A da justiça é uma crise orgânica da dominação política oligárquica. A saída é a Constituinte pela paz.
Por
Horacio Duque Giraldo
A
explosão de outra crise [os antecedentes estão referidos ao
naufrágio de uma reforma ao sistema judicial no ano de 2012 e aos
escândalos permanentes no Conselho da Judicatura] no aparelho
judicial colombiano com o caso do paramagistrado uribista Pretel,
envolvido com sua mulher numa cadeia de situações de corrupção e
despojo de terras a campesinos de Urabá, não é mais que o reflexo
da crise generalizada do sistema de dominação política da
camarilha oligárquica que controla o Estado colombiano.
A
crise e o colapso da justiça é similar à da saúde sitiada pelos
bandidos, a da educação universitária convertida no pior dos
negócios, como vimos no caso da U de San Martin, a dos militares com
os “falsos positivos”, a da economia com a queda dos preços do
petróleo, a da corrupção em municípios e estados onde há uma
cascata de saqueios aos dinheiros públicos, a dos partidos
políticos, a do sistema eleitoral penetrado pela criminalidade, a
das cidades arruinadas pelo neoliberalismo, a do campo sitiado pela
violência, a dos meios de comunicação dominantes infestados de
mentiras e promotores da investida propagandística e ideológica, a
de Transmilenio e a mobilidade em Bogotá, enfim, a crise do poder de
umas elites contrárias aos interesses das maiorias nacionais
afetadas pela pobreza, a miséria e a negação estrutural dos
direitos humanos.
Com
esse panorama, não resta mais alternativa que recorrer à caixa de
ferramentas de Gramsci para esclarecer com o pensamento crítico o
que é isto, para onde marcha o campo político da sociedade e quais
são as saídas apropriadas para formular alternativas democráticas
e revolucionárias, na perspectiva do socialismo e do poder popular.
Antonio
Gramsci definiu, para situações como a que hoje vivemos, o conceito
de “crise orgânica”. Se trata desses momentos históricos em que
as forças dominantes fraturam as relações entre a sociedade e o
Estado, entre a economia e a política, e não podem exercer sua
direção do modo habitual.
Porém,
longe de simplismos, propomos aprofundar um pouco mais no significado
da “crise” e para isso convém que examinemos aqueles textos nos
quais mais direta e explicitamente Gramsci analisa tal situação
crítica e problemática e que nos entregam luzes para interpretar a
conjuntura colombiana.
Gramsci
fixa em suas reflexões alguns elementos fundamentais de uma teoria
da “crise orgânica”.
Primeiro
elemento. Com o conceito de “crise” Gramsci identifica uma fase
histórica complexa, de longa duração e de caráter mundial, e não
um ou mais acontecimentos que sejam as manifestações particulares
dela. O conceito de crise define, com efeito, aquilo que
habitualmente se denomina “período de transição”, isto é, um
processo crucial no qual se manifestam as contradições entre a
racionalidade histórico-política dominante e o surgimento de novos
sujeitos históricos portadores de inéditos comportamentos
coletivos, que, no nosso caso, são os potentes movimentos sociais,
um dos quais é a resistência campesina revolucionária contra a
violência terra-tenente, encarnada nas Farc.
Se
trata de um processo –escreve Gramsci- que tem muitas manifestações
e no qual as causas e os efeitos se complicam e se superpõem. Se
pode dizer que a crise como tal não tem uma data de começo senão
só de algumas manifestações mais clamorosas que costumam
identificar-se com a crise, errônea e tendenciosamente. Toda a
pós-guerra é crise, com intentos de evitá-la que algumas vezes têm
êxito neste ou noutro país, nada mais. Para alguns, e talvez não
erroneamente, a guerra mesma é uma manifestação da crise,
inclusive a primeira manifestação da crise.
Em
primeiro termo, deve-se notar que a “grande guerra”, ou seja, a
primeira guerra mundial, dadas suas dimensões, manifesta o caráter
mundial da crise mesma. O caráter mundial da crise é destacado por
Gramsci naquela passagem em que se pode escapar dela; ilusão que
deriva do fato que não se compreende que o mundo é uma unidade, se
queira ou não se queira, e que todos os países permanecendo em
certas condições estruturais passarão por alguma “crise”.
