convicção de que a desagregação do Império Britânico estava
iminente e era irreversível.
Ainda não
fora criado o estado de Israel, mas a substituição da hegemonia da Grã-Bretanha
no Médio Oriente figurava entre as prioridades desse Programa entre cujas metas
se incluía o esfacelamento da União Soviética.
O êxito
em 1953 do golpe de Estado que derrubou o governo progressista de Mohammad
Mossadegh (1882-1967) e permitiu a recolonização do Irão contribuiu para
acelerar a penetração política, económica e militar dos EUA no Médio Oriente.
Antecedentes
Desde
meados do século XIX, a Inglaterra e o Império russo, no contexto da sua
confrontação no Afeganistão, desenvolveram um esforço permanente para colocar o
Irão (ao tempo Pérsia) sob a sua «proteção».
Após a
Revolução Russa de Outubro de 1917 a situação mudou e as pretensões britânicas
esbarraram com a firme oposição da União Soviética.
No final da I Guerra Mundial, a monarquia persa agonizava. Um general, Reza Khan, tornou-se primeiro-ministro em 1921 e tentou modernizar o país. Mas, ambicioso, usou a sua popularidade para promover um golpe de Estado.
No final da I Guerra Mundial, a monarquia persa agonizava. Um general, Reza Khan, tornou-se primeiro-ministro em 1921 e tentou modernizar o país. Mas, ambicioso, usou a sua popularidade para promover um golpe de Estado.
Derrubou o
soberano Ahmed Qajar e proclamou-se Xá, isto é, imperador.
Entre as personalidades que se opuseram ao novo regime ditatorial destacou-se um jovem que já desempenhara importantes funções públicas: Mohammad Mossadegh.
Entre as personalidades que se opuseram ao novo regime ditatorial destacou-se um jovem que já desempenhara importantes funções públicas: Mohammad Mossadegh.
Filho de
um ministro da monarquia e de uma princesa Qajar, Mossadegh estudara Ciências
Sociais em França e posteriormente doutorara-se em Direito na Suíça.
Desde a
juventude chamou a atenção pela sua honestidade. Ganhou a alcunha de
«incorruptível», como Robespierre. Mas, aristocrata pelo nascimento e educação,
casou com uma princesa da última dinastia.
Reza Xá
demitiu-o dos cargos que exercia e desterrou-o para Ahamadabad, sua cidade
natal.
Nos anos
que separaram as duas guerras, o petróleo adquirira uma importância enorme na
economia mundial. E a Grã-Bretanha controlava as gigantescas jazidas de
hidrocarbonetos do Irão através da Anglo Iranian Oil, um gigantesco polvo
transnacional que atuava como monopólio na produção e extração.
Alegando
simpatias do Xá pela Alemanha de Hitler, o governo britânico obrigou-o a
abdicar em 1941, ocupou o país (com exceção da faixa Norte,
fronteiriça da
URSS) e colocou no trono o filho, Reza Pahlavi.
Mossadegh
regressou então à política, primeiro como deputado, depois como ministro das
Finanças e ministro dos Negócios Estrangeiros, e finalmente como
primeiro-ministro.
A
nacionalização do petróleo
Uma vaga
de nacionalismo varria então o Irão. Mohammad Mossadegh foi o dirigente que
soube encarnar as aspirações do seu povo, liderando a luta por uma independência
real.
O Irão
estava reduzido à condição de semi-colónia. Ousou o que parecia impossível:
desafiou a Inglaterra imperial ao nacionalizar a Anglo Iranian, que era
oficialmente propriedade do Almirantado Britânico.
Londres
reagiu com sobranceria, apresentando queixa no Conselho de Segurança, mas o
órgão executivo das Nações Unidas remeteu o caso para o Tribunal da Haia.
Mossadegh
desenvolveu nesses meses uma atividade frenética em defesa da soberania
iraniana. Esteve primeiro nos EUA e o seu discurso na ONU teve tamanha
repercussão que a revista conservadora Time Magazine o nomeou Homem do Ano em
1951. Viajou depois para a Holanda e pronunciou um discurso histórico no
Tribunal de Haia. A sua intervenção foi decisiva para o veredicto daquela alta
corte de justiça. O tribunal concluiu que não tinha competência para julgar a
denúncia da Grã-Bretanha.
De
regresso a Teerão, Mossadegh fechou os consulados britânicos, expulsou todos os
técnicos ingleses e rompeu as relações diplomáticas com o governo de Londres.
Restituíra
ao Irão a dignidade perdida há séculos e o povo identificou nele um herói.
O golpe
O governo
britânico, apoiado pelo norte-americano Truman, decidiu recorrer a métodos
drásticos para afastar Mossadegh do poder. Intrigando junto do Xá, criou um
conflito entre o monarca e o primeiro-ministro. Mossadegh foi demitido em julho
de 1952, mas essa decisão provocou tamanha indignação popular, com
manifestações de protesto nas ruas, que o Xá o nomeou novamente
primeiro-ministro.
Fortalecido
pelo apoio popular, pediu poderes especiais ao Parlamento para levar adiante 80
projetos de lei que beneficiariam as massas, esmagadas pelas engrenagens de uma
sociedade arcaica.
