A Segunda Guerra Mundial e a Operação Valquíria vistas por uma mulher.
Berlim
- 8 e 9 de maio são as datas que comemoram o fim oficial da
Segunda Guerra Mundial. A rendição incondicional de todas as Forcas
Armadas alemãs foi assinada perto da meia-noite em Berlim. Em
Moscou, cujo Exército Vermelho tomara a capital alemã, já era o
dia 9. Por isso as duas datas se referem a este final de uma das
guerras mais cruentas da historia da humanidade. Tradicionalmente as
comemorações lembram o esforço conjunto dos aliados. Mas não este
ano. Diversos países do Ocidente estão boicotando as comemorações
russas, alegando as violações de Moscou em relação a soberania da
Ucrânia. A Rússia, por seu lado, vem enfatizando o próprio
esforço, além de lembrar o elevadíssimo numero de vítimas (20
milhões).
Uma maneira original de lembrar estes eventos da historia é a leitura do livro Diários de Berlim, 1940 - 1945, da princesa russa Marie Vassiltchikov, que passou a guerra em Berlim, onde estava exilada. Além de evocar a atmosfera progressivamente deteriorada da cidade, sob os bombardeios aéreos, ela, que era visceralmente anti-nazista, testemunhou de perto a preparação da fracassada tentativa de matar Hitler em 20 de julho de 1944, e a repressão que se seguiu, vitimando vários de seus amigos. Ela própria acabou tendo que fugir de Berlim, indo para Viena, onde testemunhou o fim da guerra. Seu relato é considerado até hoje o mais completo dentre os contemporâneos daquela tentativa de por fim a guerra e a ditadura nazista, que ficou conhecida como Operação Valquiria.
A Boitempo Editorial acaba de publicar o livro com tradução e notas minhas, além de uma apresentação que reproduzimos a seguir.
A quarta capa é de autoria do professor Antonio Candido, que considera o livro uma obra “de qualidade extraordinária, como documento e como revelação de personalidade”. “A escrita, de excelentes predicados pela objetiva naturalidade, realça o fascínio despertado por esse relato que enriquece nosso conhecimento sobre uma das fases mais trágicas da historia contemporânea.
APRESENTAÇÃO:
Voltei para Johannisberg por Bad Schwalbach, através dos belos bosques do Taunus. Lá o silêncio é total, e uma sensação de quietude e paz nos invade...
Com estas palavras a autora deste diário, Marie Vassiltchikov (-Harnden) o encerra. A Segunda Guerra Mundial, começada seis anos antes, terminara na Europa há exatos quatro meses e nove dias; no Pacífico, há 39 dias.
O Taunus é um conjunto de colinas e montanhas entre o rio Reno e a cidade de Frankfurt. Brancas no inverno, são verdejantes no verão – momento em que o diário termina. Espaço de estações de águas muito procuradas pela aristocracia do continente pelo menos desde o século XVIII, é um cenário extremamente simbólico como referência final da autora. Durante a guerra ela vira o mundo aristocrata em que nascera e crescera ruir – tendo sido uma testemunha ‘privilegiada’ de um dos capítulos mais dramáticos deste final digno de uma ópera de Wagner: a trágica conspiração para matar Hitler que levou à fracassada tentativa de 20 de julho de 1944 e a repressão que se seguiu, dizimando parte significativa da alta oficialidade das Forças Armadas alemãs e dos diplomatas do país. Seu diário é considerado até hoje como o único depoimento extenso contemporâneo destes acontecimentos, com notas tomadas no calor da hora.
Mas não era somente a aristocracia que vira seu mundo destruído. A Europa inteira – junto com ela Berlim e Viena, cidades onde a autora passara a maior parte do conflito – era um amontoado de escombros, tanto do ponto de vista material quanto do espiritual. Uma espécie de ‘sentimento de ruína’ marcava tanto os vitoriosos quanto os derrotados, mas este era mais acentuado entre os que atravessaram a guerra na Alemanha ou que a ela se aliaram, tomados primeiro pela fúria nazista avassaladora e depois por sua hecatombe não menos catastrófica. Entre as ruínas armava-se novo conflito – a Guerra Fria, de cujos pródromos a autora também dá testemunho, através do vaivém dos norte-americanos e dos russos – além dos guerrilheiros de países como a Hungria e a ‘nova’ Tchecoslováquia (hoje desaparecida) – nos territórios ocupados, onde antes desfilava a sobranceria arrogante dos SS e outros nazistas.
