A Paz e o peculiar momento eleitoral colombiano
Por Pietro Alarcón*
Coincidindo com os processos de
transição em vários Estados da América Latina, a partir de 1984 o
povo colombiano pressiona por uma solução política e não militar
ao conflito social e armado que se desenvolve no país, provocado
pela violência agenciada desde as alturas do poder dominante,
violência que se converteu num mecanismo de contenção das
exigências populares e numa manifestação da intolerância,
exclusão e desigualdade do regime político.
No fogo cruzado, entre a resistência
insurgente, o paramilitarismo como estratégia de setores do poder
contra sua própria sociedade, as força armadas e as bandas
criminais de hoje, a guerra degradou-se e as constantes violações
aos direitos humanos requerem tratamento urgente, pois é o povo quem
mais padece, especialmente as lideranças sociais e políticas
comprometidas com as mudanças democráticas.
Daí que seja preciso a criação de
condições para gerar o cessar das confrontações, aplicar as
normas do direito internacional humanitário, estabelecer políticas
públicas para frear o deslocamento interno, êxodo de grupos humanos
de uma região à outra no mesmo país – (ACNUR informa o escândalo
de mais de 6 milhões de deslocados internos em 2013, resultado de
fumigações, expansão da fronteira agrícola, ataques militares à
população civil) - e sobretudo ir estabelecendo, passo a passo, as
causas da guerra e atacando os pontos nodais que promovem sua
persistência.
Isso implica um modelo de negociação,
ou seja, uma sequência organizada de atos dirigidos a alcançar a
paz, promovendo a redistribuição da riqueza social e tornando
visível a dignidade humana. Mais claramente, nas condições
colombianas, efetivar o direito fundamental de todo povo à paz
implica tempo, diálogos, agendas, pontos concretos de análise,
aceitação das divergências e toda uma engenharia destinada a
tornar possível a participação cidadã, imprescindível para a
legitimidade desse processo. Implica, desde logo, prazos e
compromissos com o desmonte da estrutura arquitetada para a
desigualdade, para concentração da propriedade urbana e rural, para
os privilégios em favor de alguns e o ônus da acumulação
capitalista para a maioria dos colombianos.
É esse processo que no momento está
em curso, com inimigos internos e externos, com pressões de setores
das forças armadas e dos beneficiados com os negócios da guerra, e
com uma política externa americana que procura manter um cenário
propício para intervenções e manutenção de um clima de tensão
militar na América Latina.
Uma visão ancorada na história,
reflexiva sobre o tema Colômbia, supõe examinar esse fator – os
diálogos em curso – como algo peculiar dentro do processo
eleitoral.
E desde logo, uma análise que
pretenda desvendar contradições a partir dessa realidade,
aprofundando a síntese conceitual, retirando o secundário e focando
no principal do momento político, somente pode ser embasada no rigor
científico. E a ciência supõe métodos, e é aqui que se revela a
potência da luta entre setores diferenciados da sociedade pelo lugar
que ocupam no sistema produtivo como matriz analítica da história e
força criadora da vida e da política (Gantiva: Atrapados sin
salida. Revista Izquierda n. 44).
Assim, convém anotar que, embora à
primeira vista a classe dominante de um Estado responda, nas suas
linhas mais grossas, para sua projeção e ação, a uma lógica
unificada para a continuidade do regime político, a verdade é que
um diagnóstico mais acurado permite visualizar tendências e
confrontações no seu interior. Ou seja, podem ser identificadas
discrepâncias quanto à melhor forma para encarar a conjuntura,
divergências táticas, conforme seja o setor controlador de tal ou
qual segmento da economia e a política, sem necessariamente
distinguir-se por serem inimigos de classe.
Por isso, a contradição entre eles
não é antagônica. No particular, neste processo eleitoral, para
não estender mais as conclusões, as contradições entre Santos, o
atual presidente colombiano, e Zuluaga, o candidato do ex-presidente
Uribe, tem a ver com rivalidades sobre a cota de ganhos sobre os
grandes negócios entre o Estado e o capital privado, especialmente
as transnacionais ligadas ao capital de minérios, à depredação do
patrimônio público e à repartição das esferas estatais. E
também, e especialmente, tem a ver com os ganhos oriundos da
economia de guerra instalada na Colômbia em função do conflito,
com os acordos pré-agendados para abastecer de armas as forças
armadas, com as preferências ocasionais para satisfazer os
interesses de grupos ligados ao negócio da guerra, o que gera
confrontos sobre o tratamento do processo de paz, sobre a
administração do Estado e sobre o que fazer com um movimento social
que tem crescido em contestação à política econômica nos últimos
dois anos.