O
segundo elemento consiste na identificação dela como processo que
envolve ao conjunto da vida social, razão pela qual não pode ser
reduzida a seus aspectos particulares: crise financeira, crise de
autoridade, crise comercial, crise produtiva, crise judicial, etc. É
difícil nos fatos separar a crise econômica das crises políticas,
ideológicas etc.
É
com o conceito de crise orgânica que Gramsci define uma crise
histórica global. Ele contrapõe o conceito de crise orgânica ao
conceito de crise conjuntural [como a judicial]. Uma crise
conjuntural não é de ampla dimensão histórica e se apresenta como
ocasional, imediata, quase acidental, diz, e está determinada por
fatores “variáveis e em desenvolvimento”. Uma crise de caráter
orgânico, por outro lado, afeta aos grandes agrupamentos mais além
das pessoas imediatamente responsáveis e mais além do pessoal
dirigente; neste caso “se verifica uma crise que amiúde se
prolonga por décadas”. Esta duração excepcional significa que na
estrutura se revelaram [amadureceram] contradições irremediáveis,
ainda que as forças políticas que atuam em ordem à conservação e
defesa da mesma estrutura se esforçam por sanar em certos limites e
superar, com reformas imanentes e retoques cosméticos, como os 5 que
agora Santos propõe para a crise da justiça.
As
crises [conjunturais ou orgânicas] se manifestam no terreno do
mercado determinado; Gramsci entende por mercado determinado
determinada relação de forças sociais numa determinada estrutura
do aparelho de produção, relação garantida, ou seja, feita
permanente, por uma determinada superestrutura política, moral,
jurídica.
Porém,
que é o mercado determinado e por que coisa está determinado? Está
determinado pela estrutura fundamental da sociedade em referência, e
então será preciso analisar esta estrutura e identificar nela
aqueles elementos [relativamente] constantes que determinam o mercado
etc., e aqueles outros “variáveis e em desenvolvimento” que
determinam as crises conjunturais, até que também os elementos
[relativamente] constantes sejam modificados produzindo-se a crise
orgânica.
Escrevendo
especificamente sobre a “grande crise”, Gramsci assinala que cada
vez mais a vida econômica veio concentrando em torno a uma série de
grandes produções massivas, e estas são as que estão em crise:
controlar esta crise é impossível precisamente por sua amplitude e
profundidade, que chegaram a ter tais dimensões que a quantidade se
converte em qualidade, ou seja, há crise orgânica e não só
conjuntural.
Quando
Gramsci destaca o caráter orgânico da crise, toma distância a
respeito da associação que se faz comumente entre o conceito de
crise histórica global e das situações de estancamento ou
depressão econômica.
Outra
questão vinculada com a anterior –escreve- é a de ver se as
crises históricas fundamentais estejam determinadas imediatamente
pelas crises econômicas. Se pode excluir que, por si mesmas, as
crises econômicas imediatas produzam acontecimentos fundamentais,
que é a tentação de alguns com a crise econômica em curso devido
à queda dos preços do petróleo e seus efeitos fiscais.
A
estas considerações, faz seguir o exemplo da grande crise de 1789
na França: ela se desenvolve num período em que a situação
econômica era bem mais boa imediatamente, pelo qual não se pode
dizer que a catástrofe do Estado absoluto se tenha devido a uma
crise de empobrecimento. A ruptura do equilíbrio de forças não
sucede por causas mecânicas imediatas de empobrecimento do grupo
social que tinha interesse em romper o equilíbrio e que, de fato, o
rompe [a classe burguesa], senão que sucede no contexto de conflitos
superiores ao mundo econômico imediato, conectados ao “prestígio”
de classe [interesses econômicos futuros], a uma exasperação do
sentimento de independência, de autonomia e de poder. A questão
particular do mal-estar ou do bem-estar econômico como causa de
novas realidades históricas é um aspecto parcial da questão das
relações de forças em seus diferentes graus, nos enfatiza Gramsci.
A
crise orgânica não é, pois, nem uma crise puramente econômica nem
uma crise especificamente política, ela consiste precisamente na
contradição entre as relações econômicas existentes e as
relações políticas emergentes, entre economia e política, entre
“condições” e “iniciativas”, entre estrutura e
superestrutura.
