Governo e as Farc. Fim de uma guerra? Entrevista com o Padre Francisco de Roux
O padre Francisco
de Roux é um dos colombianos que
mais conhece as entranhas do conflito, a tal ponto que tem sido
apontado como um beneficiador da guerrilha. O provincial dos jesuítas
explica por que, contra a opinião da maioria dos cidadãos, acredita
no desejo de paz das Farc.
A entrevista é de Claudia
Palacios, publicada no jornal El
Pueblo, 27-10-2013. A tradução é do
Cepat.
Eis a entrevista.
É necessário suspender o
processo de paz enquanto ocorre a campanha eleitoral?
Sou a favor de não suspendê-lo. É
preciso que se marque com clareza que o que está se dando em Havana
não é a reeleição de Santos,
nem o freio ao uribismo, nem sequer o futuro dos 10.000 homens das
Farc, mas,
sim, que os colombianos e colombianas possam viver como seres
humanos, o que é algo muito mais sério. E para nós que vivemos em
territórios de guerra e compreendemos a dor das vítimas e a
gravidade da crise espiritual na Colômbia,
parece muito triste que o contorno conjuntural das eleições coloque
em risco um assunto tão delicado.
Contudo, existem dois
cenários: se os diálogos são suspensos por muito tempo, depois
dificilmente poderão ser retomados; mas se não o suspendem, vão
receber muitos ataques que podem acabar colocando um fim neles. Como
proteger, então, o processo durante a campanha?
Eu vejo que foram feitas algumas
propostas, como caso haja uma suspensão, que continuem conversando
com equipes técnicas sobre problemas que serão discutidos depois
das eleições. O que me parece apropriado é que o processo
continue. Que importância tem que o ataquem?! As opiniões do
uribismo são muito ideológicas contra a paz e não vão cessar com
a suspensão ou nas conversações.
Então, você acredita que
não irão interrompê-lo, por mais que sejam feitos ataques?
Eu gostaria que o presidente agisse
pela paz e dissesse: “Eu aposto na paz, e não abandono essa mesa.
Entrego-me completamente a esta causa e não me importa qual o custo,
inclusive, o risco de perder a reeleição”.
Mas, e ele apostar tudo e
perder a reeleição? Não há mais ninguém que tenha dado mostras
de querer continuar com o processo ...
Justamente, acredito que a fortaleza
do próprio processo esteja condicionada à ousadia que o presidente
possa ter, em apostar todas as cartas nele. Embora o presidente tenha
tido coragem, aceitou o cenário e insistiu que para ele importa a
paz, foi ainda muito cauteloso. Não foi suficientemente corajoso
para colocar todo o peso de sua decisão para que a paz seja
possível: assuntos como as ambivalências com o ministro da Defesa –
compreensíveis pelo seu sentido associativo militar -, que a todo o
momento bombardeia o processo; a necessidade de responder
continuamente a oposição, deixando incertezas sobre o processo, ou
a insistência de que isto deva levar meses e tem que estar pronto. A
paz é muito mais profunda.
Obviamente, também esperaria essa
determinação por parte das Farc.
A opinião pública espera mensagens claras da guerrilha. Minha
impressão é que as Farc
fazem apostas sem compreender a complexidade com a qual os
colombianos precisam receber estas propostas para torná-las
politicamente viáveis, socialmente factíveis e economicamente
sustentáveis. As Farc,
dentro e fora da mesa, propõem mudanças estruturais muito profundas
e a equipe de negociação dos governos permanece na perplexidade de
saber como fazer para que estas propostas se encaixem na Colômbia
real, de maneira que ao nos comprometermos com elas, o país as
aceite e as torne realidade.
Apresente-me um exemplo
destas coisas que não são factíveis.
As Zonas
de Reserva Campesina são uma iniciativa
apoiada pelas Farc,
mas podem chegar a pedir um número de áreas que não é realizável.
Ou pedir áreas em territórios indígenas ou afrodescendentes, que a
sociedade não vai aceitar. Podem igualmente pedir um número de
pessoas no parlamento que politicamente não seja possível,
independentemente do que pensam o presidente ou os negociadores do
Governo.
Recordava que o presidente
disse que o processo iria durar meses e não anos. E já foi um ano.
Você que conhece tão bem o conflito nas zonas rurais, quanto tempo
acredita que teria que durar a negociação?
É muito difícil dar uma reposta
assim. Mas, eu creio que neste tipo de conversas com pessoas que
estiveram na luta armada, o processo de amadurecimento leva muito
tempo e, logo, acelera-se quando são alcançados níveis de
confiança e de clareza. Eu, francamente, creio que pode durar este
ano e o próximo. Vicent Fizas,
da Escola de Paz da Barcelona,
mostrou esta semana dados com a média dos 25 processos mais
conhecidos dos últimos tempos, que levaram 70 meses de negociações.
Álvaro Leiva falava em dar
uma trégua durante as eleições. O que você pensa?
Uma espécie de trégua bilateral? Eu
concordo.
Você acredita que deva ser
dos dois lados?