Essas contradições existem há
algumas décadas em virtude do desenvolvimento da classe hegemônica
tradicional e do surgimento de uma parcela ligada aos negócios mais
conturbados do narco-sistema de poder, do paramilitarismo e da
delinquência organizada. O momento eleitoral potencializa essas
divergências, obrigando os atores da mesma classe a posicionar-se
sobre o modelo de regime político em curso e as alternativas para
sua sustentação. Contudo, tais confrontos são episódicos, fazem
parte da conjuntura, uma suposta não conciliação é transitória,
momentânea e circunstancial.
Sem embargo, e logicamente, o
reconhecimento desses matizes é fundamental para traçar as fórmulas
de ação dos setores democráticos que trabalham por uma mudança
estrutural no país e para observar o panorama latino-americano na
sua dimensão mais ampla.
Na Colômbia, a pressão popular, em
virtude do descontentamento com o fracasso dos sucessivos planos
econômicos, o abandono dos serviços públicos, a omissão estatal
para satisfazer os direitos sociais e a resistência a formas
aberrantes de repressão estatal – paramilitarismo e terror de
Estado –, sugere a construção de uma unidade ampla e expressiva
em construção que pode, a médio prazo, ser alternativa de poder.
O governo de Santos não mostra os
melhores índices. Segundo a DIAN - Direção Nacional de Impostos -,
1% da população ganha 20% dos recursos totais distribuídos no
país; 15,5% dos jovens são desempregados; no ano 2012, 49, 1% da
população ganhava menos que o salário mínimo e a o percentual de
extrema pobreza chegou a mais do 9% (ver DIAN, site oficial,
www.dian.gov.co). Mas o pior é que se descumprem os acordos que
feitos, como sucedeu com os compromissos das jornadas de outubro de
2013 com os trabalhadores do campo.
Esse descumprimento gerou uma intensa
mobilização popular em abril deste ano. Os acordos exigidos
consistem em propor um plano de desconcentração da propriedade
sobre a terra, o acesso ao mercado seguro para os trabalhadores do
campo vítimas dos acordos dos Tratados de livre comércio, a
denúncia do modelo extrativista mineiro-energético e a garantia de
gerar condições para a segurança alimentar da população –
direito humano de primeira geração. Anote-se ainda a greve recente
dos professores que exigem aumento salarial e o fim das ameaças
constantes à vida das lideranças de suas organizações
representativas.
A repressão militar é constante,
justificada por ministros e setores das forças armadas com o
argumento de que o movimento social está infiltrado pelo terrorismo.
Não observar a dimensão do conflito social é um grave erro e
resulta num maniqueísmo tosco. Por isso não vinga mais o discurso
do ex-presidente Uribe, ou de qualquer um que encampe a ideia de que
na Colômbia não há conflito social, e não é aceitável deturpar
essa realidade com o palavreado de que se trata de um Estado valente
que combate terroristas ou pessoas auxiliares do terrorismo. Tais
manifestações escondem as cruas realidades e causas do surgimento
da violência e do desenvolvimento do conflito, a natureza real dos
seus atores e o drama dos colombianos.
Por isso, nem Santos nem Zuluoga –
nem lobos nem zorros. A necessidade de uma reformulação do regime
político, da estratégia econômica, torna-se fundamental. Os
diálogos de paz de Havana constituem um tema transversal em qualquer
debate sobre o público e o privado, sobre a chamada governabilidade
ou sobre as reformas e caminhos de crescimento econômico ou
desenvolvimento com redistribuição de riqueza. Reduzir as forças
armadas e reorientar o gasto público da guerra à satisfação das
necessidades públicas são determinantes para iniciar um processo de
democratização não só do Estado, mas da vida social.
Por isso, um projeto democrático,
progressista, é possível e necessário porque conta com argumentos
sólidos, não somente para denunciar as raízes históricas das
desigualdades sociais que geram o conflito, senão para ser
alternativa real de mudanças. Daí que, a despeito de setores
esperançados em que a luta reivindicativa é suficiente, não seja
possível renunciar ao debate eleitoral como forma de ação política
organizada e necessária para gerar as condições para essas
transformações.
As candidaturas de Clara López
Obregón e Aida Abella, do Polo Democrático e da União Patriótica,
como fórmula à presidência e vice-presidência da Colômbia,
representam essa possibilidade. Que, sem dúvida, ainda deve
amadurecer muito, em especial, aproximando-se mais ainda das diversas
formas de ação popular, contribuindo a uma rearticulação de
forças e à unidade contra o modelo de acumulação e concentração
da renda no país.
Nas eleições colombianas, está em
jogo um processo não apenas dos colombianos, mas do conjunto dos
latino-americanos. O avanço de uma proposta democrática, alinhavada
à ideia de uma sociedade justa, livre, de paz e para a paz, é um
contributo para aprofundar a prevalência dos direitos humanos no
continente.
*Pietro Alarcón é professor da
PUC/SP e representante do Comitê Permanente da Colômbia pela Defesa
dos Direitos Humanos – CPDDH (www.comitepermanente.org)