Obteve-os.
Mossadegh introduziu nos meses seguintes reformas revolucionárias que envolveram
as finanças, o orçamento, a saúde pública, a justiça, as pescas, a habitação, a
previdência social, as comunicações, as forças armadas. Reformas nunca
imaginadas numa sociedade islâmica marcada por heranças feudais.
Os
acontecimentos precipitaram-se. O governo de Churchill comprou dezenas de
deputados para sabotar a política de Mossadegh. Este reagiu convocando um
referendo no início de agosto de 1953 para dissolver o Parlamento. O povo
iraniano votou a dissolução por ampla maioria.
A
conspiração, entretanto, estava já muito avançada. No dia 15 houve uma
tentativa de golpe de Estado promovida pelo Parlamento.
Fracassou e o Xá fugiu para Roma.
Fracassou e o Xá fugiu para Roma.
Mas a
CIA, que contava com todo o apoio do governo britânico, que pedira a
colaboração de Truman, montara quase simultaneamente o seu golpe com
colaboração do exército. Foi precedido de manifestações de rua com a
participação de agentes provocadores e de ações de vandalismo no contexto de
uma campanha de calúnias contra Mossadegh.
E esse
segundo golpe teve êxito. Preso, Mossadegh foi julgado sumariamente por um
tribunal militar que o condenou a três anos de prisão e, posteriormente, a
residência fixa na sua província.
O Xá
regressou de Roma, e em tempo mínimo, as leis progressistas de Mossadegh foram
revogadas. O grande beneficiário da mudança foi, porém, o imperialismo
norte-americano. As grandes petrolíferas dos Estados Unidos, já então
fortemente implantadas na Arábia Saudita e no Iraque, cobiçavam os
hidrocarbonetos iranianos. E abocanharam uma grande fatia à custa da Anglo
Iranian que reapareceu com o nome de British Petroleum.
Um
nacionalista revolucionário
A
Revolução iraniana de 1979 foi o desfecho da longa e cruel ditadura que, sob a
liderança nominal do Xá Reza Pahlevi, se implantou no país após o golpe de
1953.
Recolonizado,
o Irão foi o melhor e mais dócil aliado dos EUA no Médio Oriente. Durante um
quarto de século, os gigantes transnacionais do petróleo foram no país o poder
real.
O
Ayatollah Komeiny não teria obtido o amplo apoio popular que lhe permitiu impor
a sua República Islâmica xiita se o povo não sentisse uma repulsa tão forte
pela arrogância imperial dos EUA e se não estivesse maduro para se rebelar
contra o monstruoso regime policial do Xá.
A memória
do breve governo revolucionário de Mossadegh permanece viva e funciona como um
estimulante no confronto dos atuais governantes com Washington. Obama não
esconde que os EUA não aceitam um Irão insubmisso.
Mas a
ofensiva de desinformação estado-unidense que continua a apresentar Mossadegh
como um defensor do socialismo deforma a realidade. Ele foi um patriota que
amou profundamente o seu povo e tinha um grande orgulho pela contribuição
civilizacional para a Humanidade dos Aqueménidas e Sassânidas persas e do
século de ouro dos Safévidas. Mas, apesar de anti-imperialista irredutível, não
contestava o sistema capitalista.
O persa
Mohammad Mossadegh foi um humanista. Herdeiro de grandes latifúndios,
distribuiu as suas terras pelos camponeses que as trabalhavam. E como
primeiro-ministro ofereceu o seu vencimento a estudantes pobres de Direito.
Hoje é
venerado como um herói pelo seu povo.
O Irão
desconhecido
Contrariamente
ao que pensam muitos portugueses, intoxicados por um sistema mediático
perverso, o Irão não é um país subdesenvolvido.
Com uma superfície de 1 648 000 km2 (o triplo da França) tem uma população de 79 milhões de habitantes.
Com uma superfície de 1 648 000 km2 (o triplo da França) tem uma população de 79 milhões de habitantes.
Herdeiro
de grandes civilizações, o seu povo é o mais culto e educado do Islão, sendo
muito baixa a percentagem de analfabetos.
Sociedade
multinacional – somente 52% dos habitantes são persas – o idioma oficial, o
farsi, é falado por toda a população. Foi durante séculos a língua da corte
otomana e dos imperadores Mogóis da Índia.
O sector
avançado da indústria é comparável ao de países como o Brasil e o México.
Produz quase meio milhão de automóveis por ano, a maioria de marcas nacionais.
É o
quarto produtor de petróleo do mundo e possui as maiores reservas de gás
natural. Auto-suficiente na produção de cereais, conta com rebanhos bovino e
ovino de muitas dezenas de milhões de cabeças.
Tive a
oportunidade numa viagem de carro pelo planalto iraniano de passar em frente
das instalações nucleares de Natanz. Soube ali que estão protegidas por mísseis
sofisticados, de produção nacional, capazes de atingir Israel.
Os
generais do Pentágono admitem que bombas convencionais serão provavelmente
ineficazes se utilizadas contra os bunkers subterrâneos de Natanz.
*Este
artigo foi publicado no “Avante!” nº 2078, 26.09.2013