Em
estreita relação com este segundo elemento, se apresenta o terceiro
elemento da teoria da crise orgânica:
“Uma
das contradições fundamentais é esta: que, enquanto a vida
econômica tem como premissa necessária o internacionalismo, ou
melhor, o cosmopolitismo, a vida estatal se desenvolveu sempre mais
no sentido do ‘nacionalismo’, ‘da autossuficiência’” etc.
Um dos traços mais vistosos da “atual crise” é nada mais que a
exasperação do elemento nacionalista [estatal nacionalista] na
economia: racionamentos, restrições ao comércio de divisas,
comércio equilibrado entre dois países etc.
A
crise se apresenta no período em que o capitalismo havia formado um
mercado de dimensões mundiais, e portanto se havia criado a
possibilidade de que os grupos econômicos dominantes nas nações
particulares obtivessem lucros subtraindo-os de outras nações
capitalistas; nestas condições, o mercado econômico internacional
se constitui como o lugar de competição entre grupos econômicos
dominantes nacionais. Sendo o mercado uma determinada relação de
forças sociais numa determinada estrutura do aparelho de produção,
a conformação do mercado mundial significa: a) que as forças
sociais começam a atuar em escala mundial, numa estrutura do
aparelho de produção que apresenta uma interdependência crescente
entre as particulares estruturas produtivas nacionais; b) que as
forças sociais que, enfrentando-se entre si, constituem as relações
de força, se torna muito mais complicado pela substancial
multiplicação dos contendores.
Nestas
condições, os grupos econômicos dominantes, respectivamente
unificados nos diferentes Estados nacionais, se defendem uns dos
outros através de políticas econômicas nacionalistas,
protecionistas.
Me
parece –escreve Gramsci- que, fazendo uma análise da crise, se
deveria começar enumerando os impedimentos postos pelas políticas
nacionais [ou nacionalistas] à circulação: 1) das mercadorias; 2)
dos capitais; 3) dos homens [trabalhadores e fundadores de novas
indústrias e novas empresas comerciais]. A premissa maior neste caso
é o nacionalismo, que não consiste tanto na intenção de produzir
no próprio território tudo o que se consome [que significaria que
todas as forças são orientadas prevendo-se um estado de guerra], e
que se expressa no protecionismo tradicional, senão no tentativo de
estabelecer as principais correntes comerciais com determinados
países, ou porque são aliados [e portanto se quer sustentá-los e
formar de uma maneira mais apta para uma situação de guerra] ou
porque se quer destruí-los já desde antes da guerra militar [e este
novo tipo de política econômica é o dos “racionamentos”, que
parte do absurdo de que entre dois países deva ter um balanço de
intercâmbios parelho, e não que cada país possa balançar em
paridade só comercializando com todos os países indistintamente].
Este
nacionalismo da vida estatal era, pois, resultado direto do
internacionalismo da vida econômica [internacionalismo contraditório
e parcial, enquanto expressão da ampliação do raio de ação dos
grupos econômicos que se unificam somente em nível nacional]. Eis
aqui porque a primeira guerra mundial foi a “primeira resposta dos
responsáveis” pela crise. E a segunda guerra mundial mostrará
depois a insuficiência dessas respostas a esta crise.
A
contradição entre o cosmopolitismo da vida econômica e o
nacionalismo da vida estatal está, pois, na origem da guerra,
enquanto as relações de força a nível internacional [entre as
classes dominantes unificadas nos Estados nacionais particulares] não
encontravam um lugar de confrontação política, isto é, um lugar
de mediação e de recomposição, como poderia ter sido uma
instituição estatal supranacional. À falta de uma dialética
política das relações de força internacionais, é o momento
militar [das relações de força] que se impõe. Neste sentido, a
guerra constituiu um substituto de um Estado multinacional, ou seja,
um complexo de atividades práticas e teóricas militares [que
definem a guerra, o Estado como guerra] em lugar daquele conjunto de
atividades práticas e teóricas políticas que faltam em nível
internacional, que definem o Estado. Neste sentido, deve-se entender
a concepção da guerra como continuação da política com outros
meios.