A autora registra, inclusive, o verdadeiro pânico que se apossa dos aristocratas e outros que, de uma maneira ou de outra, tinham se acomodado dentro da ocupação nazista, diante do ameaçador avanço do Exército Vermelho soviético e dos guerrilheiros dos movimentos de resistência, sobretudo na Hungria, Tchecoslováquia e Áustria. Para ela mesma, refugiada russa tornada apátrida depois que sua família fugira da Revolução de 1917, e já na Segunda Guerra, da Lituânia ocupada pelos soviéticos devido ao Pacto Molotov-Ribbentrop, o avanço soviético representava um perigo substancial. Entretanto, ela demonstra o tempo inteiro um sangue frio notável, o mesmo que demonstrou durante a perseguição aos implicados no atentado de 20 de julho, em que se envolveram muitos de seus amigos e conhecidos.
O irmão mais novo da autora, George (‘Georgie’) Vassiltchikov, tomou a si o encargo de fazer a preparação final do diário para publicação, depois que ela morrera, em 1978, de leucemia. Em seu prefácio ele esclarece o modo com que foi redigido e revisto o diário, bem como as circunstâncias difíceis de sua, digamos, ‘sobrevivência’. Dividido, com suas partes guardadas em diferentes locais, escrito em parte num código taquigráfico pessoal, só pode ser reunido pela autora depois do final da guerra. E ela levou 31 anos para decidir-se pela publicação, completando a versão definitiva (iniciada em 1976) algumas semanas antes de sua morte. Na formatação final do livro, George Vassiltchikov complementou o diário com comentários próprios (registrados sempre em itálico), e contribuições da correspondência da autora ou de outras pessoas ligadas aos acontecimentos, além de elaborar um epílogo dando conta do destino de muitas das personalidades citadas por ela. Mais tarde redigiu também um posfácio, comentando o destino do diário depois de publicado. Partes do diário se perderam e até hoje não foram encontradas. Por razões desconhecidas a própria autora (quem afirma isto é o irmão) destruiu algumas de suas páginas.
O diário em si é uma obra-prima de minúcia e estilo. Nas condições difíceis em que se via a autora, comprimida entre a sua repulsa ao nazismo e ao próprio Hitler, sua condição de exilada apátrida e a censura reinante, ela acabou criando um compromisso entre a anotação detalhada dos acontecimentos, das reações dos personagens (e de si mesma), e uma necessária concisão de escrita, que redundaram num estilo notável pelo uso preciso e contido das palavras, sem jamais cair no rebuscamento ou na obscuridade. Na tradução, feita a partir do original em inglês, procurou-se manter a fidelidade a este estilo, respeitando-se também o momento histórico da escrita, isto é, sem recorrer a expressões que entraram em nosso léxico corrente num período posterior.
A leitura levará leitoras e leitores ao encontro de algo que pode-se chamar de uma ‘composição sinfônica’, com algumas linhas temáticas organizando-se como os movimentos de uma grande peça musical. Entretanto, a organização do diário faz com que estes movimentos se desdobrem simultaneamente perante o olhar de quem lê, entrelaçando-se e interpenetrando-se sem cessar na criação de uma atmosfera narrativa extremamente complexa, viva e mutante, apesar da constância de certos traços do estilo e da autora, como o já mencionado sangue-frio diante da dramaticidade dos acontecimentos, aliado a uma percepção extremamente perspicaz do seu contexto e dos personagens que a rodeiam, que não raro envereda por uma ironia fina e por vez ou outra até algo mordaz.
Aqueles ‘movimentos sinfônicos’, em número de 5, seguidos de uma coda, poderiam ser descritos da seguinte forma:
Uma maneira original de lembrar estes eventos da historia é a leitura do livro Diários de Berlim, 1940 - 1945, da princesa russa Marie Vassiltchikov, que passou a guerra em Berlim, onde estava exilada. Além de evocar a atmosfera progressivamente deteriorada da cidade, sob os bombardeios aéreos, ela, que era visceralmente anti-nazista, testemunhou de perto a preparação da fracassada tentativa de matar Hitler em 20 de julho de 1944, e a repressão que se seguiu, vitimando vários de seus amigos. Ela própria acabou tendo que fugir de Berlim, indo para Viena, onde testemunhou o fim da guerra. Seu relato é considerado até hoje o mais completo dentre os contemporâneos daquela tentativa de por fim a guerra e a ditadura nazista, que ficou conhecida como Operação Valquiria.