Eu acredito que deva ser do interesse
das duas partes. Eu acredito que a razão pela qual o Estado não a
fez é porque tem consciência de sua vantagem militar e porque isto
é algo que os colombianos estão demandando, porque vimos no passado
não tivemos resultados para negociar, porque as partes violavam os
acordos após a suspensão do confronto. Contudo, acredito que é
possível encontrar caminhos alternativos, em que, suspensos os
confrontos, possa haver uma intervenção internacional para
constatar que se interromperam as agressões, e se possa ter um
aparato de segurança muito forte em informação, que ajude o Estado
a dar conta da segurança.
Porém, se Santos dissesse
'sim' ao armistício, daí, sim, não chega nem ao final deste
Governo. Você não acredita?
Sim, caso isto signifique baixar a
capacidade de presença do Exército
e dos sistemas de inteligência e de análises, e se não houver uma
supervisão internacional. Contudo, isto pode ser estabelecido, é
uma questão de abertura e imaginação.
Os colombianos, quando
questionados pela pesquisa, mostraram que não gostam do processo de
paz. O que lhes dizer para que vejam o processo não apenas nos
termos da confrontação política do momento, mas também pela sua
relevância histórica e para o futuro do país?
Começaria por fazê-los se dar conta
da gravidade da crise espiritual na qual o país está. Nós chegamos
a níveis espantosos de vitimizações. Na Colômbia,
nós aceitamos que existam falsos positivos [os casos de execuções
extrajudiciais na Colômbia] para premiar os militares pelas suas
conquistas, que haja piquetes porque os inimigos podem estar em
qualquer lugar, que haja minas porque não se pode deixar o inimigo
se aproximar, as falsas desmobilizações para enganar o inimigo.
Vimos acontecer os massacres e sequestros mais longos do mundo. A
guerra colombiana tem sido bárbara.
Entretanto, convivemos com
isto e não acontece nada...
Eu não estou de acordo com a guerra
das Farc,
nem com a guerra do ELN,
nem com a guerra dos paramilitares, nem com a guerra deste país.
Agora, o colombiano comum pensa que os comandantes da guerrilha
colombiana guerreiam pelo dinheiro, no entanto, quando você os
conhece, percebe que tomaram as armas como último recurso, pelo bem
da sociedade colombiana. Alguns não estão de acordo com isto, mas
eles estão convencidos disto, conscientemente, e estão dispostos a
dar a vida para que a classe dirigente do país se retire, que os
membros do Exército,
que defendem este sistema, morram. Há, aí, uma ética guerrilheira
muito forte e com toda a tranquilidade dizem que não se importam que
sejam mortos, para que o inimigo morra. O que as negociações em
Havana
demonstram para estes homens é que para fazer mudanças não
precisamos nos matar.
Você acredita que eles não
são narcotraficantes?
Eles têm utilizado a droga para
financiar a guerra e é evidente que isso os prejudicou, mas eles não
existem para o negócio do narcotráfico. Ninguém aceita condições
de guerra tão terríveis por uma razão simples. Um narcotraficante
não está disposto a morrer por seus ideais, ao passo que estes
jovens não têm problema em morrer, desde que prevaleça a sua
causa.
Entretanto, existem
informações que dizem que eles possuem grandes fortunas no
exterior...
Não conheço a veracidade destas
informações. Que tenham dinheiro fora é possível, parte da
barbárie da guerra são os recursos econômicos que comprometem.
Recursos que poderiam ser dedicados ao ser humano.
Mas, fortunas pessoais...
Isto, sim, não me consta e não me
atrevo a dizer nada. O que me consta é que, queiramos ou não,
muitas dessas pessoas tomaram as armas por razões de consciência.
Você acredita que eles
deveriam participar na política, uma vez que se firme a paz?
Acredito que todos os que estiveram
na guerra causaram danos que precisam ressarcir e devemos recorrer à
imaginação para cobrir estes custos. Não passarão toda a vida na
prisão. Caso exijam-lhes o cárcere, a paz seria impossível na
Colômbia.
Contudo, é necessário encontrar caminhos para a justiça
transicional, observando todos os lados: guerrilha, paramilitares e
Exército.
Ao se explicar ao jovem que está na montanha que causou danos ao
país, e que a justiça deve ser feita, pode-se dizer a ele que
quando a guerra terminar ele pode ser camponês, tornar-se promotor
do desenvolvimento, protetor das zonas úmidas, treinar para
aproveitar sua liderança sobre o povo e servi-lo.
No entanto, isso serve para
os níveis médios e baixos. E para as altas esferas?
Não podemos proceder com eles com a
justiça penal colombiana. Não podemos. Se para Mandela
tivessem aplicado a justiça penal do seu país, teria morrido na
prisão, porque Mandela
fez terrorismo. E o mesmo ocorre em qualquer um dos processos no
mundo.
Você acredita que algum
daqueles que estão em Havana é um Mandela?
