"A LUTA DE UM POVO, UM POVO EM LUTA!"

Agência de Notícias Nova Colômbia (em espanhol)

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A violência do Governo Colombiano não soluciona os problemas do Povo, especialmente os problemas dos camponeses.

Pelo contrário, os agrava.


quarta-feira, 22 de outubro de 2014

A essência da Bolívia de Evo e Álvaro


 
Se o Che nos escolheu para continuar sua revolução, não terá sido por acaso”, me diz um boliviano, repleto de orgulho, em La Paz.
 
Os carros são muitos, demasiados. Em particular os do serviço público. Não se entende como não chocam com mais regularidade. Os pedestres devemos calcular como passar de uma calçada para outra sem ser atropelados. Porém, não parece incomodar a ninguém. Só aos que não são daqui. Alguém disse alguma vez que era a “Xangai latino-americana”.
 
Me detenho a detalhar. Olho e olho por vários minutos e comprovo que indígenas, grande maioria neste país, já não descem da calçada para dar passagem a um mestiço ou branco.
 
Relembro, há dois anos, quando vi no Parlamento as indígenas com suas saias e chapéus. Os operários com suas humildes, ainda que muito limpas, roupas. Me impactou. É que a cultura ocidental, a “civilizada”, nos ensinou e nos acostumou a que esse recinto só se vai com paletó e gravata. Com saias bem cortadas e saltos.
 
Existe menos pobreza. O que já quer dizer que muito poucos anciãos e crianças pedem esmola. Há poucos anos não se tinha tranquilidade para almoçar num restaurante: eles passavam regularmente a pedir uma migalha ou dinheiro. A pessoa se sentia culpada por ter o que comer. O normal era que o proprietário do lugar os arrancasse a pauladas. Nunca vi outras carinhas que não fossem de indígenas. Eles, os donos originários destas terras, haviam sido como o lixo que estorva, e só eram braços para trabalhar, desde que chegaram os espanhóis no século XVI. Isso mudou a passos agigantados desde que Evo, o indígena, chegou ao governo em janeiro de 2006.
 
No ambiente da capital e de outras cidades se sente otimismo. Claro, faltam hospitais. E, nos que estão construindo, faltarão médicos para atender a maioria. Continua sendo elitista a formação médica, como em quase todas as partes do mundo. Desde as primeiras luzes deste governo, começaram a chegar milhares de médicos cubanos. Se instalaram para medicar em lugares remotos, onde apenas o sol e o ar chegavam. Milhares e milhares de bolivianos descobriram que existe uma ilha chamada Cuba, e que essas mulheres e esses homens em bata branca tratam-nos como humanos.
 
Muitos, bastantes, nem sabem falar castelhano, porque é em aimará, quéchua ou guarani que se comunicam. Línguas milenares, reconhecidas há poucos anos.
 
Em La Paz este governo, o do “irmão presidente”, construiu um teleférico, o “amarelo”, que é o mais comprido do mundo. Nesta semana se inaugura o “verde”, que creio que é mais comprido que o outro. Para os que vivem lá em cima, no município de El Alto, é uma economia de uma hora para chegar em baixo, em La Paz. Só custa três bolivianos todo o trajeto, de quase 20 minutos. É super moderno. Ao vê-lo, cabine após cabine, parece uma invasão de óvnis. Os pacenhos, os de La Paz, se sentem orgulhosos.
 
E Evo ganhou outras eleições. Todos esperavam. Foi a grande festa nacional. O mais impressionante foi que arrasou em Santa Cruz, o reduto da oposição, onde se forjaram até atos terroristas, atentados contra a vida de Evo e projetos separatistas. Lá, a maioria são branquelos. Vendo na TV os resultados nessa cidade, relembrei a rainha de beleza de há três anos, mais ou menos. A santa-cruzenha se atreveu a dizer, no concurso de Miss Universo, que na Bolívia não havia indígenas. Nessa cidade e em Sucre, a capital original do país, a publicidade é realizada com modelos nacionais, de corte europeu.
 
Em Santa Cruz, muitos industriais compreenderam que reinvestindo na nação também poderiam ganhar. Com Evo se está formando uma burguesia nacional, que reivindica a soberania. Aliada do processo de mudança. Seus operários e trabalhadoras já não são semiescravos e pagam o justo.
 
A imprensa, a que ainda mais vende, a das elites, a que continua adorando e esperando que os Estados Unidos voltem a governar com eles, tem o mesmo discurso que a de Equador e Venezuela. Penso que seus milionários proprietários poupariam dinheiro se uns poucos de seus jornalistas se coordenassem para fazer os artigos, de política nacional e internacional. Só teria que mudar alguns nomes e dados para pô-los no contexto de cada um destes países. É que os textos são unificados. O discurso é o mesmo. De todas as maneiras, admiro-os por todos os malabarismos que fazem para dar outra explicação à realidade.
 