Por
isso, deve-se reexaminar a explicação leninista da guerra, segundo
a qual a guerra é a luta inter-imperialista pelo domínio dos
mercados coloniais, para a subdivisão e nova repartição das
colônias.
O
quarto elemento da teoria da crise orgânica está implícito nos
três elementos já expostos, e consiste na identificação da origem
da crise numa mudança global das relações de força entre as
classes e os Estados.
“A
crise tem sua origem em relações técnicas, ou seja, nas posições
de classes correspondentes, ou em outros fatos”. Legislações,
subversões etc.? Certo, parece demonstrável que a crise tem origens
“técnicas”, ou seja, nas respectivas relações de classes,
porém, em seus inícios, as primeiras manifestações ou previsões
deram lugar a conflitos de diferentes tipos e a intervenções
legislativas que puseram em evidência a crise mesma porém não a
determinaram, ou só lhe incrementaram alguns fatores. Esta não é a
simples reafirmação do critério teórico-metodológico geral
segundo o qual todos os processos históricos são produzidos por e
podem ser explicados como conflitos entre as classes; ela, bem mais,
resume uma análise histórica específica da “grande crise” e de
suas manifestações particulares. Em particular, Gramsci proporciona
uma explicação original dos fenômenos da inflação e deflação,
da “perturbação” do equilíbrio dinâmico entre a cota
consumida e a cota poupada da renda nacional e o ritmo da produção
como expressão de mudanças nas relações de força entre as
classes e entre os Estados.
Sobre
os fenômenos “monetários da crise”: quando num Estado a moeda
muda [inflação ou deflação], se produz uma nova estratificação
de classes no mesmo país; porém, quando muda uma moeda
internacional [por exemplo, a esterlina e, menos, o dólar etc.],
ocorre uma nova hierarquia entre os Estados, o que é mais complexo e
leva a reduções no comércio e, amiúde, a guerras, isto é, há
uma passagem “gratuita” de mercadorias e serviços de um país a
outro, e não somente de uma classe a outra da população. A
estabilidade das moedas é uma reivindicação, no interno, de
algumas classes, e no externo [para as moedas internacionais nas
quais se firmaram compromissos] de todos os comerciantes; porém, por
que elas variam? As razões são muitas, certamente: 1. porque o
Estado gasta demasiado, ou seja, não quer fazer pagar seus gastos a
certas classes diretamente, senão que indiretamente a outras e, se
lhe é possível, a países estrangeiros; 2. porque não se quer
diminuir um custo “diretamente” [exemplo, o salário], senão só
indiretamente e num tempo prolongado, evitando conflitos perigosos
etc. Em todo caso, também os efeitos monetários são devidos à
oposição entre os grupos sociais, que é preciso entender nem
sempre no interior do mesmo país em que sucede, senão que em
relação com um país antagonista
Sobre
o problema do desequilíbrio entre o consumo, a poupança e a
produção na “grande crise”, Gramsci compreende, ademais, que,
em suas raízes, mais que de um desequilíbrio nas relações entre
salários e lucros, se trata do fato que tem ocorrido na distribuição
da renda nacional através do comércio e da bolsa especialmente, que
se introduziu na pós-guerra [ou aumentou em comparação com o
período precedente] uma categoria de exatores/depredadores que não
representa nenhuma função produtiva necessária e indispensável,
enquanto absorve uma cota imponente da renda.
Se
trata, pois, da formação [ou da ampliação mais além de certos
limites] de um grupo social “parasitário”, que implica na
estruturação de uma composição demográfica irracional. Surge uma
crise quando crescem as forças do consumo em comparação com as de
produção; porém, não se trata somente de uma questão
quantitativa.
A
crise existe quando uma função intrinsecamente parasitária [da
classe política, burocrática e militar] se demonstra necessária
dadas as condições existentes: isso faz com que tal parasitismo
seja ainda mais grave. Precisamente quando um parasitismo é
“necessário”, o sistema que cria tal necessidade está condenado
em si mesmo.
Em
nosso caso, bem podemos estar falando do parasitismo da classe
política/judicial/militar que despoja a seu bel-prazer todo o
excedente controlado pelo Estado e seu governo, com Santos à frente.
