Palavras dirigidas ao senhor Kofi Annan
La
Habana, Cuba, sede dos diálogos de paz, 27 de fevereiro de 2015
Nos
reunimos novamente após termos tido a ocasião de compartilhar com
você no dia de ontem sobre os avanços do processo de paz. Foi muito
agradável para nós podermos intercambiar também, no dia de hoje,
algumas ideias a respeito [do tema].
Senhor
Annan, você, como pessoa que nasceu no Terceiro Mundo e teve as
vivências da exclusão, da miséria e das injustiças das quais
padecem nossos povos, pode dar testemunho sobre a natureza do direito
à rebelião, da legitimidade daquela potestade inscrita na natureza
humana, explicada e difundida por patriarcas e filósofos de todos os
tempos, e reconhecida de maneira expressa pela Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão em 1789.
Bem
está inscrito no coração sensível do gênero humano o mandato de
recorrer a esse direito de direitos quando as condições históricas,
de classe, de desigualdade e perseguição afligem a alma e a própria
dignidade da pessoa e do cidadão. Estes fundamentos, mirando os
padecimentos da Colômbia, foram os que moveram nossos fundadores, os
quais, por razões de legítima defesa, se viram obrigados a empunhar
as armas há mais de sessenta anos. Eles fizeram eco, de alguma
maneira, daquela consideração essencial “de que os direitos
humanos sejam protegidos por um regime de Direitos, a fim de que o
homem não seja compelido ao supremo recurso da rebelião...”.
Nosso
caso não é o de Bósnia-Herzegovina, nem o de Ruanda, nem da
Iugoslávia; nem somos Sudão nem Líbia. Nada do nosso se parece com
estes casos nem com as circunstâncias que levaram à invasão do
Iraque, acertadamente rechaçada por você se contrapondo à posição
e ao espírito guerreirista que esgrimiram para o mal, naquele
momento, os Estados Unidos e o Reino Unido.
Tampouco
é nosso caso o que aconteceu na Irlanda ou vem sucedendo na Síria.
O nosso tem sido uma muito antiga resposta digna ao despojo que ainda
continua, ao desconhecimento de direitos fundamentais, ao abuso, à
necessidade da legítima defesa desde os anos sessenta em que foram
atacados, para aniquilá-los, com todo o poder bélico do Estado,
aqueles campesinos de Marquetalia que lavravam a terra com o único
desejo de viver em paz. Transcorreu meio século e aqui seguimos, os
mesmos de então porém com caras diferentes, lutando por uma mesma
causa, porque não é com bombas nem metralhadora que se acalma a
inconformidade que a injustiça gera.
Senhor
Annan, mais além da Casa de Nariño, a realidade que existe é a de
um coeficiente de Gini que marca a desigualdade e a pobreza entre os
nossos: 0.53 nas cidades e 0.87 concernente à propriedade rural,
para situar a Colômbia como o terceiro país mais desigual do mundo.
A respeito disso, e somente para que tenha um exemplo, lhe pedimos
que olhe para o Chocó, território de nosso país com população
majoritariamente afrodescendente. Lá se encontram, num cenário com
abundantes riquezas naturais saqueadas pelas transnacionais, homens,
mulheres e crianças em sua maior parte com os pés descalços sobre
o barro, vivendo como animais e também morrendo por desnutrição.
Quibdó, sua capital, deixada na mão do diabo como o mais pobre
bairro de Kumasi, se encontra assentada entre minas de ouro e
biodiversidade, a duas horas de voo da cidade de Miami, onde faz
valer sua presença o capital colombiano.
Em
nosso país, o qual conta com quase cinquenta milhões de habitantes,
77% da terra estão em mãos de 13% da população. 3.6% destes
últimos é dona de 30% da mesma. Os procedimentos de despojo
violento do último quarto de século deslocaram a mais de 6 milhões
de campesinos.