A Boitempo Editorial acaba de publicar o livro com tradução e notas minhas, além de uma apresentação que reproduzimos a seguir.
A quarta capa é de autoria do professor Antonio Candido, que considera o livro uma obra “de qualidade extraordinária, como documento e como revelação de personalidade”. “A escrita, de excelentes predicados pela objetiva naturalidade, realça o fascínio despertado por esse relato que enriquece nosso conhecimento sobre uma das fases mais trágicas da historia contemporânea.
APRESENTAÇÃO:
Voltei para Johannisberg por Bad Schwalbach, através dos belos bosques do Taunus. Lá o silêncio é total, e uma sensação de quietude e paz nos invade...
Com estas palavras a autora deste diário, Marie Vassiltchikov (-Harnden) o encerra. A Segunda Guerra Mundial, começada seis anos antes, terminara na Europa há exatos quatro meses e nove dias; no Pacífico, há 39 dias.
O Taunus é um conjunto de colinas e montanhas entre o rio Reno e a cidade de Frankfurt. Brancas no inverno, são verdejantes no verão – momento em que o diário termina. Espaço de estações de águas muito procuradas pela aristocracia do continente pelo menos desde o século XVIII, é um cenário extremamente simbólico como referência final da autora. Durante a guerra ela vira o mundo aristocrata em que nascera e crescera ruir – tendo sido uma testemunha ‘privilegiada’ de um dos capítulos mais dramáticos deste final digno de uma ópera de Wagner: a trágica conspiração para matar Hitler que levou à fracassada tentativa de 20 de julho de 1944 e a repressão que se seguiu, dizimando parte significativa da alta oficialidade das Forças Armadas alemãs e dos diplomatas do país. Seu diário é considerado até hoje como o único depoimento extenso contemporâneo destes acontecimentos, com notas tomadas no calor da hora.
Mas não era somente a aristocracia que vira seu mundo destruído. A Europa inteira – junto com ela Berlim e Viena, cidades onde a autora passara a maior parte do conflito – era um amontoado de escombros, tanto do ponto de vista material quanto do espiritual. Uma espécie de ‘sentimento de ruína’ marcava tanto os vitoriosos quanto os derrotados, mas este era mais acentuado entre os que atravessaram a guerra na Alemanha ou que a ela se aliaram, tomados primeiro pela fúria nazista avassaladora e depois por sua hecatombe não menos catastrófica. Entre as ruínas armava-se novo conflito – a Guerra Fria, de cujos pródromos a autora também dá testemunho, através do vaivém dos norte-americanos e dos russos – além dos guerrilheiros de países como a Hungria e a ‘nova’ Tchecoslováquia (hoje desaparecida) – nos territórios ocupados, onde antes desfilava a sobranceria arrogante dos SS e outros nazistas.
A autora registra, inclusive, o verdadeiro pânico que se apossa dos aristocratas e outros que, de uma maneira ou de outra, tinham se acomodado dentro da ocupação nazista, diante do ameaçador avanço do Exército Vermelho soviético e dos guerrilheiros dos movimentos de resistência, sobretudo na Hungria, Tchecoslováquia e Áustria. Para ela mesma, refugiada russa tornada apátrida depois que sua família fugira da Revolução de 1917, e já na Segunda Guerra, da Lituânia ocupada pelos soviéticos devido ao Pacto Molotov-Ribbentrop, o avanço soviético representava um perigo substancial. Entretanto, ela demonstra o tempo inteiro um sangue frio notável, o mesmo que demonstrou durante a perseguição aos implicados no atentado de 20 de julho, em que se envolveram muitos de seus amigos e conhecidos.
O irmão mais novo da autora, George (‘Georgie’) Vassiltchikov, tomou a si o encargo de fazer a preparação final do diário para publicação, depois que ela morrera, em 1978, de leucemia. Em seu prefácio ele esclarece o modo com que foi redigido e revisto o diário, bem como as circunstâncias difíceis de sua, digamos, ‘sobrevivência’. Dividido, com suas partes guardadas em diferentes locais, escrito em parte num código taquigráfico pessoal, só pode ser reunido pela autora depois do final da guerra. E ela levou 31 anos para decidir-se pela publicação, completando a versão definitiva (iniciada em 1976) algumas semanas antes de sua morte. Na formatação final do livro, George Vassiltchikov complementou o diário com comentários próprios (registrados sempre em itálico), e contribuições da correspondência da autora ou de outras pessoas ligadas aos acontecimentos, além de elaborar um epílogo dando conta do destino de muitas das personalidades citadas por ela. Mais tarde redigiu também um posfácio, comentando o destino do diário depois de publicado. Partes do diário se perderam e até hoje não foram encontradas. Por razões desconhecidas a própria autora (quem afirma isto é o irmão) destruiu algumas de suas páginas.
