Oscar Olivera – um lutador
Por elaine tavares
O campus onde fica o Centro de Humanas
da UFRGS é um lugar bucólico, bem distante de Porto Alegre. Diz a lenda que
tiraram essa parte da universidade do centro porque os alunos das “sociais”
incomodam demais, e ali, bem longe, ficariam mais isolados e com menos chance
de causar problemas. Pois foi ali que se realizou a I Jornada Latino-Americana,
promovida por professores do Colégio de Aplicação. Uma primeira tentativa de
colocar as questões mais candentes que afetam o nosso continente de uma forma
mais totalizante. Assim, durante uma semana, a universidade conheceu os
movimentos políticos, a cultura, a economia, a mídia, enfim, vários aspectos da
luta popular que hoje assoma em toda Abya Yala.
No final da tarde calorosa, Oscar
Olivera descansa, encostado ao muro que dá acesso ao prédio das Humanas. É um
homem pequeno, parece um menino. Tem gestos comedidos e fala baixinha. Quem o
vê não percebe, em primeira hora, o gigante que vive ali. Oscar Olivera é um
dos mais importantes nomes da “Guerra da Água”, rebelião que aconteceu na
cidade de Cochabamba, no ano 2000, quando a população conseguiu barrar a
privatização da água.
Tudo começou ainda em 1993, quando o
então presidente Hugo Banzer acordou com uma multinacional a privatização do
abastecimento de água da cidade, uma das mais populosas da Bolívia. As pessoas
protestaram, mas o acordo foi mantido e logo, em 1999, a empresa Águas deTunari
– misto de empresários bolivianos, estadunidenses e espanhóis – mostrava suas
garras.
A água, que é um direito humano
universal, começou a faltar em vários espaços da cidade e as contas das
famílias cresceram mais de 50%. Nas entranhas da cidade a população começou a
se organizar para encerrar o contrato com a multinacional. Naqueles dias Oscar
trabalhava numa fábrica de calçados e era, já de longa data, dirigente
sindical. Sua batalha pela vida começou muito cedo, ainda menino, quando
precisava vender massinhas na porta da escola para ajudar nas despesas da
família que formava um grupo de 12 pessoas. Não bastasse a pobreza, ainda teve
diagnosticada uma doença grave no coração, a qual, diziam os médicos, não lhe
permitiria viver mais que vinte anos. Pois Oscar viveu, e não poupou emoções ao
músculo que pulsava como uma bomba relógio. Desde mocinho percebeu que o único caminho
para os trabalhadores é a organização e tão logo começou a trabalhar na fábrica
já era delegado sindical.
Enfrentou, nos anos 80, a ditadura de
Luiz Garcia Meza atuando no Comitê Clandestino de Bases do Sindicato de Manaco
e nos anos 90 dirigiu a Confederação dos Trabalhadores Fabris da Bolívia. Toda
sua trajetória se fez no espaço sindical, e não foi fácil fazer a transição
para o movimento popular que desembocou na chamada Guerra da Água. “Os
companheiros sindicalistas não compreendiam a extensão daquele movimento que
crescia no meio da população. Alguns chegaram a me pressionar, dizendo: o que
tu tens a ver com isso da água? Então eu explicava para eles que eu trabalhava
numa fábrica de sapatos, logo, tinha tudo a ver com a água. Sabe quanto litros
de água são gastos para fazer um par de sapatos? Oito mil litros. Imaginem que
a fábrica onde eu trabalhava fabricava 25 mil pares por mês. Quanto de água ia
pelo ralo? Ora, a questão da água era uma questão para mim, sim, e eu fui atuar
naquele movimento. Porque a água é um direito humano, não pode ser
vendida”.
Na região de Cochabamba as famílias
tinham tradição do uso de sistemas comunitários de água, criados bem antes do
império inca e a empresa multinacional, além de gerenciar o abastecimento oficial
foi se apossando de todas as fontes de água do município. Por isso, já em 1999
as comunidades começaram a fazer os bloqueios de estrada, em protesto contra a
usurpação da riqueza de todos, que era a água. “Nós começamos um trabalho de
comunicação que era muito baseado no simbólico. Então a gente ia pelas
comunidades, nas casas, explicava o que estava acontecendo e dizia: se vocês
estão com a gente na luta, então coloquem na frente da casa uma wiphala (a
bandeira do povo indígena). E de repente, as bandeiras foram aparecendo,
tomando todas as casas, toda a cidade. Era uma outra forma de comunicar. Quem
via a bandeira tremulando na frente da casa, sabia que ali morava um
companheiro”, conta Oscar. E aquilo foi formando um grande espírito de luta.