Mais do que isso, eu diria que são
homens que chegaram a Havana
para buscar a paz e que querem deixar a guerra, por isso se sentaram
para negociar. Aqui, parece que há colombianos bons e um pequeno
grupo de maus, mas isto é muito mais complicado. Todos na Colômbia
são responsáveis, em diferentes níveis, desta barbárie com
250.000 pessoas mortas por uma guerra na qual nunca fizemos as
mudanças profundas que o país necessita. Somos responsáveis, ainda
que de maneiras diferentes: não da mesma forma como aquele que
empunhou um fuzil na guerrilha, ou um militar com “falsos
positivos”, aquele juiz que libertou um culpado indevidamente; um
presidente que teve que tomar decisões; um jornalista; ou aqueles
que têm alguma liderança religiosa; educadores; empresários; etc.
Sendo todos responsáveis por esta guerra absurda, não podemos
chegar a dizer que aplicamos o direito penal para alguns poucos.
Parece que não nos demos conta da responsabilidade coletiva.
Neste sentido da
responsabilidade coletiva, então, não deve haver uma punição?
Não, a justiça transicional, sim,
pede punição, contudo, é preciso encontrar maneiras para cobrir os
custos que foram causados à sociedade, para que sejam compatíveis
com a paz e a reconciliação.
A sociedade vê a punição
como prisão, mas outros dirão que a punição é que não façam
política ou que passem ao menos determinado número de anos na
cadeia. O que significa a punição?
Isto não pode ser respondido no
nível abstrato, há que fazê-lo com as pessoas, em discussão.
Necessitamos que se diga a verdade, que se reconheçam as vítimas e
que elas encontrem tranquilidade. Devem ser estabelecidas formas de
reparação às vítimas que perderam terras e casas. Deve haver
algum tipo de satisfação social pelos danos causados, mas não que
a justiça penal seja aplicada a todos.
Você votaria em algum dos
guerrilheiros que se lançasse à política?
Precisaria ver o tipo de proposta que
trazem.
Seriam as propostas que
baseiam a luta armada que fazem há anos.
O que se pode ver até agora é que
mudaram. O discurso de Jacobo Arenas
foi sobre a privatização das empresas do Estado, rejeição ao
investimento estrangeiro, nenhum desenvolvimento industrial no
campo... isso já não possuem. As novas propostas são de
negociações para incorporar o investimento estrangeiro onde a
empresa privada atua e a participação democrática é exigida de
forma mais ampla. Navarro Wolf
esteve na guerra e, hoje em dia, faz propostas de avanço e o povo
vota nele. Angelino Garzón
foi do comitê gestor da UP,
que era o partido das Farc,
e as propostas que fazem são muito importantes para os colombianos,
E você fez o prólogo do seu
livro. Você votaria nele para prefeito de Cali ou para presidente?
Sou partidário do voto secreto. Fiz
o prólogo do livro de Angelino
porque tenho uma enorme admiração por ele e pela sua senhora, não
por um apoio eleitoral. Admiro sua capacidade de reconciliação e de
perdão, sua capacidade de ver as coisas boas das pessoas. É um
homem de grande valor humano, muito importante hoje para a
reconciliação do país.
Voltando ao tema das
responsabilidades coletivas, vocês disse, em um outro momento, que
somos cínicos como colombianos porque não somos conscientes de que
todos somos culpados da guerra em que estamos. O que cada um de nós
teríamos que fazer para que nos envolvamos na causa da paz, não
somente com o referendo, mas sim com ações concretas?
Primeiramente, devemos nos dar conta
de que temos que construir este país com e entre todos, mas para que
isto aconteça devemos mudar, devemos ser capazes de nos perdoar. O
perdão vai além do legal e da memória.
Contudo, nós que não fomos
vítimas diretas, o que podemos fazer para contribuir para a paz? Se
o problema é a iniquidade, teríamos que dividir o salário, deixar
de comprar alguns itens, o quê?
Outro elemento importante para a paz
são as mudanças estruturais: que haja terra para os camponeses, que
haja trabalho e saúde para todos, que se diminua a desigualdade de
renda, etc. Tem a ver com a capacidade de receber jovens
ex-guerrilheiros e ex-paramilitares; dar espaço aos camponeses para
a produção de alimentos; com a abertura da participação política,
com o reconhecimento das minorias, com o desenvolvimento do capital
humano na educação de qualidade nos bairros pobres das grandes
cidades, com o sentido de compaixão e de solidariedade com as
pessoas da rua. Eu vejo muito mais disposição nas pessoas que
sofreram a guerra diretamente, do que naquelas que não a sofreram.
Já que dá o exemplo das
terras, pergunto-lhe sobre as de Orinoquia. As empresas que as
compraram de maneira aparentemente ilegal, devem devolvê-las?
Será necessário encontrar uma saída
jurídica para isto. Sou uma pessoa completamente convencida da
capacidade dos camponeses de se desenvolverem se possuem estradas,
acompanhamento técnico e terra. Podem fazer isso em todos os
produtos tropicais permanentes e na agricultura intensiva. A partir
de minhas experiências, a economia camponesa de cultivos tropicais
permanentes apresentou produtividade igual ou maior do que as grandes
fazendas. Trata-se de combinar os desenvolvimentos camponeses com os
empresariais.