O diário em si é uma obra-prima de minúcia e estilo. Nas condições difíceis em que se via a autora, comprimida entre a sua repulsa ao nazismo e ao próprio Hitler, sua condição de exilada apátrida e a censura reinante, ela acabou criando um compromisso entre a anotação detalhada dos acontecimentos, das reações dos personagens (e de si mesma), e uma necessária concisão de escrita, que redundaram num estilo notável pelo uso preciso e contido das palavras, sem jamais cair no rebuscamento ou na obscuridade. Na tradução, feita a partir do original em inglês, procurou-se manter a fidelidade a este estilo, respeitando-se também o momento histórico da escrita, isto é, sem recorrer a expressões que entraram em nosso léxico corrente num período posterior.
A leitura levará leitoras e leitores ao encontro de algo que pode-se chamar de uma ‘composição sinfônica’, com algumas linhas temáticas organizando-se como os movimentos de uma grande peça musical. Entretanto, a organização do diário faz com que estes movimentos se desdobrem simultaneamente perante o olhar de quem lê, entrelaçando-se e interpenetrando-se sem cessar na criação de uma atmosfera narrativa extremamente complexa, viva e mutante, apesar da constância de certos traços do estilo e da autora, como o já mencionado sangue-frio diante da dramaticidade dos acontecimentos, aliado a uma percepção extremamente perspicaz do seu contexto e dos personagens que a rodeiam, que não raro envereda por uma ironia fina e por vez ou outra até algo mordaz.
Aqueles ‘movimentos sinfônicos’, em número de 5, seguidos de uma coda, poderiam ser descritos da seguinte forma:
1. Há um allegro vivace que jamais desaparece, embora seja mais vibrante no começo e depois, diante das vicissitudes da guerra, da repressão nazista e da hecatombe final ele vá se esmaecendo até desbotar quase por completo. Seu tema é o da jovem (quando o diário começa a autora está para completar 23 anos) que, apesar das circunstâncias adversas, quer aproveitar a vida, desabrochar, divertir-se, ir a festas, piqueniques, encontrar companhias agradáveis, enfim, desfrutar de tudo o que a ‘maturidade juvenil’ poderia lhe oferecer. Neste movimento vemos uma sucessão de festas, jantares, recepções que se oferecem na Berlim do começo e mesmo do meio da guerra, sobretudo nos círculos aristocráticos e diplomáticos que ela frequenta. Tal ritmo contrasta – sem jamais ser abafado – pela necessidade de encontrar trabalho, remuneração e também alimentação adequada. Esta era particularrmente difícil num clima de racionamento de gêneros de primeira necessidade, em que, paradoxalmente, escasseiam, por exemplo, cerveja, carne e batatas, mas abundam caviar, ostras e champanhe – iguarias vindas dos territórios ocupados a leste e a oeste.
2. Ao lado deste movimento desenvolvem-se o minueto e o rondó do mundo aristocrático, cujo ápice se dá com o casamento do Príncipe Konstantin da Baviera com a Princesa Maria-Adelgunde de Hohenzollern, em 31 de agosto de 1942, no castelo de Sigmaringen. A festa durou vários dias e foi descrita como o maior evento social da aristocracia europeia durante a guerra – e o último. A autora não abandona seu olhar sempre perspicaz sobre este mundo cujos alicerces estão terminando de ruir. Toda a pompa (e circunstância) de tal acontecimento é descrita de modo finamente irônico, ao mesmo tempo participativo e distanciado, registrando o decoro de um mundo que se desvanece em meio aos bombardeios, invasões e atrocidades da guerra que ruge ao redor.