No mês de janeiro de 2000, quando a
empresa anuncia um aumento nas tarifas, o movimento explode. Outro momento de
forte conotação simbólica é criado pela Coordenadora da Água e da Vida, na qual
já atuava Oscar: as famílias são convidadas a trazerem as contas de luz para
serem queimadas numa grande fogueira. “Aquilo também foi uma coisa muito forte,
porque nos remeteu a nossa cultura mais arraigada, mais antiga. E queimamos as
contas, e cantamos e dançamos”. Era o estopim de um processo de participação,
de democracia direta, que iria desembocar na vitória das gentes. Os
protestos são avassaladores, o governo responde com muita repressão e até com a
lei marcial. Muita gente é presa, ferida, morta. Os protestos se estendem até o
mês de abril, sem trégua e tomam conta não só de Cochabamba, mas de outros
departamentos do país. A disposição de luta da população organizada é vitoriosa
e a empresa Bechtel, que criara a Águas de Tunari, é obrigada a se retirar do
país. A água de Cochabamba volta para o controle público.
A vitória das gentes na Guerra da Água
vai servir de exemplo para a nova rebelião que explodirá em 2003, a chamada
“Guerra do Gás”, quando, de novo, organizado e na luta renhida, o povo
boliviano bota para correr mais um presidente. Os dois movimentos abrem o
caminho para que, mais tarde, um sindicalista do ramo cocaleiro, possa ser
eleito presidente da nação.
Oscar fala com emoção sobre aqueles dias
e avalia que Evo Morales não tem sido digno da esperança que se criou com a sua
ascensão. Crítico do governo, ele vai mais longe e diz que, tanto Evo, como
Correa, no Equador, e Lula, no Brasil, acabaram cooptando muitos lutadores,
enfraquecendo a luta social. “Estamos sempre recomeçando. Não é fácil. Mas,
ainda há luta e estamos vigilantes”. Basta ver a luta dos povos do Parque
Nacional que abriga terras indígenas para impedir a construção de uma estrada
por dentro da reserva natural.
Hoje, Oscar não trabalha mais em
fábrica. Atua em uma escola rural onde ensina as crianças a conviver de maneira
harmônica com a terra. E, mesmo ali, enfrenta o olhar de estupefação e a
incompreensão dos colegas. “Os professores dizem: mas de que adianta ficar com
as crianças na horta. Há que ensinar matemática, biologia, física. E eu
explico: para fazer uma horta temos de medir a superfície, o volume, a
profundidade. Isso é matemática. Para plantar uma beterraba a gente vai
conhecendo sua conformação, seus nutrientes, isso é biologia, é química. E
assim, numa simples horta, podemos ensinar geopolítica, economia, qualquer
coisa. Nós temos de recuperar essa coisa fabulosa dos nossos ancestrais que era
a relação com a terra, com a água, com a natureza. Atuar em harmonia,
respeitar, compreender a nossa cosmovisão. Sem isso, não há como fazer
política”.
O veterano da guerra da água acredita
que os militantes sociais precisam estar atentos para as novas formas de
mobilização. “No movimento pela água, os sindicalistas ficaram pra trás, no
episódio do gás também. Há coisas novas brotando do seio do povo e nós
precisamos estar atentos para isso. Os povos indígenas têm muito a ensinar, e
não é voltar ao passado. É recuperar as experiências exitosas e atuar no
presente”.
Vendo Oscar Olivera e sua doçura no
debate sobre coisas tão duras como as rebeliões do povo boliviano, bate aquela
esperança de que, um dia, as pessoas possam, de fato, compreender a importância
da herança indígena na formação da América Latina, e saibam aproveitar as
belezas que essas etnias têm para oferecer ao movimento de luta atual.