Há
aqueles que com sofismas pretendem fazer crer que uma “paz
neoliberal” é mais importante que uma paz com justiça social e
democracia ampliada. Como na heróica luta dos povos palestino e
curdo, em Colômbia não há incompatibilidade entre a mobilização
popular de massas –agrária e urbana- e a prolongada e tenaz
resistência campesina contra a violência da oligarquia dominante.
Não foram as classes subalternas as que inventaram a violência
política. É o bloco oligárquico de poder que recorreu ao desmando
desenfreado, com centenas de milhares de mortos e desaparecidos, para
manter perpetuamente seus privilégios.
Jose
Antonio Gutierrez
Horacio
Duque.
Ah,
se não fora pela “guerra”, a esquerda já teria alcançado o
poder. Assim raciocinam alguns setores social-liberais, que imaginam
que no dia em que as guerrilhas revolucionárias já não existam,
então, aí, sim, a oligarquia vai jogar limpo, não assassinará a
oposição, deixaria de perseguir, assassinar e estigmatizar etc. O
movimento guerrilheiro seria uma espécie de idiotas úteis, um grupo
funcional à oligarquia que, sem eles, careceria de “desculpas”
para continuar reprimindo.
Estes
setores esquecem que a oligarquia começou a exterminar a oposição
desde muito antes de os movimentos guerrilheiros surgirem. E mais, se
esquecem que as guerrilhas em Colômbia nasceram, de fato, como uma
resposta à violência estatal, não pelo capricho de alguns
esquerdistas delirantes intoxicados ideologicamente, mas sim como
autodefesas campesinas. Aí está a origem das FARC-EP, nos núcleos
de campesinos armados em Cauca, Sul e Oriente de Tolima e Sumapaz. O
mais grave é que estes setores assumem a “tese uribista” de que
o surgimento da guerrilha foi uma decisão voluntarista e artificial
de parte de uns conspiradores de esquerda e que a guerra é uma
imposição absurda dos revolucionários. Tese que é incorreta desde
o ponto de vista histórico e, o pior, é uma tese de perigosas
consequências no campo político, que supostamente se quer libertar
da distorção ideológica guerrilheirista. Com essa logomaquia se
chegou até ao ponto de afirmar que as responsáveis pelo extermínio
da União Patriótica eram as organizações guerrilheiras, por não
tomar distância delas.
Antes
de tudo, confundem o fenômeno com sua manifestação. Falam da
“guerra” em abstrato, como se fora uma entidade com vida própria.
A guerra é a expressão concreta da dominação de classe em
Colômbia; é a maneira concreta como a oligarquia, tanto a nível de
Estado como a nível regional, expressou seu domínio, seu controle
sobre as classes subalternas. Não é uma guerra “instrumentalizada”
pelo Capital; é uma guerra iniciada por este em meio às tensões da
modernização capitalista desde a década de 20 [século passado] em
diante. É a maneira sangrenta e concreta em que se fez a acumulação
de Capital, mediante o despojo ao campesinato e a desarticulação de
toda forma de resistência operária e popular à exploração
desenfreada. Porém, o problema não é a “guerra” e sim esse
tipo particular de domínio de classe, do qual a guerra é apenas a
expressão.
A
luta guerrilheira, em vez de ser funcional a esta violência de
classe, tem sido uma das manifestações da resistência popular
contra o saqueio e a violência dos de cima. Objetivamente, o
movimento guerrilheiro tem sido um dique de contenção à expansão
da economia mineiro-extrativista, de mega-projetos e, mais
tradicionalmente, da expansão do latifúndio. Se não fossem as
guerrilhas, já não restariam campesinos em Colômbia. É um fato
que onde ainda existe campesinato é porque ainda há insurgência.