Não
queremos distrai-lo com mais alusões horripilantes de desigualdade e
iniquidade social. Mais bem lhe reiteramos que à Mesa de Diálogo de
Havana chegamos para honrar nossa palavra empenhada no Acordo Geral
de 12 de agosto de 2012, com o convencimento de que, sim, se pode
alcançar a paz em termos civilizados, e de que numa guerra de mais
de meio século não se pode falar de um só vitimário, nem muito
menos de um só responsável, como em algumas ocasiões se pretendeu,
se querendo colocar a insurgência no banco dos réus. Nossos
interlocutores já começam a aceitar esta realidade histórica. E,
felizmente, uma comissão que teve aos seus cuidados o estudo da
origem do conflito entregou à mesa doze informes de excelentes
acadêmicos que indicam que a confrontação em nosso país é tão
antiga como para superar duas gerações ou mais; e que as ações
violentas de muitas variadas espécies, sem restrição de meios para
adiantar-se e cometer-se, em muitos casos se originaram e provêm não
só das partes combatentes como também de múltiplos atores
políticos e sociais, oficiais e não oficiais, que deram rédea
solta a seus ódios e métodos de destruição. [Colocamos em suas
mãos cópia dos doze informes da Comissão
histórica do conflito e suas vítimas, que
antes mencionamos.]
A
propósito deste tema, vale a pena recordar que o ex-presidente César
Gaviria [1990-1994], em recente escrito publicado no El
Tiempo, diário de maior circulação
nacional, destacou que os atores do conflito se encontram entre a
população combatente e não combatente; e entre círculos da
empresa privada, e funcionários públicos de diversa condição.
Assinalou igualmente responsabilidades graves à classe política
para finalmente indicar que até juízes se encontram comprometidos.
O próprio Comissionado para a Paz, doutor Sergio Jaramillo,
concordou que a responsabilidade pela enorme e cruenta contenda
bélica é coletiva. E o próprio Presidente Juan Manuel Santos não
esperou muito para acolher a tese do ex-presidente Gaviria. Aspiramos
a que as autoridades competentes iniciem as consequentes
investigações de rigor sobre estas notícias criminais conhecidas
por muitos, porém até agora reconhecidas nessa dimensão por um
alto dignatário de Estado.
Devemos
acrescentar que, para o bem do processo, o governo nacional já
aceitou a existência de presos políticos, ao aceitar revisar “a
situação das pessoas privadas da liberdade, processadas ou
condenadas, por pertencer ou colaborar com as FARC-EP”. Igualmente,
se admitiu que se “fará as reformas e os ajustes institucionais
necessários para fazer frente aos desafios da construção da paz”.
Ambos pontos estão incluídos numa Agenda que de nossa parte
assumimos como invariável em seus aspectos substanciais, e têm a
ver com necessidades a resolver no caminho de alcançar a finalização
do conflito.
Por
último, devemos destacar que, buscando assumir gestos práticos que
desescalem o conflito e minimizem as dores da guerra, no dia 17 de
dezembro do ano passado declaramos um CESSAR UNILATERAL AO FOGO, POR
TEMPO INDETERMINADO, em meio a uma contenda armada interna que não
iniciamos. Solicitamos que o referido cessar-fogo fosse verificado
por organismos nacionais e internacionais. O governo recusou atender
nossa decisão e solicitação. Dado que você vem na qualidade de
Coordenador das Operações das Forças de Paz da ONU, aproveitamos
sua presença neste dia para solicitar-lhe que se sirva transmitir
suas experiências aos senhores plenipotenciários do governo, sobre
o valor e alcance que para a população inerme têm medidas como a
que tomamos livremente. Não mais mortos que façam mais distante um
acordo de paz que, como nunca antes, se mostra possível no
horizonte.
Muito
obrigado.
DELEGAÇÃO
DE PAZ DAS FARC-EP.
--
Equipe
ANNCOL - Brasil