Estive revisando o que propunha a tal oposição. Razão tiveram os bolivianos em dar-lhe semelhante surra em votos. Bem, é que não propunham. A base de seu discurso era criticar e inventar contra Evo e Álvaro Linera, o culto vice-presidente branco de coração mestiço e guerreiro. Falavam de “mudança”, de “democratizar”, de “servir as maiorias”. E a gente não sabe se ri ou fica dubitativo: porém, se fossem os mesmos, ou seus compadres, ou avôs ou bisavôs os que manejaram o país por décadas, quase séculos, como sua fazenda. Tiveram o país prostrado ante o capital estrangeiro e as decisões da embaixada estadunidense. Bolívia era, antes de Evo, o segundo país mais pobre do continente, depois do Haiti. Enquanto as imensas riquezas que seu solo tem iam para os Estados Unidos e Europa.
 
Recordo quando Evo entrou na casa presidencial, no Palácio Quemado, situado na pequena Plaza Murillo. Suponho que os funcionários que aí serviam estavam preocupados de que esse índio sujasse os pisos encerados. Evo queria saber para que servia cada sala. Depois de ver a sua, perguntou pela que ficava justamente ao lado. Não queriam abri-la. Que deviam pedir autorização a uma pessoa que não era boliviana. Ou também se deveria chamar a um escritório fora daí. Ante a insistência do novo presidente, decidiram abri-la. Melhor, forçar a porta, porque a chave nenhum boliviano tinha. Nem o serviço de segurança. É que era a sala da embaixada dos Estados Unidos, mais em particular, a do responsável da CIA. Evo, atrevido, ordenou que chamassem o responsável da delegação diplomática para que saíssem do escritório e do palácio. Foi seu primeiro ato de soberania.
 
Duas nações golpearam o orgulho europeu e tiveram que pagar por isso: Haiti e Bolívia. Os escravos negros africanos se rebelaram ao finalizar o século XVIII. Humilharam o poderoso exército francês de Napoleão, declararam a independência do Haiti, no primeiro dia de 1804, e declararam o fim da escravidão, três anos antes que a Inglaterra.
 
Na Bolívia nasceram as maiores revoltas indígenas contra o domínio espanhol. E desde o século XVII. Tupac Katari e sua esposa Bartolina Sisa se levantaram em armas, em fins do século seguinte. 
Seguiram-nos milhares de indígenas. Sitiaram La Paz. Queriam acabar com a escravidão a que estavam submetidos seus irmãos de sangue. Claro, não se chamava escravidão porque os reis espanhóis e o Vaticano haviam decidido, desde o século XVI, que os indígenas tinham alma, eram humanos. O que os negros africanos não tinham. Porém, como havia necessidade de braços nas minas e nos campos, puseram outros nomes à escravidão. Depois de muitas batalhas, foram capturados. Esquartejaram-nos e exibiram suas partes por muitas regiões, para que os demais soubessem o que lhes iria suceder se continuassem insurgentes. Porém, as cinzas ficaram ardendo, e pouco depois explodiram as batalhas, em todo o continente, contra o domínio espanhol. E europeu, em geral.
 
Desde então, as potências europeias decidiram que os povos dessas duas nações deviam pagar por sua ousadia. Seu anseio de liberdade. Condenaram-nas à miséria.
 
Bolívia, com suas minas de ouro e prata tornou radiantes as nações europeias. Roubaram tanta prata, à custa de milhões de vidas, que se diz que com tal quantidade se teria podido construir uma ponte até Sevilha, cidade onde chegavam os tesouros roubados.
 
Ana Rosa, uma pequena mulher que guarda uma biblioteca de informação histórica em sua cabeça, me surpreende quando me conta que o militar Cornelio Saavedra teve uma decidida participação na Revolução de Maio, que foi o primeiro passo para a independência argentina. Se converteu numa proeminente figura da política, a ponto de chegar a ser o presidente da Primeira Junta de governo das Províncias Unidas do Rio da Prata. Saavedra era um boliviano, nascido em Oyuno, na atual província de Potosí. Um grande detalhe que os argentinos têm-no um pouco guardado.

 
Hoje, com Evo e Álvaro, a Bolívia voltou a ser soberana. A maioria de sua população, a indígena, sente que renasce o império Inca.
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* Hernando Calvo Ospina é jornalista e escritor colombiano, residente na França e colaborador de Le Monde Diplomatique. Seu último livro, traduzido para seis idiomas, é "Calla y Respira", publicado em espanhol por El Viejo Topo. Sua página web:http://hcalvospina.free.fr/


Fonte: Rebelión