A América Latina na dinâmica da guerra global
Por Jorge Beinstein
Evidentemente o Império está lançado numa catastrófica fuga militar para frente estendendo suas operações a todos os continentes, encontramo-nos em plena guerra global. Nem os grandes meios de comunicação, nem os dirigentes internacionais mais importantes registaram publicamente o facto, todos falam como se vivêssemos em tempos de paz, só em alguns poucos casos surgem alguns deles a advertir sobre o perigo de guerra mundial ou regional. Uma exceção recente é a do Papa Francisco quando afirmou que atualmente nos encontramos perante "uma terceira guerra mundial" que ele descreve como a desenvolver-se "por partes" ainda que sem designar os contendores e fazendo vagas referências à "cobiça" e a "interesses espúrios" com a linguagem confusa e jesuítica que o caracteriza [3].
A cada mês acrescenta-se algum novo indiciar que anuncia a proximidade de uma nova recessão global muito mais forte e extensa que a de 2009. O capitalismo, a começar pelo seu polo imperialista, foi-se convertendo velozmente num sistema de saqueio onde a reprodução das forças produtivas fica completamente subordinada à lógica do parasitismo. As elites imperiais e suas lumpen-burguesias satélites "necessitam" superexplorar até ao extermínio seus recursos naturais e mercados periféricos para sustentar as taxas de lucro do seu decadente sistema produtivo-financeiro.
As tendências globais rumo à decadência econômica exprimem-se de múltiplas maneiras no dia a dia. Dentre elas, a volatilidade dos preços das matérias-primas, o petróleo, por exemplo, chave mestra da economia mundial, cujo estancamento extrativo (que não conseguiu ser superado pelo show mediático em torno do "milagroso" petróleo de xisto) combina-se com desacelerações da procura internacional como ocorre atualmente. A isso se somam golpes especulativos e geopolíticos que convertem os mercados em espaços instáveis onde as manobras de curto prazo impõem a incerteza.
O curto-prazismo especulativo hegemônico engendra pacotes tecnológicos depredadores como a mineração a céu aberto, a fratura hidráulica ou a agricultura com base em transgênicos acompanhados por operações políticas e comunicacionais que degradam, desarticulam sistemas sociais procurando convertê-los em espaços indefesos diante dos saqueios.
O otimismo econômico da época do auge neoliberal deu lugar ao pessimismo do "estancamento secular" agora apregoado pelos grandes peritos do sistema [4]. Eles indicam que a salvação do capitalismo não chegará a partir da economia condenada a sofrer recessões ou crescimentos insignificantes, o melhor é nem falar demasiado desses tristes temas. Então a guerra ascende ao primeiro plano, algum massacre protagonizado por tropas regulares ou mercenárias, algum bombardeio, alguma ameaça de ataque na Europa do Leste, Ásia, África ou América Latina. Os meios de comunicação nos esmagam com essas notícias, contudo ninguém fala da guerra global.
Tudo acontece como se a dinâmica da guerra se houvesse autonomizado mas empregado um discurso embrulhado, difícil de entender. Mas assim como os super-poderes dos homens de negócios dos anos 1990 não eram independentes e sim compartilhados no interior de uma complexa trama de poderes (políticos, mediáticos, militares, etc) que em termos gerais costuma-se denominar como "classe dominante", também a aparente autonomia do militar dificulta-nos ver as redes mafiosas de interesses onde se borram as fronteiras entre os seus componentes. As elites da era neoliberal sofreram mudanças decisivas, experimentaram mutações que as converteram em classes completamente degeneradas que, cada vez mais, só podem recorrer à força bruta, à lógica da guerra. Não se trata, portanto de a componente militar se autonomizar e sim, antes, de que as elites imperialistas se militarizam. Elas já não seduzem com ofertas de consumo mais algumas doses de violência, agora só propagam o medo, ameaçam com as suas armas ou utilizam-nas.Progressismos latino-americanos
Dentro desse contexto global devemos avaliar os progressismos latino-americanos [5] que se instalaram na base das crises de governabilidade dos regimes neoliberais.
Os bons preços internacionais das matérias-primas durante a década passada, somados a políticas de contenção social dos pobres, permitiram-lhes recompor a governabilidade dos sistemas existentes. Em alguns desses casos desenvolveram-se ampliações ou renovações das elites capitalistas e em quase todos eles prosperaram as classes médias. Os governos progressistas iludiram-se supondo que as melhorias econômicas lhes permitiriam ganhar politicamente os referidos setores, mas, como era previsível, ocorreu o contrário: as camadas médias iam para a direita e, enquanto ascendiam, olhavam com desprezo os de baixo e assumiam como próprios os delírios mais reacionários das suas burguesias. A explicação é simples, na medida em que são preservados (e ainda fortalecidos) os fundamentos do sistema e em que seus núcleos decisivos radicalizam seu elitismo depredador seguindo a rota traçada pelos Estados Unidos (e "Ocidente" em geral) produz-se um encadeamento de subculturas neofascistas que vão desde acima até abaixo, desde o centro até as burguesias periféricas e desde estas até suas camadas médias. Na Venezuela, Brasil ou Argentina as classes médias melhoravam seu nível de vida e ao mesmo tempo despejavam seus votos nos candidatos da direita velha ou renovada.
