"A LUTA DE UM POVO, UM POVO EM LUTA!"

Agência de Notícias Nova Colômbia (em espanhol)

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A violência do Governo Colombiano não soluciona os problemas do Povo, especialmente os problemas dos camponeses.

Pelo contrário, os agrava.


domingo, 19 de outubro de 2014

O que se esconde na delação premiada


A imprensa e o judiciário, principalmente este, deveriam atender aos preceitos constitucionais de presunção de inocência e do devido processo legal.


Juarez Tavares e Frederico Figueiredo (*)

No início da segunda e decisiva fase do nosso processo eleitoral, grandes e tradicionais grupos de mídia passaram a veicular, incessantemente, trechos de uma suposta gravação do depoimento de um dos principais envolvidos num complexo esquema de lavagem de dinheiro, exatamente os trechos que poderiam interferir no resultado das urnas e prejudicar o partido de uma das candidaturas. As informações teriam sido prestadas após a celebração de um acordo de delação premiada entre juiz e acusado, com aval do Ministério Público. Pouco se questionou o efetivo valor jurídico desses depoimentos, nem as consequências no processo penal de seu vazamento seletivo pelos meios de comunicação.

Mesmo longe de períodos eleitorais, a delação premiada já é um instrumento extremamente controvertido dentro do direito processual penal. Se é defendido por uns, como modelo de eficiência, é também gritante sua incompatibilidade com certas garantias constitucionais inerentes a regimes democráticos. Há uma série de direitos fundamentais que não podem ser renunciados pelo indiciado ou acusado, como o de pleitear do judiciário a reparação de ato que o prejudique, de interpor recursos que lhe são assegurados, de se insurgir contra coação processual, de não se submeter aos ditames da outra parte, de ser tratado com isonomia e de ser considerado presumidamente inocente até a prolação de sentença condenatória definitiva.


A violação desses direitos transforma em prova ilícita todas as informações prestadas pelo delator, que devem ser, por isso mesmo, eliminadas dos autos. E como o direito brasileiro acolheu a teoria extrema da prova ilícita, pela qual ficam contaminados todos os atos que a ela se vinculem, o procedimento penal daí decorrente é também juridicamente imprestável. Cabe à autoridade judicial tomar medidas preventivas contra eventuais prejuízos causados por informações não comprovadas nas delações, protegendo-as por sigilo judicial — a violação desse sigilo constitui uma grave infração, a configurar o delito previsto no art. 10 da Lei 9.296/96.

No entanto, a delação premiada é uma realidade e sua utilização no auxílio de investigações parece uma prática cada vez mais generalizada no Brasil. Como se por trás do instituto houvesse uma lógica muito mais forte do que a defesa de direitos fundamentais. Não surpreende que ela obedeça aos mesmos ditames do mercado. Alega-se, por exemplo, o anacronismo de nosso modelo processual para combater sofisticados esquemas de criminalidade e propõe-se flexibilizá-lo em nome de um aumento de produtividade. A perda de certas garantias do acusado é justamente compensada com a ampliação de outros direitos não menos fundamentais. Além do mais, o acusado permanece livre para decidir e fazer uma boa escolha, um bom negócio. São argumentos bastante próximos do senso comum, mas sobretudo de um certo pensamento econômico radical, um discurso que se apresenta como única solução possível. — There is no alternative, diriam os apóstolos do neoliberalismo.

No início dos anos 1950, o John Nash conseguiu resolver por meio de um modelo matemático o célebre dilema dos prisioneiros, um problema de lógica onde dois participantes, impedidos de combinar suas estratégias previamente, são instados a colaborar com as autoridades de investigação e delatar o companheiro. Se os participantes não aceitam a oferta, suas penas permanecem inalteradas. Se apenas um colabora, o delator será posto em liberdade enquanto o outro terá sua pena aumentada. Caso ambos colaborem, a pena dos dois será sensivelmente atenuada. Nash comprova que a melhor solução para o jogador racional é delatar o companheiro; seu modelo, o equilíbrio de Nash, serviu de impulso para um notável desenvolvimento da teoria dos jogos não-cooperativos e para reforçar a tese da eficiência dos mercados de Pareto.