Estes
processos não dependem naturalmente do desenvolvimento dos
mecanismos econômicos, senão que são resultado de projetos
políticos que têm em sua base o problema das relações de força
entre as classes.
Ainda
mais:
Que
não se queira [ou não se possa] mudar as relações internas [e
tampouco retificá-las racionalmente], aparece na política da dívida
pública, que aumenta continuamente o peso da passividade
demográfica, precisamente quando a parte ativa nacional, aumentam os
parasitas, a poupança se restringe e é desinvestida do processo
produtivo e desviada para a renda pública, ou seja, convertida na
causa de um novo parasitismo absoluto e relativo.
O
quinto elemento da teoria da crise econômica consiste na
identificação da ruptura dos automatismos dados e no surgimento de
novos comportamentos coletivos, os quais, no entanto, não conseguem
expandir-se até o ponto de substituir aos precedentes. Esta é uma
situação de contraste entre “representantes e representados”,
cujo conteúdo é a crise de hegemonia da classe dirigente, que
sucede, ou porque a classe dirigente falhou em alguma grande empresa
sua para a qual exigiu, ou impôs pela força o consenso das grandes
massas [como a guerra], ou porque vastas massas [especialmente de
campesinos e de pequenos burgueses intelectuais] passaram de repente
da passividade política a uma certa atividade e expõem
reivindicações que em seu conjunto inorgânico constituem uma
revolução. Se fala de “crise de autoridade” e ela é
precisamente uma crise de autonomia ou uma crise do Estado em seu
conjunto.
É
uma crise do Estado em seu conjunto, em que a classe dirigente vê
posta em tela de juízo sua "autoridade”, seja por um fracasso
próprio numa empresa política de envergadura, seja pela mobilização
ativa e consciente de amplas camadas sociais antes inativas.
Estas
crises de hegemonia são uma luta entre “dois conformismos”. Os
velhos dirigentes intelectuais e morais da sociedade sentem que se
lhes afunda o terreno sob os pés, se dão conta de que suas
“pregações” se converteram precisamente em “pregações”,
isto é, em algo alheio à realidade, em pura forma sem conteúdo, em
larva sem espírito; daqui seu desespero e suas tendências
reacionárias e conservadoras: a forma particular de civilização,
de cultura, de moralidade que eles representaram se decompõe e por
isto proclamam a morte de toda civilização, de toda cultura, de
toda moralidade e pedem ao Estado que adote medidas repressivas, e se
constituem num grupo de resistência distanciado do processo
histórico real, aumentando, deste modo, a duração da crise, porque
o ocaso de um modo de viver e de pensar não se pode produzir sem
crise.
Este
é o elemento decisivo da teoria gramsciana da crise orgânica. O que
permite identificar o papel da crise econômica ao interior da crise
orgânica: Se pode excluir que, por si mesmas, as crises econômicas
imediatas produzam acontecimentos fundamentais; somente podem criar
um terreno mais favorável para a difusão de certos modos de pensar,
de expressar e de resolver as questões que implicam todo o
desenvolvimento posterior da vida estatal.
Uma
crise econômica consiste, com efeito, num desequilíbrio nas
relações de forças do mercado determinado tal que debilita os
automatismos dominantes nos comportamentos coletivos, isto é, tal
que faz surgir comportamentos deteriorados, anômalos [especulações,
monopólios, armazenamentos etc.]. Estes comportamentos são de
natureza regressiva; no entanto, o enfraquecimento dos “automatismos
dados” é aquele que torna possível que novos comportamentos
coletivos se elaborem e difundam, isto é, que, frente aos novos
problemas, amadureçam novas respostas teóricas e práticas ao
interior de certos grupos e organizem sua atividade.
Mais
concretamente, se trata de processos de mobilização e de ativação
política de determinadas classes, as quais passam da passividade à
atividade, do consenso passivo à autonomia política, da fase
econômico-corporativa à organização em partidos, e que, enfim, se
põem o objetivo da “conquista” do Estado com o objetivo de que
os novos comportamentos dos que são portadores se generalizem em
toda a sociedade.
Em
suma.