3. O terceiro movimento pode ser compreendido como uma verdadeira sátira musicale. Compõe-no o mundo do trabalho da autora, que a atrai e repugna ao mesmo tempo. Ele a atrai porque, sobretudo no Ministério de Relações Exteriores, ela se vê num dos pouco ‘aquários’ dentro do universo nazista onde a informação circula sem censura prévia (embora dali para fora tudo seja censurado) devido às necessidades próprias da guerra. Também a atrai porque é nele que ela descobre o verdadeiro ‘ninho’ da resistência aristocrática anti-nazista e alguns dos personagens que ocuparão o primeiro plano na sua narrativa, de um ponto de vista factual ou ético. Mas ao mesmo tempo é um mundo que lhe provoca repugnância, pela mistura de obtusidade, subserviência, oportunismo e arrogância que a prática e a prédica nazistas lhe impõem, sobretudo através dos chefes envolvidos com a S.S., que progressivamente vão tomando conta da atmosfera. Também torna-se satírica a observação dos próprios trabalhos que ela se vê na circunstância de fazer, como a montagem de um arquivo fotográfico que é destruído pelo fogo por duas vezes, cuja elaboração sempre recomeça, como um verdadeiro trabalho de Sísifo. Por outro lado, chega a ser cômica a obstinação de alguns de seus chefes, como a de um deles que já em meio ao desmoronamento final do regime nazista ainda desencava um patético projeto de uma nova revista de propaganda a ser lançada no futuro, quando não há mais futuro. Ou então, já em Viena, a obsessão de outros nazistas com frases bombásticas de dedicação e até vitória num momento em que o dilúvio das bombas dos Aliados e a verdadeira torrente do Exército Vermelho desmancham suas ilusórias arcas de salvação.
4. O quarto movimento, um típico andante com tonalidades a um tempo épicas e trágicas, é o andamento da guerra. Inscrevem-se neste movimento algumas das páginas mais belas, contundentes e terríveis deste diário. A descrição dos bombardeios, sobretudo sobre Berlim, mas também em Viena e outras cidades, toma vulto perante o olhar que ler o diário, trazendo-lhe o impacto de destruição e desolação que toda guerra carrega invariavelmente consigo. Alternam-se os bombardeios com os incêndios subsequentes, enquanto a urbs e a própria ideia de urbanidade vão sendo pulverizadas no plano concreto e também no plano espiritual dos que passam a viver entre escombros – às vezes das próprias casas em que antes habitavam com maior ou menor conforto, mas pelo menos algum conforto. É um cenário ao mesmo tempo macabro e majestoso, medonho e pungente, em que o estilo da autora, sem dúvida, extrai e dá o melhor de si.
5. O quinto movimento pode ser descrito como o de um adagio trágico, embora por vezes apresente momentos de altíssima e frenética tensão. Ele é introduzido pelo meio do diário, e aos poucos vai ocupando o primeiro plano, a ponto de se tornar o motivo central da composição. É tudo o que gira em torno da conspiração que levou ao atentado de 20 de julho de 1944, seu fracasso, e a brutal e vingativa repressão que se seguiu. Para a leitura atenta das entrelinhas, ficará evidente que, apesar das negativas, a autora do diário nela se envolveu mais do que quer admitir. O motivo deste ‘recuo’ fica obscuro; as conjeturas cabem, de novo, às possíveis leituras que o diário permite. Através da conspiração toma-se contato com aqueles que sejam talvez o núcleo central de personagens do diário, além da sua autora: o operoso Gottfried von Bismarck, militante obstinado no convencimento de outros; a irrequieta e temerária Loremarie Schönburg, ou Princesa Eleanore-Marie Schönburg-Hartenstein; e aquele que é, decididamente, o grande personagem trágico do livro, Adam von Trott zu Solz, um intelectual e diplomata brilhante, patriota, que tenta por todos os meios fazer uma conexão com os Aliados do Ocidente e no último momento até com os russos. Gottfried, neto do Chanceler de Ferro, será o homem que armazenará as quatro bombas destinadas ao atentado de 20 de julho; duas delas serão levadas pelo Coronel Claus von Stauffenberg que, devido a perda de uma mão em ferimento anterior, poderá preparar e usar apenas uma delas, um dos motivos que ajudarão Hitler a escapar ileso da explosão que vitimou quatro outras pessoas em seu bunker na Polônia. Loremarie, como grande parte da aristocracia germânica, tem manifesta aversão por Hitler. Mas ao contrário da maioria, não esconde sua aversão, tornando-se um perigo para os demais conspiradores. Aliás, fica evidente tal aversão de classe por parte dos aristocratas a Hitler, menos por seus aspectos autoritários e mais por aquilo que eles – massa dominante no alto oficialato do Exército germânico – consideravam o ‘populismo’, a ‘vulgaridade’ e o caráter de parvenus (‘recém-chegados’) de Hitler e seus asseclas (membros do governo, os S. S. e também os S. A.) no cenário do governo alemão. Já Adam von Trott guarda seu ideal de uma Alemanha altiva mas livre do pesadelo nazista – coisa que se prova incompatível com o momento então presente e o arrasta implacavelmente à destruição, cujo capítulo final será executado com crueldade pelos carrascos da prisão de Plötzensee. Todo o tempo fica evidente o laço de fervorosa admiração e acentuada afetividade – sem dúvida mútuas – que une este personagem e a autora do diário.