Estabeleceu-se um conflito interminável entre governos progressistas que tornavam governáveis os capitalismos locais e direitas selvagens ansiosas por realizar grandes roubos e esmagar os pobres. O progressismo, confrontado politicamente com essa direita qualificada de "irresponsável", cujos fundamentos econômicos respeitava, chantageava aqueles na esquerda que criticavam sua submissão às regras do jogo do capitalismo utilizando o papão reacionário ("nós ou a besta"), acusando-os de fazerem o jogo da direita. Na realidade o progressismo é um grande jogo favorável ao sistema e em última análise à direita, sempre em condições de retornar ao governo graças à moderação, à "astúcia" aparentemente estúpida dos progressistas que por vezes conseguem cooptar esquerdas claudicantes cuja obsessão em "não fazer o jogo da direita" (e simultaneamente integrar-se no sistema) é completamente funcional à reprodução do país burguês e em consequência a essa detestável direita.
Agora o jogo começa a esgotar-se. Os progressismos governantes, com diferentes ritmos e variados discursos, acossados pelo arrefecimento económico global e pelo crescente intervencionismo dos Estados Unidos, vão perdendo espaço político. Em vários casos suas dificuldades fiscais pressionam-nos a ajustar despesas públicas (e de modo algum a reduzir os super lucros dos grupos económicos mais concentrados), a aceitar as devastações da mega-mineração ou a adotar medidas que facilitam a concentração de rendimentos. No Brasil, o segundo governo Dilma colocou um neoliberal puro e duro no comando da política económica, encurralado por uma direita ascendente, uma economia oscilando entre o estancamento e a recessão e uma intervenção norte-americana cada vez mais ativa. No Uruguai o novo governo de Tabaré Vazquez mostra um rosto claramente conservador e no Chile a presidência Bachelet não precisa correr demasiado à direita, depois da sua rosada demagogia eleitoral afirma-se como continuidade do governo anterior e em consequência, passada a confusão inicial, herdará também a hostilidade de importantes faixas de esquerda e dos movimentos sociais.
Na Argentina, o núcleo duro agro mineral exportador-financeiro e os grupos industriais exportadores mais concentrados estão mais prósperos do que nunca enquanto a ingerência norte-americana amplia-se conduzindo o jogo de títeres políticos rumo a uma ruptura ultra-direitista. Na Venezuela a eterna transição rumo a um socialismo que nunca acaba de chegar não conseguiu superar o capitalismo ainda que torne caótico o seu funcionamento, forjando desse modo o cenário de uma grande tragédia. Por enquanto só a Bolívia parece salvar-se da avalanche, afirmando-se na maior mutação social da sua história moderna sem superar o âmbito do subdesenvolvimento capitalista mas recompondo-o integrando as massas submersas, multiplicando por mil o que havia feito o peronismo na Argentina entre 1945 e 1955 (de qualquer forma isso não a liberta da mudança de contexto regional-global).
Na América Latina assistimos a um processo de crise muito profundo onde convergem progressismos declinantes com neoliberalismo integralmente degradados, como na Colômbia ou no México, conformando um panorama comum de perda de legitimidade do poder político, avanços de grupos econômicos saqueadores e ativismo imperialista cada vez mais forte.
A este panorama sombrio é necessário incorporar elementos que dão esperança, sem os quais não poderíamos começar a entender o que está a ocorrer. Por debaixo dos truques políticos, dos negócios rápidos e das histerias fascistas aparecem os protestos populares multitudinários, a persistência de esquerdas não cooptadas pelo sistema (para além dos seus perfis mais ou menos moderados ou radicais), a presença de insurgências incipientes ou poderosas (como na Colômbia).
Nem os cantos de sereia progressistas nem a repressão neoliberal puderam fazer desaparecer ou marginalizar completamente esses fantasmas. Realidade latino-americana que preocupa os estrategas do Império, que temem o que consideram como sua inevitável arremetida contra a região possa desencadear o inferno da insurgência continental. Nesse caso o paraíso dos grandes negócios poderia converter-se num grande atoleiro onde afundaria o conjunto do sistema.Geopolítica do Império, integrações e colonizações
A estratégia dos Estados Unidos aparece articulada em torno de três grandes eixos; o transatlântico e o transpacífico que apontam num gigantesco jogo de pinças contra a convergência russo-chinesa, centro motor da integração euro-asiática. E a seguir o eixo latino-americano destinado à recolonização da região.
Os Estados Unidos tentam converter a massa continental asiática e sua ampliação russo-europeia num espaço desarticulado, com grandes zonas caóticas, objeto de saqueio e super-exploração.
Os recursos naturais, assim como os laborais, desses territórios constituem seu centro de atenção principal, na elipse estratégica que cobre o Golfo Pérsico e a Bacia do Mar Cáspio estendendo-se em direção à Rússia encontram-se 80% das reservas globais de gás e 60% das de petróleo e na China habitam pouco mais de 230 milhões de operários industriais (aproximadamente um terço do total mundial).
A América Latina aparece como o quintal a recolonizar. Ali se encontram, por exemplo, as reservas petrolíferas da Venezuela (as primeira do mundo, 20% do total global), cerca de 80% das reservas mundiais de lítio (num triângulo territorial compreendido pelo Norte do Chile e Argentina e pelo Sul da Bolívia) imprescindível na futura indústria do automóvel eléctrico, as reservas de gás e petróleo de xisto do Sul argentino, fabulosas reservas de água doce do aquífero guarani entre o Brasil, o Paraguai e a Argentina.
Uma das ofensivas fortes do Império na década passada foi a tentativa de constituição da ALCA, zona de livre comércio e investimentos que significava a anexação econômica da região por parte dos Estados Unidos. O projeto fracassou. A ascensão do progressismo latino-americano somado à emergência de potências não ocidentais, sobretudo a China, e o atolamento estadunidense nas suas guerras asiáticas foram fatores decisivos que em diferentes medidas debilitaram a investida imperial.