A
crise orgânica está, pois, no fato de que determinadas classes não
se reconhecem mais na vida estatal, se separam dos grupos dirigentes
dados, porém, ao mesmo tempo, ainda não conseguem impor-se como
novas classes hegemônicas. É a sacudida do “bloco histórico”
completo, a crise que abarca tanto a perda da hegemonia como da
possibilidade dos dominantes de fazer avançar a economia, afetando a
estrutura e a hegemonia criada.
Em
palavras de Gramsci, se a classe dominante perdeu o consenso, então
não é mais “dirigente”, senão que unicamente dominante,
detentora da pura força coercitiva, o que significa que as classes
dominadas se separaram das ideologias tradicionais, não creem mais
no que acreditavam antes. A
crise consiste justamente em que o velho morre e o novo não pode
nascer,
e neste terreno se verificam os fenômenos mórbidos mais diversos.
Se
trata, na crise orgânica da dominação oligárquica, de uma
desintegração do bloco histórico, no sentido de que os
intelectuais que estão encarregados de fazer funcionar o nexo
estrutura-superestrutura se separam da classe a que estavam
organicamente unidos e já não permitem que exerça sua função
hegemônica sobre o conjunto da sociedade. «A classe dominante
perdeu o consenso.» Quer dizer, já não é dirigente, senão que
unicamente dominante, detentora de uma força coercitiva pura.
A
crise orgânica de uma classe ou grupo social sobrevém na medida em
que esta desenvolveu todas as formas de vida implícitas em suas
relações sociais, porém, graças à sociedade política e suas
formas de coerção, a classe dominante mantém artificialmente sua
dominação e impede que a substitua o novo grupo de tendência
dominante.
Uma
tal crise orgânica bem pode estar provocada pelas grandes massas da
população que passam subitamente da inatividade política a uma
certa atividade e expressam reivindicações que em seu próprio
complexo inorgânico constituem uma revolução. A crise orgânica
que se manifesta como desaparecimento do consenso que as classes
subalternas acordam à ideologia dominante não podem culminar com o
aparecimento de um novo bloco histórico, senão na medida em que a
classe dominada fundamentalmente saiba construir, pela mediação
orgânica de seus intelectuais, um novo sistema hegemônico dominante
capaz de opor-se ao anterior e eficaz para estender-se por todo o
âmbito social. Quer dizer, capaz de conquistar a sociedade civil
como prelúdio à conquista da sociedade política.
Hoje,
o que temos em Colômbia é a forte sensação social de caducidade
das velhas instituições em que se assenta o controle político,
representadas particularmente no anacrônico e ancilosado poder
judicial, o desprestigiado poder legislativo, o corrupto poder
legislativo, o corrupto poder executivo e o degenerado poder militar,
sem que se salvem outros estamentos como a polícia, os políticos
tradicionais e as burocracias sindicais. Evidentemente, não só são
objeto do protesto popular os setores da superestrutura política: o
são também, entre outros, e isto é novo, os bancos, as empresas
privadas, o FMI e suas receitas neoliberais, a OCDE, o que dá à
revolta popular um claro sabor anticapitalista.
As
velhas e mumificadas instituições da representação política
funcionais ao domínio oligárquico, pelo menos tal qual estão
concebidas até agora, não resistem à prova dos fatos e são
superadas por um povo e uma opinião que já não quer delegar e que
projeta organizar-se com fortes doses de autonomia e de rechaço aos
poderes constituídos.
São
circunstâncias em que o bloco ideológico dominante tende a
desintegrar-se e a perder sua capacidade de impulsionar o sistema
para adiante, porém conta ainda com forças que podem moderar a
crise e impedir um desenlace revolucionário.
Por
isso, é necessário definir com clareza a correlação de forças e
entender que o sistema de dominação não se constitui a partir da
fachada da Casa de Nariño para dentro, senão que se conforma como
um conjunto de forças que estão por trás do poder e que se
reagrupam quando o “governo democraticamente eleito” perde o
consenso e se racha e as massas começam a ganhar o campo político.