Não é casual que em muitos territórios os campesinos demonstram
inquietação em relação ao tipo de paz que se vai alcançar e,
sobretudo, para o tema do desarmamento. Em muitos territórios, temos
ouvido campesinos declararem “Se entregam as armas, quem vai nos
defender? Quem vai se contrapor aos que querem arrancar os recursos e
deixar-nos o buraco na terra?”. Isto é uma realidade, ainda que os
meios de comunicação o ignorem ou o neguem. Se os insurgentes não
têm podido evitar totalmente o avanço das locomotivas e do
monopólio monstruoso de terras, é pela assimetria das partes na
contenda, porém para ninguém é um segredo que um dos interesses do
grande capital em que se firme a paz é para poder levar os
investimentos às zonas onde hoje não podem entrar porque marca
presença o movimento insurgente. A “guerra” não é uma mera
instrumentalização do Capital, expressão que banaliza o sentido da
resistência dos campesinos em armas e que minimiza seu impacto no
terreno concreto da luta de classes. Se assim fosse, o Capital e seus
agentes políticos não estariam negociando em Havana a terminação
do conflito social e armado colombiano.
Aqueles
que creem que uma “paz neoliberal”, ou que a desmobilização ou
o desaparecimento, ou a derrota dos guerrilheiros vai gerar condições
para que o povo se organize e avance em suas demandas, pois já não
estaria o “grande obstáculo” que supostamente teria o movimento
popular, fariam bem não só em recordar a história como também em
ver o resultado da paz neoliberal em países centro-americanos como
El Salvador ou Guatemala. A “paz neoliberal”, essa paz
minimalista que foi pouco menos que uma desmobilização que não
alterou, no fundamental, nenhuma estrutura do poder, é uma paz
assassina, é uma paz violenta, na qual morre mais gente de morte
violenta que quando se estava em guerra. É uma paz sob um projeto
social que generaliza a anomia e que desintegra a sociedade, dando
passagem às estratégias imperialistas de maior ingerência nas
nações centro-americanas, como sucede com o Plan Mérida e seus
milhares de mortos e massacres como em México e El Salvador. Uma paz
vigiada, onde os exércitos mercenários privados continuem a serviço
dos poderosos, como se nada, para continuar massacrando sonhos assim
que os veem surgir. Esse é o modelo de paz que queremos para a
Colômbia e seu povo?
O
momento é crucial. Os riscos que o movimento popular enfrenta são
graves. A aplicação das fórmulas de outros países sul-americanos
ao caso colombiano, de maneira mecânica, é uma receita para o
fracasso. Colômbia não é nem Porto Alegre, nem Equador, nem
Bolívia, nem Venezuela. É um país onde a tolerância às
expressões dissidentes é mínima, e no qual a violência contra a
oposição se expressa numa agressão constante mediante o
paramilitarismo e os bandos criminais. O espaço democrático é
mínimo e somente pode ser ocupado pelos que não tenham nenhuma
ambição transformadora. Que haja “esquerdistas envelhecidos”,
cheios de ceticismo crônico, agoniados com teorias inúteis, que não
aprenderam nada da experiência da UP é lamentável; mais ainda
quando o dessangramento de líderes populares e de ativistas continua
firme e o Estado não dá nenhuma mostra de enfrentar a máquina
paramilitar, como estamos vendo com os martirizados indígenas Nasa
do Cauca, objeto do mais criminal extermínio pelas brigadas
militares da região. Se não se altera esta realidade no terreno, na
realidade, da luta de classes, que é onde se sustenta todo o
edifício institucional, qualquer intentona democrática seria
afogada em sangue.
Que
tipo de acordo é o que saia de Havana, que tipo de paz se alcance,
inclusive como se alcance, se se consegue como fruto de um acordo
entre duas partes num país distante, ou como um acordo que se
alcance também com a pressão e a luta das grandes massas que têm
mil e uma razões para protestar, tudo isto importa. Nesta luta pela
paz, o problema não é se a paz é neoliberal ou com justiça
social. O problema é que sem justiça social pode ser que não haja
guerrilha, porém não haverá paz. E os pobres continuarão
morrendo: deslocados pela mega mineração e pela agroindústria, de
física fome como na Guajira, sob a balas de sicários e
paramilitares a serviço de poderosos interesses econômicos, legais
ou ilegais. Essa paz neoliberal que se vislumbra nas metas do Plano
de Desenvolvimento Nacional santifica o enriquecimento por despojo e
levaria a uma sociedade francamente canibal. Resistir a esse modelo é
uma necessidade: e a pressão por conquistar um acordo o mais
favorável possível para os interesses populares entre o governo e a
insurgência é mais um dos muitos espaços de resistência nos quais
o povo deve assumir seu protagonismo. O povo colombiano pode muito
mais.
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Equipe
ANNCOL - Brasil