Tratar a delação como a atitude mais racional, no entanto, só retira em parte o estigma que se construiu em torno da figura do colaborador. Cachorro, alcaguete, xis-nove — o jargão popular tende a desacreditá-lo sem piedade, quase nunca desprovido de razão. Como, de fato, ocorreu na ditadura, com o estígma indelevel do dedo-duro. É bom aqui distingui-lo de outro tipo de denunciante que goza de grande prestígio junto ao público e é muitas vezes retratado como heroico: aqueles que assumiram uma posição mais frágil, justamente por optarem pela denúncia. Enquanto se exalta a coragem destes últimos, despreza-se a motivação mesquinha dos primeiros.

A decisão do acusado em colaborar com a investigação num sistema de delação premiada nunca é tomada livre de coação. Sem coação, é impensável a posição do delator. Não houvesse pressão sobre sua decisão, qual seria o poder de barganha das autoridades? O dilema real do prisioneiro não é um exercício de lógica, isolado de interferências externas, o modelo mais próximo não seria o de livre mercado, mas o de informações bastante assimétricas. De repente, perde-se o pudor de negociar com o acusado. Da presunção de inocência resta apenas a quantidade necessária para emprestar o mínimo de credibilidade às informações do delator já virtualmente condenado. Na falta de critérios bem delineados, juiz e representante do Ministério Público estabelecem e fiscalizam as metas para a validação do acordo e a concessão dos benefícios. Eles também terão seus próprios interesses, jogos dentro de outros jogos, mas ao fim e ao cabo aposta-se num equilíbrio sustentado por mãos invisíveis. Pura especulação.

Políticas econômicas ortodoxas, convém lembrar, sempre foram acompanhadas de políticas criminais igualmente ortodoxas. Seus resultados também são bastante parecidos, basta ver o colapso dos sistemas penais nos países que abraçaram a cartilha do mercado. No caso do Brasil, a população carcerária mais do que sextuplicou desde 1990 até hoje, com um déficit crescente de vagas no sistema. Alheio a um cenário que já produziu Carandiru e mais recentemente Pedrinhas, o debate sobre política criminal que acompanhamos durante o processo eleitoral parece limitado aos temas corrupção e impunidade. Pede-se mais pena. Fala-se da redução da maioridade penal, até de parcerias com o setor privado. Choques de gestão. Sob uma ótica meramente de mercado pode-se pensar, inclusive, na privatização dos presídios.

Tal como está ocorrendo, com a divulgação espetacular na grande imprensa dos nomes das pessoas acusadas pelo delator no processo que corre, em parte, em Curitiba, em parte, no Supremo Tribunal Federal, sob o beneplácito do judiciário, que faculta essa divulgação como se fosse o resultado de um processo público e democrático, o que se pretende é mais do que evidente: influir diretamente no pleito eleitoral, dando impressão de que tudo o que foi delatado corresponde à mais pura verdade. A imprensa e o judiciário, principalmente este, deveriam atender aos preceitos constitucionais de presunção de inocência e do devido processo legal, que exigem, antes de tudo, que a determinação da responsabilidade penal só pode se dar sob o pressuposto da proteção da pessoa, e não para atender a fins políticos ou ideológicos.

O regime democrático, ao contrário do que se pensa, não se fortalece com o emprego de meios inconstitucionais para obter eficiência na persecução penal. O regime democrático se fortalece precisamente quando os direitos fundamentais da pessoa são preservados, independentemente de seu caráter, de sua personalidade, de sua condição social, de seus antecedentes ou de seu comportamento. A democracia não é simplesmente o regime da maioria, a democracia é o regime no qual todos possam, como pessoas de direito, exercerem, livremente, sua real capacidade de concordância ou discordância. Se quisermos alcançar no Brasil os objetivos mais sublimes de um regime democrático centrado na proteção da dignidade da pessoa humana e orientado pela realização plena da cidadania, é hora de rever todos esses instrumentos perversos de delação, que alimentam o desrespeito a direitos fundamentais e, no fundo, conduzem a uma política estatal sem ética e sem compostura, bem ao gosto dos regimes ditatoriais.

(*) Juarez Tavares é Professor Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Professor Visitante na Universidade de Frankfurt am Main (Alemanha). Frederico Figueiredo é Doutor em Direito pela Universidade de Frankfurt am Main (Alemanha).