É então quando aparecem as mancomunações, esses reagrupamentos
que se verificam com as cúpulas de poderes em Palácio integrando o
gabinete, a Igreja, os sindicalistas, construindo um mentiroso
“diálogo de unidade nacional” do qual participam secretamente o
FMI, o Banco Mundial, a UE, a OCDE e a Embaixada dos EUA e quando as
forças políticas do sistema abandonam suas diferenças secundárias
e se organizam à vista de todos como “partido único do sistema”
no qual se chafurdam a U, os liberais, conservadores e sindicalistas
pelegos.
Um
novo sujeito popular.
Porém,
também é imprescindível anotar com letras maiúsculas, porque é o
fenômeno mais transcendente, que a característica principal da
situação é que o sujeito popular massivo que ganha as ruas e o
espaço público deixa de aceitar a direção das maquinarias
politiqueiras que até ontem simplesmente o representavam.
Uma
das características da crise orgânica é que a burocracia dirigente
terminou por separar-se da massa; os partidos tradicionais, com a
forma de organização que apresentam como empresa eleitoral, com
aqueles determinados homens que os constituem, representam e dirigem
já não são reconhecidos como expressão própria de sua classe nem
de uma fração dela, diz Gramsci, concluindo que o partido termina
por converter-se em anacrônico e, nos momentos de crise aguda,
desaparece seu conteúdo social e fica como [se estivesse] nas
nuvens.
Na
crise orgânica, o sistema reforça a presença dos fatores do Estado
que não se especializam precisamente nas arquiteturas do consenso ou
no exercício cuidadoso da hegemonia cultural, e sim nos instrumentos
de exercícios da coerção e corrupção, para o qual tende a
territorializar as forças militares, a militarizar as polícias e
forças de segurança e a combinar suas ações com as forças
repressivas do poder global, como as que giram agora ao redor das
bases ianques em nosso território e outras iniciativas militaristas.
A
crise não é, e a realidade colombiana assim o confirma, algo
surgido da noite pro dia. Se aduba de um leque de elementos de
deterioração da dominação oligárquica no tempo e num regueiro de
lutas populares que adquirem diversas formas e respondem a diferentes
segmentos do sujeito popular, porém que vão se complementando entre
si.
Há
uma forte recuperação de elementos de consciência coletiva que se
encontravam deteriorados por anos de ofensiva neoliberal.
Nas
atuais circunstâncias, a função histórica das esquerdas, mais que
autoproclamar-se vanguardas, é propender a fortalecer os elementos
de autonomia e de cidadania das massas e da constituição de fatores
de poder popular assentados no protagonismo do novo sujeito popular.
Há
que considerar que nas crises orgânicas os setores dominantes não
se paralisam, senão que buscam aproveitar a revolta inorgânica para
produzir movimentos reacionários de direita buscando o massacre das
mobilizações o e retorno à passividade política.
Por
isso se torna decisivo propor nas assembleias e mobilizações
populares e em cada circunstância, agora que o momento é propício,
a construção de uma contra hegemonia, de um contrapoder, de um novo
sistema de instituições que consolidem o direcionamento das forças
antagônicas às da dominação.
Se
bem que é necessário atuar com rapidez e responder um a um aos
acontecimentos, deve-se prever também que a crise, que está aberta,
tenha uma duração prolongada como produto dos esforços do bloco
dominante por sustentar o regime.
Portanto,
será crucial o aspecto da organização popular e sua capacidade
para que a diversidade prevalecente possa manifestar-se de maneira
unificada nas lutas por um período extenso para dar uma via positiva
à espontaneidade e acumular forças. Junto, pois, aos esforços
apontados à constituição do sujeito num novo sistema hegemônico,
serão decisivas as tarefas de reforço das forças definidamente
revolucionárias.
O
elemento decisivo de toda situação –e voltamos a Gramsci- é a
força permanentemente organizada e predisposta desde longo tempo que
se pode fazer avançar quando se julga que uma situação é
favorável [e é favorável só na medida em que uma força tal
existe e está impregnada de ardor combativo].
Nesse
sentido, a iniciativa apresentada desde Havana pela delegação das
Farc de convocar uma Assembleia Constituinte soberana pela paz é um
elemento que pode unificar todos os setores populares na ideia de uma
mudança radical do Estado e do regime social e político na
perspectiva de uma democracia ampliada e com justiça social.
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