6. Por fim, para além dos cinco grandes movimentos da sinfonia, a coda registra uma espécie de andantino, a aventurosa busca do caminho até a casa de seus parentes, depois do fim da guerra. A viagem, algo pitoresca e cheia de peripécias, embora entre ruínas, tem algo de apaziguador e até de comicidade, envolvendo intempestivas propostas de casamento, além do oferecimento de uma prosaica água num capacete americano para que a autora lave seu rosto enegrecido pela fuligem de um trem. Este apaziguamento se revela em sua plenitude naquela frase final, evocando as montanhas e florestas do Taunus.
Para concluir, seguem descritas algumas considerações sobre a metodologia da tradução. Almejou-se a fidelidade ao estilo, mais do que à literalidade das expressões usadas pela autora. Ela vem acompanhada por inúmeras notas de rodapé, esclarecendo, para além dos valiosos comentários e inserções do irmão da autora, quem são os personagens citados e as circunstâncias de lugar e momento histórico referidas ao longo do diário. O motivo de tal profusão de notas é a distância temporal que separa os eventos narrados do público brasileiro atual; também situar a identidade e o papel de vários daqueles personagens. A sua presença ajuda a delinear o universo das relações pessoais e o contexto da vida da autora na Alemanha e depois na Áustria, durante a guerra e o seu desenlace.
Nem sempre foi possível esclarecer a identidade dos citados. Um dos motivos, por exemplo, é a excessiva coincidência de nomes e títulos dentro das famílias aristocratas da Europa, que dificulta a identificação precisa da pessoa citada. Por vezes a autora se refere apenas às iniciais do nome ou dá apenas o primeiro nome de alguém. Evitou-se fazer notas sobre personagens obviamente notórios, como Hitler, Roosevelt, Stalin, Churchill ou outros de igual renome, a menos que fosse para esclarecer algum detalhe significativo sobre sua presença no diário. As notas da tradução estão sempre em tipo normal. Já as do irmão da autora vêm sempre em itálico.
A maior parte das informações das notas de rodapé foi obtida na internet. Sua verificação é fácil, bastando pesquisar nomes e referências no universo virtual. Assim mesmo, sempre que possível procurou-se a confirmação das informações através do cruzamento de diferentes fontes. Quando a fonte for outra, como um livro ou artigo de revista ou jornal, a referência acompanha a nota.
De propósito, escreveu-se sempre com maiúscula o título de nobreza dos personagens ou o escalão militar a que pertencem. O motivo desta opção é a norma alemã de que tais títulos, como ‘Príncipe’ ou ‘Duque’, postos militares, como ‘Capitão’ ou ‘Coronel’, passam obrigatoriamente a integrar o nome próprio da pessoa, constando até em seus documentos de identidade. O mesmo acontece com os títulos universitários, como ‘Doutor’ ou ‘Professor Doutor’, etc. Optou-se por não nacionalizar para o português os nomes próprios. Assim escreveram-se os nomes sempre com a grafia original: Gottfried, Konstantin, etc.
O diário de Marie Vassiltchikov foi publicado na Inglaterra e nos Estados Unidos, na língua inglesa em que foi originalmente escrito. Há traduções para o alemão, para o russo, o francês,o espanhol e o italiano, pelo menos, e agora para o português do Brasil. Na capa da edição norte-americana em que baseou-se a presente tradução, consta uma observação do conhecido romancista John Le Carré, especializado em narrativas sobre a Guerra Fria:
‘Simplesmente um dos mais extraordinários diários de guerra jamais escritos. Inocente e ao mesmo tempo sofisticado, ele retrata a morte da Velha Europa através do olhar de uma linda jovem aristocrata, cujo mundo está morrendo com os eventos que ela descreve”.
Nada mais justo como observação sobre o livro.